Derrota “histórica” da direita. Sim, e agora?

Manuel Raposo — 13 Outubro 2019

Olhando aos factos, a derrota eleitoral da direita começou em 2015. Contra todas as arengas da altura, a coligação PSD-CDS foi despedida por uma maioria de eleitores. Argumentar, como ainda hoje se ouve, que o PSD ficou então à frente do PS ilude o essencial: a rejeição do bloco que foi braço direito da troika. A derrota de agora apenas confirma, com valores mais claros, a de há quatro anos. (*)

O porquê é fácil de entender: a população que vive de salário não esqueceu os sacrifícios a que foi obrigada, abominou os anos da trupe Passos-Portas-Cavaco e não quer que os agentes da troika e da austeridade voltem a mandar. Se o disse em 2015, com mais razão recusou voltar atrás depois de ter experimentado quatro anos com a canga, apesar de tudo, mais leve.

Mas entre isto e uma viragem das condições materiais — e, sobretudo, políticas — em que vivem as classes trabalhadoras vai uma grande distância. Os últimos quatro anos de governo limitaram-se a aliviar a austeridade, a penalizar menos o trabalho e a empreender uma escassa recuperação de rendimentos dos assalariados. Apesar da pobreza da esmola, o saldo político foi favorável ao PS que ganhou sobre os parceiros à sua esquerda. Quer isto dizer que a esquerda parlamentar, hoje… está mais à direita.

Convém portanto ver na devida proporção a derrota “histórica” da direita — tal como a implícita vitória “histórica” da esquerda parlamentar.

A direita perdeu, por agora, a capacidade de governar directamente, através dos partidos que mais inequivocamente representam os interesses do capital e do patronato. Mas as forças que sustentaram Passos e Portas — o capital europeu, o capital português, o patronato em geral, enfim, as classes dominantes, com todo o séquito de instituições e aparelhos de poder — mantêm intacta a capacidade de mandarem no país. Seria inútil vincar isto se não pairasse no ar o risco de uma euforia em torno dos cento e quarenta e tal deputados “da esquerda”. Confiar na maioria parlamentar será o primeiro passo para o desastre no que respeita à defesa das classes trabalhadoras.

As forças políticas da direita vão ser forçadas a uma recomposição partidária, de que não estará ausente a procura de soluções radicais, nomeadamente sob o acicate da extrema-direita. É para isso que os fascistas do Chega e os “anti-socialistas” da Iniciativa Liberal servem — pontas de lança do extremismo burguês. O processo de promoção destas seitas já começou com as obtusas boas-vindas (inclusive do PAN) aos recém-chegados, a pretexto, imagine-se!, de “refrescarem” as lides parlamentares… E prossegue com a deferência dos meios de comunicação de não as considerar fascistas, nem de extrema-direita, mas apenas “populistas”, no propósito de esbater fronteiras e as acolher “democraticamente”.

As promessas de PS, BE e PCP de darem “continuidade” às medidas de “recuperação” dos últimos quatro anos soam frouxas. Esta espécie de linha geral dá sinal de duas coisas: que a recuperação das condições de vida perdidas nos anos da troika prosseguirá a conta-gotas, estritamente condicionada aos ganhos do capital; e que a acção da massa trabalhadora continuará confinada às reivindicações sindicais e subordinada aos acordos parlamentares. Se assim acontecer, será a melhor maneira de refrear acção política própria da massa trabalhadora, mantendo-a, como nos últimos quatro anos, refém dos compromissos do PS com o capital nacional e europeu. Que o PS o queira, percebe-se. Que PCP e BE sigam atrás, será esquecer a lição da derrota sofrida.

O anúncio do PS de que não fará acordos preferenciais significa, claro, que António Costa quer ter mãos livres para acertos também com a direita. Tenta assim sossegar o patronato (e a União Europeia). Mas o capital e o patronato não vão contentar-se em ter o PS como único garante da estabilidade dos negócios, com as oscilações que os acordos à esquerda, mesmo pontuais, sempre ameaçam. Vão tocar-a-reunir para que a direita — toda ela, sem distinção de cores — se agrupe numa força parlamentar apontada para o mesmo alvo: combater as cedências ao mundo do trabalho, favorecer os privilégios do capital. E o mesmo fora do parlamento.

A burguesia não desleixa a luta de classes. A ofensiva desencadeada nos anos de Passos e Portas, sob tutela de Cavaco, é, nas condições de crise arrastada vivida pelo capital, o seu modelo de luta contra o trabalho. O combate político, a luta de classes, vão por isso mesmo acirrar-se — e a agitação na direita é disso sinal inequívoco.

É para este combate (de natureza política e não apenas reivindicativa) que as classes trabalhadoras terão de se preparar. O conhecimento dos quatro anos passados diz-nos alguma coisa: que uma maioria parlamentar é fraca protecção, que no terreno das instituições ganha quem governa, que a dependência perante o PS amarra os trabalhadores aos planos do capital e do patronato, que “contas certas” é uma forma de dizer que o trabalho só pode ganhar se o capital ganhar mais, que as greves operárias com marca de classe são pretexto para pôr o país em estado de excepção.

Enquanto a massa trabalhadora aceitar ser usada como força de pressão para arrancar concessões através do PS, a sua autonomia política, a sua capacidade para marcar o rumo do país serão nulas. E o campo ficará aberto para que a direita se recomponha do desaire.

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(*) Em 2015: mais de 650 mil votos de diferença, mais de 12% (PS+BE+CDU contra PSD+CDS), sem contar com os 75 mil votos do PAN. Em 6 de Outubro: diferença superior a um milhão de votos, mais de 20%, igualmente sem contar com os 166 mil do PAN e os 55 mil do Livre.


Comentários dos leitores

afonsomanuelgoncalves 14/10/2019, 12:17

As últimas eleições para o parlamento não exprimem apenas a grande derrota sofrida pelo PSD e CDS mas também a pequena derrota do BE e a derrota surpreendente do PCP. que a abstenção acaba por revelar. Nem o apelo lancinante do popular Presidente da República comoveu os sujeitos de uma das maiores abstenções de semplre e isto tem que ser tomado emconsideraçáo sob pena de se tentar tapar o sol com uma peneira. E é nesta omissão que análises tão simpáticas para a dita esquerda parlamentar acaba por ser enganadora.,

leonel clérigo 15/10/2019, 15:59

O DRAMA
Não é muito difícil descortinar que a nossa burguesia capitalista não tem ALTERNATIVA para o PAÍS, não consegue tirar o País do "buraco" e desenvolvê-lo. Por isso seu discurso é eternamente balofo, trapalhão e feito de "miudezas" sem nexo. É o discurso de quem foge, constantemente, "com o rabo à seringa".
Mas as classes trabalhadoras - é este o DRAMA - não têm também Alternativa, salvo meia dúzia de "reivindicações" de colorido "trabalhista" e fatiota "obreirista".
Na minha modesta opinião não se vai lá assim.
Uma alternativa é coisa séria, com pés e cabeça e a ALTERNATIVA POLÍTICA "é uma coisa que se veja" e não um "flatus vocis", um "sopro", mas coisa concreta que aponte para uma melhoria séria da vida dos trabalhadores, da vida da Sociedade. Como se diz: é uma visão de Supermercado, não de Mercearia como as de hoje. O Socialismo é isso: um modo de vida novo.
E como isso se faz? Já se viu, pela experiência, que não basta andar pela rua de "braço no ar" a gritar "palavras de ordem" na sua maioria ocas.
É preciso um PLANO feito de coisas reais, exequíveis, que una os trabalhadores numa "FRENTE AMPLA" e que vá, em crescendo, forçando uma melhoria da vida infeliz dos portugueses, dando-lhes esperança e não a "morte lenta" que o burguês oferece. Para dar "papos" à desgarrada, temos cá os burgueses que são especialistas em tretas.
É por isso que os trabalhadores já se "baldam" e "não votam": já vão vendo, em crescendo, em que peditório estão.


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