Ponto de mira
Ganhou a direita, não nos iludamos
Editor — 2 Fevereiro 2022
A vitória esmagadora do PS passa por ser uma vitória da esquerda só porque travou, para já, o assalto da direita ao governo. O esvaziamento do BE e do PCP, o desaparecimento do PEV, o crescimento da extrema direita nas figuras do Chega e da IL parecem detalhes que o sucesso de António Costa deixa na sombra. Os números, porém, dizem outra coisa (1).
O conjunto da direita (PSD, CDS, IL, Chega) arrecadou, em termos líquidos, 549 mil votos mais do que em 2019. A esquerda parlamentar (PS, PCP, BE, PEV, Livre, PAN) teve, também em termos líquidos, quase 36 mil votos a menos. Em balanço geral, a vantagem da esquerda, que em 2019 foi de 1.142.000 votos, baixou para 557 mil. O número de votantes aumentou quase 336 mil (excluindo brancos e nulos), a maior fatia dos quais terá votado à direita.
Na direita, o PSD colheu (no Continente) mais 78 mil votos do que em 2019, o CDS perdeu 130 mil e o Chega e a IL ganharam 522 mil. Ou seja, dentro da direita houve uma deslocação de votos para a extrema direita. (2)
Na esquerda, o PS (mais 380 mil votos) cresceu à custa de BE, PCP, PEV e PAN (menos 429 mil votos), o que quer dizer que boa parte do eleitorado da esquerda parlamentar se deslocou para a direita. O Livre, com mais 13 mil votos, não altera esta realidade.
A direita, cujo programa recupera a linha política da troika, tinha como meta suplantar o PS, cujo programa é a linha da “austeridade moderada”. Sem outra escolha, a maioria do eleitorado optou, racionalmente, pelo menor dos males.
A direita não alcançou o objectivo de desbancar o PS e chegar ao governo de um só golpe. Mas conseguiu encostar o PS à parede: sem contrapesos à sua esquerda, o PS já não pode apresentar-se como fiel de balança entre a esquerda e a direita. As pressões patronais encarregar-se-ão de forçar os entendimentos “ao centro”. Dentro do próprio PS, cantam vitória os adversários da geringonça. Tudo concorre para esbater a diferença entre a austeridade dura da troika e a austeridade branda do PS.
BE e PCP foram durante seis anos a esquerda do PS, o grilo falante que lembrava a Costa a necessidade de contentar os trabalhadores com algumas medidas de básica justiça. Como tal foram entendidos pela maioria dos seus eleitores, educados na ideia de não exigir mais do que seria possível conseguir, gota-a-gota.
Por isso mesmo, BE e PCP não foram entendidos quando romperam o acordo com o PS — porque esses mesmos eleitores, na sua maioria, os queriam como eles se mostraram em 2015: como ala esquerda do PS e não mais do que isso. Daí a deserção em direcção ao PS.
Os primeiros argumentos do BE e do PCP para explicar a derrota foram, não surpreendentemente, iguais. Resumiram-se a desculpas — que quase se poderiam chamar técnicas — sobre a “bipolarização artificial” entre PS e PSD, o voto útil reclamado pelo PS, a “ambição” do PS pela maioria absoluta, ou a chantagem sobre os perigos da extrema direita. Mas nada disto explica o que é que na política do BE e do PCP (nomeadamente nos últimos seis anos) levou a entregar boa parte dos seus eleitores ao PS e a quase os apagar como forças políticas.
Aqueles resultados são espelho da despolitização da massa trabalhadora, que se evidencia na perda de noção dos interesses de classe próprios e na ausência de acção própria para os defender. PCP e BE contribuíram para essa despolitização. Jerónimo e Catarina repetiram apelos à paciência, dizendo que não se poderia ter tudo num dia. As greves e lutas laborais diminuíram significativamente, algumas foram mesmo caluniadas.
As exigências feitas pelo BE e pelo PCP ao governo não escondem a quebra verificada na acção de massas. Tais exigências apresentaram-se como um substituto dessa acção, e não como um incentivo à intervenção por iniciativa dos trabalhadores. O impulso de luta contra a troika que se desenvolveu nos anos do governo Passos-Portas, e que o desgastou, foi amortecido em vez de ter sido multiplicado.
(Não por acaso, o CC do PCP veio, em 2 de fevereiro, dizer que “a situação do país exige o desenvolvimento e a dinamização da luta de massas”. Pois claro…)
Uma parte da massa trabalhadora tornou-se assim mais vulnerável a promessas moderadas que acenam com uma melhoria paulatina, mas ilusória, das condições de vida. São a parte que o PS atrai. Outra parte, não negligenciável, desses trabalhadores — os mais desesperados, mais alheios à política, situados no patamar mais baixo da escala social — fica vulnerável à propaganda fascista. São estes que se deixam levar pelo palavreado desbragado do Chega.
Quando os partidos do poder exaltam os méritos do “centro” e tentam cativar aquilo a que chamam “classes médias”, referem-se a uma vasta massa pequeno-burguesa que lhes serve de sustentáculo, e que para isso tem de ser fidelizada à custa de promessas. Essa massa leva atrás de si sectores proletários que dela se distinguem socialmente mas que dela não se distinguem politicamente se estes não souberem demarcar os seus interesses de classe. A massa trabalhadora — enquanto personagem política com vontade própria, interesses próprios, programa próprio — foi assim, uma vez mais, a grande ausente da campanha e das eleições.
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(1) Números conhecidos em 31 de janeiro. A falta de dados sobre os círculos da Europa e Fora da Europa pode alterar ligeiramente os valores apurados.
(2) Nos Açores e na Madeira, este ano, PSD e CDS concorreram coligados, não sendo possível destrinçar os votos de cada um. No somatório nacional, PSD e CDS em conjunto tiveram, em 2022, mais 14 mil votos do que em 2019, confirmando-se que o crescimento da direita se deveu sobretudo à extrema direita.
Nota: foram feitas correcções aos valores das votações (3 de fevereiro).
Comentários dos leitores
•Leonel Lopes Clérigo 3/2/2022, 14:11
TUDO NA MESMA, COMO A LESMA...
"O primeiro acto do drama revolucionário no continente europeu terminou. Os "poderes que existiam" antes do furacão de 1848 são, de novo, "os poderes que existem"..."
1 - São estas as primeiras palavras do texto de ENGELS "REVOLUÇÃO e CONTRA-REVOLUÇÃO na ALEMANHA". E a citação foi aqui posta apenas para recordar ser mais frequente do que se julga, que os "poderes que existiam" voltem a ser os "poderes que existem". Parece ser isto coisa velha. As REVOLUÇÕES são raras e, por isso, há que aproveitá-las para se mudar seriamente o RUMO das coisas.
Mas não se pense que tal coisa - o "regresso dos Poderes" - se tenha passado apenas com o último acto eleitoral, ou com "maioria absoluta" ou sem ela, com "arco da governação" ou sem ele. Desde o 25 de NOVEMBRO que os "poderes que existiam" voltaram - sucessivamente - a ser "os poderes que existem". E não é por acaso que este PAÍS não se aventura a sair da "cepa torta" para se afrontar com uma mudança séria a favor da sua gente.
NOVEMBRO criou - como seu suporte - uma "Nova" Classe - dita CLASSE MÉDIA, a protagonista da "cepa torta" - que por mais que se espere dela como classe decisiva, com licenciaturas ou sem elas... nunca poderá dispor de rasgo nem dinâmica para DESENVOLVER o PAÍS. Com sua natureza de "classe TAMPÃO", seu papel é deixar, eternamente tudo, mais ou menos, como está. E apesar da sua "enorme qualificação", não é capaz de descortinar isso nem ver mais longe - como gostam de dizer "poeticamente" - que a "espuma dos dias". Por isso, o "fossilizado discurso LIBERAL" toca sempre bem fundo na sua alma. Menos seus "resultados", claro!
2 - Esta "heresia" que escrevi acima dava, na IDADE MÉDIA CRISTÃ, direito à fogueira. E se o Dr. João Soares estivesse à frente do Arcebispado de Braga dava fogueira, com certeza, mesmo que na altura houvesse "DEMOCRACIA INSTITUÍDA".
Mas, heresia aparte, não digo mais do que o último parágrafo do texto acima do MV, com o qual concordo. E a questão parece-me ser agora uma: como explicar aos muitos "AUSENTES" que há maneira de se lá chegar? Para isso, será preciso um PROJECTO POLÍTICO CLARO e SÓLIDO - que não há - que substitua a meia dúzia de "reivindicações" desgarradas (ao jeito sindical) dirigidas mais à "ALMA" dos PORTUGUESES do que ao seu ENTENDIMENTO. E vimos agora como, com um simples TRUQUE de "guerra de sondagens", se despertam mais ALMAS que CONSCIÊNCIAS.
Demorará isso tempo? O que fôr preciso e na convicção que não é com PRR que se resolvem os PROBLEMAS do PAÍS, distribuindo "bazucas" ditas "científicas" pelas clientelas "OCIOSAS" do costume que "INVESTEM - como sempre e em nome da "Reprodução Ampliada" - em FERRARIs vermelhos às portas das discotecas".
Vai uma aposta...
•AP 3/2/2022, 17:30
Acho esta análise interessante. Levanta pontos imporantes. No entanto queria assinalar alguns pontos com os quais discordo (porque os dados com um intervalo de tempo maior apontam noutro sentido). Por pontos:
1. A direita (não) subiu
A direita (PSD/CDS/Chega/IL) de facto subiu se apenas olharmos para as eleições de 2019 e de 2022. No entanto se olharmos a mais longo prazo (só olhei até 1987) vemos que há uma clara tendência de redução de votos neste grupo a que chamo direita. No auge do Cavaquismo tínhamos cerca de 3.1 milhões de votos neste grupo e actualmente temos cerca de 2.4 milhões. Dirão que é da abstenção. O Passos Coelho foi eleito com maior abstenção que nestas últimas eleições e no entanto a direita teve cerca de 2.75 milhões de votos (mais 350 mil que nestas últimas eleições). Se recuarmos a 2009 (segunda eleição do Sócrates) temos praticamente os mesmo votos na direita que nestas últimas eleições e igual abstenção.
Portanto, para mim a direita (e o capitalismo) mostram algum desgaste Governo após Governo de constante subdesenvolvimento económico, constante aumento de desigualdades, etc. A arma de combate da direita é a criação de novos partidos, iguais ideias, mas nomes novos. IL e Chega em vez de PSD e CDS.
2. Crescimento da extrema direita
Primeiro que tudo não concordo com o termo extrema direita dado tanto ao Chega como à IL, são-o tanto como o CDS e o PSD, são partidos burgueses, neoliberais. Cada um uma variante em nota diferente: um mais Cristão, outro mais nacionalista, outro mais pró-mercado, e o outro dá um toque em todos. Mais, é verdade que nestas eleições a queda do CDS não justifica os gajos quer da IL quer do Chega, mas a história não termina em 2019. De 1995 a 2011 o CDS teve sempre aproximadamente 500 mil votos. Atingiu o pico em 2011 e depois coligou-se com o PSD e com o Governo do Passos com o Portas e o desclabro que foi, perdeu mais de metade dos eleitores em 2019 e outros tantos agora em 2022. As perdas do CDS desde os seus tempos aureos de 2011 foi transferida para o Chega e a IL, ao mesmo tempo que o PSD tem vindo a decrescer paulatinamente, nas sem parar.
3. Os bois pelos nomes
A minha análise é que há uma facção de eleitores de direita (PSD/CDS) que com o choque do governo do Passos ficaram escaldados e recusaram-se a votar PSD/CDS e isto viu-se claramente em 2015. A questão é que muitos mantiveram-se na abstenção. E foi devido a isso que, num passo de valsa, surgiu o Chega e o IL (nascidos do berço PSD/CDS) qual Fénix renascida. E isto funcionou, permitiu que quem ficou escaldado com o Passos podesse continuar a votar à direita sem perder a face.
4. Reposta da Esquerda
O PCP e o Bloco, no extase do número elevado de deputados e na ilusão de deixarem de ser um zero à esquerda tendo um papel a sério nas políticas de um Governo, entraram no jogo político reformista de mais 10E para o salário mínimo, mais 0.5% para as pensões, mais 0.73% para o SNS. E ficou-se assim, focado num horizonte de redistribuições mínima do pouco que existe. Para trás fica o porquê do nosso subdesenvolvimento, o porquê do alto endividamente. Zero discussões sobre as implicações do quantitative easing e o seu impacto na inflação (Austeridade 2.0). Nada sobre o PRR que mais não é que receber uns biliões da UE e devolver à UE na compra de tudo o que é necessário para implementar o PRR, ficando zero em Portugal. Fica a política patriótica de esquerda, que não se sabe o que é nem que lugar tem num mundo em que o capital se organizou internacionalmente e Portugal é um grãozinho de arroz.
•jmluz 8/2/2022, 13:23
"A massa trabalhadora — enquanto personagem política com vontade própria, interesses próprios, programa próprio — foi assim, uma vez mais, a grande ausente da campanha e das eleições."
Pois foi e por isso é um excelente tema a ser discutido em encontro presencial a convocar pelo MV a todos quanto estejam preocupados com tal situação.