O que se pode tirar do 10 de março

Manuel Raposo — 30 Março 2024

Os excluídos do “milagre económico”. Manifestação em Lisboa, janeiro de 2024

O resultado das eleições de 10 de março não pode ser entendido sem olhar para os frutos do acordo governativo de 2015 e para o que sucedeu nas eleições de 2019 e 2022. Em março passado deu-se o desenlace de um curso político já evidenciado nos últimos cinco anos – e não a inesperada “viragem à direita” que todos os comentários (inclusive da esquerda parlamentar) afectaram ver com surpresa. Os factores que produziram a vitória da direita, considerada em conjunto, e o apagamento da esquerda parlamentar estavam anunciados desde o final do primeiro governo de António Costa.

As notas seguintes retomam, por isso, uma parte dos argumentos que aqui apresentámos em 2019 e em 2022 comentando os resultados das eleições desses anos – quase unanimemente exaltados então como vitórias da esquerda.

Empate no “arco governativo”, declínio do “centro”

O empate verificado em 10 de março entre PS e PSD (as sobras do CDS pouco contaram para o resultado da AD) não deixa de ser surpreendente: um PS dado como desgastado por oito anos de governo ficou ao mesmo nível de uma coligação que prometia uma viragem e vida nova para o país! Deduz-se que a desgraçada memória do governo PSD-CDS, fiel mandatário da Troika, não desapareceu totalmente. E, pelos vistos, as ajudas de campanha personificadas por Passos Coelho, Cavaco, Ferreira Leite, Durão Barroso, e demais velharias da direita, acabaram por dar amparo político e votos… ao Chega.

Somados, PS e AD tiveram 56% dos sufrágios, quando antes recolhiam entre 65% e quase 80%. Isto revela que as forças consideradas “do centro” continuam gradualmente a perder apoios. Os grandes partidos que durante 50 anos foram os principais esteios do regime (político, económico, institucional) perdem crédito.

Pelos números e pela lógica política, tudo indica que o PS perdeu votos para a AD (mascarando o fiasco da aliança PSD-CDS) e esta alimentou o crescimento da IL e do Chega. 

Parte da base de apoio dos partidos do “centro”, os sectores pequeno e médio burgueses (pequenos e médios proprietários, profissões liberais, quadros superiores, assalariados de maiores rendimentos) deslocaram-se mais para a direita, arrastando consigo camadas populares (esta é que é a parte trágica da questão) e contribuindo para a subida considerável da extrema-direita.

Este facto, por revelar uma tendência de fundo, tem de ser radicado na decadência do sistema capitalista, acentuada a partir da crise de 2008-2009 e da qual nunca recuperou nem tem perspectivas de recuperar. Entende-se que esta decadência tende a diminuir os privilégios (desde logo económicos, mas também de posição social) das classes intermédias, para as quais se torna assim atractivo um regime “mais firme”, que ponha “ordem na casa”, inclusive à custa de restrição das liberdades públicas. Um regime que salvaguarde a posição social das classes médias, à custa de manter a condição subalterna das classes trabalhadoras. 

Não por acaso, as lágrimas da direita (PS incluído) vão para “a classe média”, e não para a classe operária e para a massa assalariada mais pobre, de longe a mais prejudicada pela quebra das condições de vida – primeiro com os PEC do tempo de Sócrates, depois com a Troika, depois com a pandemia e mais recentemente com a inflação.

Apagamento da esquerda parlamentar

Não é difícil perceber a quebra da esquerda parlamentar se passarmos o filme rápido dos últimos quinze anos.

Cena 1. Os Programas de Estabilidade e Crescimento (!) dos governos de Sócrates (2005-2011), impostos pela UE na sequência da crise mundial de 2008, degradam violentamente as condições de vida da população trabalhadora. Crescem os protestos de massas. A crise da dívida do Estado faz cair o Governo.

Cena 2. Sob tutela da Troika, a direita PSD-CDS põe em prática (2011-2015) um programa brutal de direcção única: sacrificar o trabalho, salvar o capital do colapso. Sucessivas manifestações populares de grandes dimensões desgastam o governo, ministros são perseguidos na rua e em actos públicos. A direita perde a maioria nas eleições de 2015.

Cena 3. Do novo governo PS (com apoio do PCP e do BE, 2015-2019) espera-se uma mudança de política que ponha fim aos desmandos de Passos e Portas. Mas o movimento de massas que tinha crescido anteriormente é amortecido em nome da estabilidade governativa. Nenhum apelo para que prossigam as acções de rua, as lutas sindicais quase desaparecem. Tudo fica na expectativa de negociações e acordos parlamentares. Os dirigentes do PCP e do BE alimentam a ideia de que não se pode ter tudo de um dia para o outro, secundando a política “gradualista” de António Costa. 

O Governo, em vez de ser apertado pela acção de rua e de massas – que pelo menos teria condições para lhe arrancar mais concessões – fica de mãos livres durante quatro anos para aplicar o mínimo de medidas sociais que silenciem os trabalhadores e não assustem nem os patrões nem a UE. Os pequenos ganhos obtidos pelos assalariados ficam muito aquém das perdas sofridas durante o governo da Troika. 

Cena 4. Interrompido o impulso de luta de 2011-2015, a massa trabalhadora fica na dependência das promessas do PS. Continuar o que vinha de trás é a ideia mestra da campanha do PS, do PCP e do BE nas eleições de 2019. Sem surpresa, António Costa ganha à custa dos seus parceiros de governo. Dadas como uma “vitória da esquerda”, só porque o somatório PS-PCP-BE manteve maioria, escondiam na verdade uma primeira derrota da esquerda parlamentar em favor do PS, e anunciavam uma recuperação da direita e da extrema-direita.

A despolitização do eleitorado popular e trabalhador é patente. A ideia de defesa de interesses de classe, já de si debilitada, vai-se dissolvendo ainda mais por falta de acção de massas e de plano político para pressionar o Governo, restando a esperança de que as negociações parlamentares e a boa-vontade de António Costa resolvessem os problemas. 

Uma parte desse eleitorado, o mais destituído de espírito de classe, o mais desesperado – muito dele formado por proletários postos à margem do mundo do trabalho – deixa-se cativar pela demagogia da extrema-direita. Chega e IL crescem de votação e elegem deputados.

Cena 5. Constatando que perdem apoios e influência política, PCP e BE distanciam-se do PS e chumbam o OE para 2022. Muito do eleitorado popular e trabalhador, levado a depositar esperanças nos méritos da chamada “geringonça”, não percebe por que razão BE e PCP retiraram apoio a António Costa quando tinham sido eles a tornar viável e a promover a política de melhorias a conta-gotas, com sacrifício das lutas de classes.

Na ideia de levar a direita ao poder, Marcelo dissolve o parlamento. Engana-se. A maioria absoluta obtida pelo PS (janeiro de 2022) marca o culminar da popularidade de Costa e o fim de qualquer acordo governativo à esquerda, formal ou informal. O PS não precisa de apoios parlamentares nem de compromissos. António Costa anuncia que não fará acordos “preferenciais”, significando que quer ter mãos livres para acertos com a direita. Assim sossega o patronato e a UE.

Cena 6. Esta nova “vitória da esquerda” mascara uma forte deslocação do eleitorado para a direita. A esquerda parlamentar fica esvaziada e impotente.

Lutas reivindicativas ganham novo alento. Mas a maior parte dos movimentos mobiliza sectores de assalariados do Estado (professores, médicos, enfermeiros, forças repressivas) e mais tarde pequenos e médios agricultores. A direita estimula e aproveita estes movimentos para fustigar politicamente o Governo e o PS e promover a privatização de serviços públicos (Saúde, banca, TAP).

Os assalariados mais pobres e o operariado permanecem silenciosos, apesar de terem sido os mais penalizados com a pandemia e o disparar da inflação. Esfuma-se a ilusão com aquilo que tinha sido vulgarizado como um “governo de esquerda”. 

(Mesmo assim, o Governo não caiu por motivos políticos, como a direita procurou fazer crer. Foi levado à demissão por um golpe extra-político com origem no Ministério Público a que o presidente da República deu passagem.)

Epílogo. Nos dois últimos anos, o “milagre económico português” (Paul Krugman) ilude uma quebra regular das condições de vida dos trabalhadores. As camadas mais baixas da população enfrentam emprego precário, aumento da pobreza, inflação (com especial carestia dos bens alimentares), degradação dos serviços sociais. O êxito económico satisfaz o capital e os grupos de maiores rendimentos, mas é fictício se for escrutinado classe social a classe social.

Esta realidade revolta sobretudo as camadas mais pobres da população, que não encontram, contudo, meios de expressão política. 

A direita e a extrema-direita cavalgam este descontentamento. O caminho foi-lhe facilitado pela falta de uma oposição popular (antes de mais, de base proletária) que se mostrasse politicamente determinada a enfrentar o capital, as suas instituições e as suas manobras de esmagamento das classes trabalhadoras.

Novo impulso do novembrismo

O alvo comum da campanha de toda a direita foi acabar com “o socialismo”. Ora, toda a gente na direita sabe que o “socialismo” do PS não passa de uma vaga promessa de reformismo que os senhores do capital, mesmo desconfiados, suportam com bonomia desde que isso lhes dê paz social (a “estabilidade” é isso) para prosseguir os negócios. 

O alvo anunciado é o “socialismo” do PS, mas o alvo real continua a ser o mesmo de há 49 anos: as classes trabalhadoras.

O ataque concertado “ao socialismo” mostra que a direita já não acha que tenha de depender dos serviços do PS. Ao procurar abater o imaginário “socialismo” de António Costa, a direita procura romper a aliança formada no verão de 75 por julgar chegado o momento de dar novo impulso à contra-revolução então iniciada. A emergência da IL e do Chega traduz este facto tanto no plano da organização partidária como das ideias. O propósito de fazer do 25 de novembro uma comemoração oficial é um exemplo.

Classe contra classe

Isto dá-nos um sinal preciso acerca do posicionamento das classes sociais, que é este: o poder burguês de hoje tem na mão as classes médias, absorve com maior ou menor esforço financeiro as suas exigências salariais, não teme as manifestações populares brandas e apolíticas que mal o têm importunado – e pensa, assim, poder remeter o proletariado e as demais classes trabalhadoras à miséria, ao silêncio e à irrelevância política.

É contra este plano político, insistimos, que as lutas sociais dos trabalhadores têm de se erguer em plano igualmente político

Reduzir a acção dos trabalhadores à (em si, justíssima) reivindicação de habitação, saúde, etc. – como o PCP e o BE fizeram durante a campanha eleitoral, e insistem em fazer mesmo depois dos resultados desastrosos que tiveram, por acharem que isso é que é “concreto”, que isso é que “diz algo às pessoas” – é linha de curto alcance. Ignora a necessidade de responder à política de classe da burguesia com uma política de classe anticapitalista. Será essa política anticapitalista, conduzida pelos trabalhadores mais esclarecidos e combativos, que poderá desencadear um movimento que integre de modo eficaz todas aquelas reivindicações, e não o contrário.

O que a realidade aconselha

A burguesia não desleixa a luta de classes. A ofensiva desencadeada nos anos de Passos e Portas, sob tutela de Cavaco, é, nas condições de crise arrastada vivida pelo capital, o seu modelo de luta contra o trabalho. O combate político, a luta de classes, vão por isso mesmo acirrar-se – e a recomposição de forças na direita é disso sinal claro.

O conhecimento dos anos passados diz-nos alguma coisa: que uma maioria parlamentar é fraca protecção, que no terreno das instituições ganha quem governa, que a dependência perante o PS amarra os trabalhadores aos planos do capital e do patronato, que “contas certas” é uma forma de pôr o trabalho a pagar as dívidas do capital, que “milagre económico” pode querer dizer piores condições de vida. 

Enquanto a massa trabalhadora aceitar ser usada como força de pressão para arrancar concessões através do PS, a sua autonomia política, a sua capacidade para marcar o rumo do país serão nulas. E o campo ficará aberto para que a direita, o patronato, as classes dominantes extremem as suas posições políticas.

 

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