Os limites da globalização imperialista

Editor / Domenico Moro — 17 Agosto 2023

A tendência globalizadora do capital verificada nas últimas três décadas parece abeirar-se de um limite

O artigo seguinte, do italiano Domenico Moro, procura realçar as contradições que crescem presentemente no mundo capitalista em resultado da guerra económica movida pelos EUA contra a China, seu principal competidor. A divisão que está em marcha entre os dois colossos arrasta para um ou outro lado economias e países de todo o globo, apontando para a formação de dois campos económicos opostos e em confronto político.

A DIALÉCTICA DA GLOBALIZAÇÃO E DESGLOBALIZAÇÃO NO CONFRONTO ENTRE EUA E CHINA

Domenico Moro, Laboratorio per il socialismo del XXI secolo, 27 julho 2023

Ocorreram recentemente factos, aos quais os meios de comunicação social italianos não deram o devido destaque, que mostram, por um lado, a extensão do conflito entre os EUA e a China e, por outro lado, o surgimento de contradições internas que afectam o Ocidente, e os EUA em particular.

O confronto competitivo entre os EUA e a China, que é a verdadeira marca das actuais relações internacionais, juntamente com a guerra na Ucrânia, alarga-se cada vez mais ao campo económico. Trata-se de uma verdadeira guerra económica, tendo os dois colossos mundiais como protagonistas. Há pouco tempo, os EUA bloquearam a exportação de microchips para a China, que, em retaliação, bloqueou a exportação de matérias-primas como o gálio e o germânio, decisivos para a fabricação de produtos de alta tecnologia, entre os quais também os microchips.

Presentemente, o conflito estende-se à rede de cabos submarinos, que representa um aspecto decisivo das comunicações e, portanto, da economia mundial. De facto, através de uma rede de 1,4 milhões de quilómetros de cabos dispostos no fundo do mar, passam 96% do tráfego de dados e de voz. Sem esta rede de cabos não haveria globalização. Portanto, o controle sobre estes cabos é fundamental para controlar a economia mundial. Como a instalação desses cabos é realizada principalmente por empresas norte-americanas, qualquer interferência de empresas chinesas parece ser potencialmente perigosa e, portanto, de contrariar.

Um exemplo é representado pelo SeMeWe 6, um cabo de fibra de 19 200 quilómetros que até 2025 deverá ligar Singapura a Marselha, passando pelo Egipto. A encomenda foi ganha pela empresa chinesa HMN Tech, que pediu 475 milhões de dólares pelos seus serviços. No entanto, os trabalhos foram entregues a outra empresa, a norte-americana SubCom, embora o orçamento, de 600 milhões de euros, fosse superior. A intervenção do governo norte-americano determinou o afastamento da empresa chinesa a favor dos EUA.

Mas este não é o único caso de intervenção do governo norte-americano. Em 2020, impediu a ligação directa, via cabo submarino, entre Los Angeles e Hong Kong. Após várias controvérsias, o cabo parou nas Filipinas e em Taiwan, excluindo a República Popular da China. Além disso, as disputas entre a China e os EUA sobre a soberania no Mar da China Meridional levaram vários consórcios industriais, da Abricot à Echo, a criar um novo hub de cabo, na ilha de Guam, que está sob controlo dos EUA. Em resumo, podemos dizer que até agora os EUA conseguiram limitar a presença chinesa nos cabos submarinos: a empresa chinesa HMN Tech está activa apenas em 10% dos cabos existentes ou planeados.

A China, porém, não fica de braços cruzados, até porque percebeu que o confronto competitivo com os EUA se verifica sobretudo na alta tecnologia, sector no qual tem reforçado os seus investimentos. Uma parte significativa dos investimentos esta ligado à Rota Digital da Seda, em particular ao Peace Cable, uma estrutura que parte do Paquistão, toca o Quénia, Djibuti e o Egipto, e chega a Marselha. Essa infraestrutura permite à China lançar e consolidar as suas próprias actividades comerciais em Africa, o continente com maior crescimento populacional e ampla disponibilidade de matérias primas. 

Outro importante cabo controlado pela China é o Sail, entre os Camarões e o Brasil. Além disto, há novos projectos chineses, como o Ema, um projecto de cabo submarino de 500 milhões de dólares, que ligará a Asia à Europa, via Médio Oriente. Neste caso, o objectivo da China é competir com os cabos existentes, sob controlo dos Estados Unidos.

O resultado final deste confronto entre EUA e China poderia ser o aparecimento de duas internets, ou seja, a fractura da rede, o que determinaria a criação de duas networks, uma sob controlo dos EUA e outra sob controlo da China. O impulso para a separação é determinado pelo facto de a decisão de onde, quando e como construir um cabo permitir interceptar informações e criar dependência tecnológica. Os proprietários dos cabos podem inserir backdoors e outros mecanismos de supervisão. Além disso, o que nesta data é seguro, graças à criptografia tradicional, pode não ser seguro no futuro com computadores quânticos. De tudo isto nasce a tendência de separação das redes de cabo, introduzindo barreiras físicas e virtuais para a protecção dos dados.

Os outros factos importantes a considerar nos processos de fragmentação do mundo globalizado dizem respeito às contradições internas ao bloco ocidental e às áreas sob sua influência. Um primeiro exemplo surgiu durante a cimeira entre a União Europeia e a CELAC [Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos] que reúne 33 países latino-americanos. Nesta cimeira, a UE queria produzir um documento final condenando a Rússia pela eclosão da guerra na Ucrânia. Tal não foi possível, face à oposição de alguns países latino-americanos. De resto, em Fevereiro passado, na ONU, uma resolução condenando a Rússia registou o voto contrário da Nicarágua e a abstenção da Bolívia, Cuba e El Salvador. 

Nem mesmo no G20 houve uma visão comum da guerra na Ucrânia, um conflito entendido de formas cada vez mais diferentes entre os continentes. Muitos países, especialmente em Africa, mas também na América Latina, aproximam-se dos BRICS e da China. Entre eles está a Argélia, que é um país fundamental para o fornecimento de gás a Itália e à Europa, em substituição do gás russo, e que nos últimos dias solicitou a admissão ao Novo Banco de Desenvolvimento, o banco do BRICS. O pedido argelino foi prontamente aceite pela China, aumentando o mau humor dos Estados Unidos.

Mas talvez a contradição mais flagrante é a que se está a verificar nos Estados Unidos. Conforme dissemos,  o governo Biden bloqueou as exportações de microchips para a China, que por sua vez interrompeu a exportação de matérias primas estratégicas para os EUA. A Associação da Indústria de Semicondutores, que reúne as empresas norte-americanas do sector, convidou insistentemente o governo Biden a abster-se de novas restrições à venda de chips para a China. 

Segundo os industriais norte-americanos, entre os quais colossos como Intel, Qualcomm e Nvidia, a guerra aos intercâmbios tecnológicos e os novos limites de exportação que estão a ser estudados em Washington podem causar grandes prejuízos e frustrar o  Chips Act [Lei sobre chips e ciência]. Este constitui um plano de apoio à indústria tecnológica, lançado por Biden, que consagra a avultada cifra de 280 mil milhões de dólares para estimular a investigação científica e em particular a produção de semicondutores. 

Biden está, nomeadamente, a avaliar a possibilidade de lançar uma ordem executiva que deverá estabelecer limites ao acesso de grupos chineses aos chips necessários para desenvolver tecnologias de inteligência artificial mais avançada. Contra esta decisão interveio a Nvidia, argumentando que uma proibição das exportações de chips de inteligência artificial para a China “levaria a uma perda permanente de oportunidades para a indústria norte-americana e para a sua competitividade”.

Os grandes grupos de alta tecnologia dos EUA, principalmente os da indústria de semicondutores, temem retaliações da China, que é um mercado muito importante para eles. A Qualcomm é a única empresa licenciada pelas autoridades norte-americanas para vender chips de telemóveis para a Huawei Techonology. A Nvidia vende um chip AI (de inteligência artificial) optimizado para o mercado chinês, enquanto o director executivo da Intel visitou recentemente a China para promover os seus chips AI.

Parece assim óbvio que o crescente conflito entre a China e os EUA produz divisões no capital norte-americano: uma fracção, a da alta tecnologia e dos semicondutores, opõe-se à separação entre a economia norte-americana e a chinesa, enquanto outras fracções, incluindo o complexo militar-industrial e a indústria extractiva, pressionam por um maior afastamento, receosos de que as exportações de tecnologia dos EUA possam beneficiar a economia e especialmente a indústria de guerra chinesa. A criação de duas redes distintas de cabos submarinos põe em causa o próprio símbolo da globalização, a Internet.

Em resumo, o quadro dos factos descritos evidencia que o confronto geopolítico e estratégico com a Rússia e sobretudo com a China é caracterizado por uma contradição no seio dos Estados Unidos (mas também dentro da UE) que se aprofunda cada vez mais: contradição, no plano político mas também económico, entre as forças que tendem a produzir a fragmentação do mercado mundial, ou seja, a desglobalização, e as forças que pretendem defender a unidade do mercado mundial, ou seja, a globalização.

De momento, parece que essas forças se equilibram. Inclusive porque recentemente alguns representantes do establishment norte americano fizeram uma visita a Pequim para tentar remendar uma relação cada vez mais rasgada. Particularmente significativas foram as viagens recentes da ministra do Tesouro, Janet Yellen, que representa evidentemente as preocupações dos EUA com a possibilidade de a China pôr fim às compras dos títulos públicos norte-americanos, e também, mais recentemente, de Henry Kissinger, que, embora tendo-se apresentado como simples cidadão, foi recebido ao mais alto nível pelo Presidente Xi Jinping e representa certamente uma fracção importante do capital norte-americano.

Provavelmente, pelo menos para já, mais do que uma desglobalização, baseada na dissociação das economias chinesa e norte-americana (e da UE também), estamos a presenciar o início de um processo de de-risking, ou seja, redução do risco de interromper as cadeias de valor. Com a redução do risco, a tendência é para encurtar as cadeias de valor, posicionando os vários processos de produção e abastecimento de matérias primas, produtos semi-acabados e componentes, em zonas geopoliticamente mais seguras, re-internalizando as actividades [produtivas] nas zonas [dominadas pelos ] EUA, UE e Japão — as que mais massivamente deslocalizaram essas actividades no período de expansão da globalização. O problema é que as zonas seguras — ou seja, dependentes e controladas pelo G7, o designado Ocidente colectivo — nem sempre são zonas assim tão seguras, porque muitos países da esfera ocidental estão a voltar-se para os BRICS e, em particular, para a China.

Para concluir, podemos dizer que a contradição globalização-desglobalização é reflexo das contradições do mundo de produção capitalista, na sua fase imperialista. O capital é a tendência de superar continuamente os limites do mercado e, simultaneamente, a competição permanente entre as partes, acentuada pelo crescimento desigual, que determina o proteccionismo e as sanções. Por isso, o capital vive uma dialéctica permanente entre o alargamento e a fragmentação do mercado mundial. 

A questão está em entender, em cada situação, qual das tendências prevalece, globalização ou desglobalização. Perceber isto é importante também para prever se e como as guerras ocorrem. Com efeito, se bem que guerras limitadas e de baixa intensidade possam ocorrer mesmo em fases de expansão da mundialização, como provam os exemplo do Iraque, Afeganistão, Síria e Líbia, a eclosão de guerras de alta intensidade, mais extensas e generalizadas, é largamente favorecida pelas fases de desglobalização.

Tradução MV

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Nota do editor

A tendência globalizadora do capital verificada nas últimas três décadas parece abeirar-se de um limite, assistindo-se à possibilidade de uma travagem da expansão imperialista dominada pelos EUA e seus principais parceiros, a UE e o Japão. Esta situação, como Domenico Moro destaca, gera nos EUA e no campo imperialista contradições internas, e agrava as possibilidades de guerras localizadas ou generalizadas.

Para além disso, acrescentamos nós, os obstáculos que se levantam no curso — que parecia imbatível — do capital imperialista, dão sinal de uma realidade com novos contornos. O declínio do bloco EUA-UE-Japão, quebrando a sua hegemonia, abre campo a que países e regiões até agora manietados por instituições como o G7, o Banco Mundial ou o FMI, encarem a possibilidade de um desenvolvimento liberto da tutela das instituições imperialistas. 

Esse desenvolvimento dar-se-á, forçosamente, dadas as condições presentes, em moldes capitalistas. Mas a mudança material e social que tal evolução representará no plano mundial vai inevitavelmente abrir caminho a novos avanços políticos na luta anti-capitalista, desde logo pela massa de proletários que arrastará para o terreno do confronto de classes.

Vista por este prisma, a alteração profunda do balanço de forças, com alcance mundial, a que estamos a assistir é prenúncio de um novo ciclo de revoluções socialistas.

Pode, pois, a respeito desta situação, reafirmar-se o que foi dito sobre a crise desencadeada em 2008 :

“Compreender a natureza da actual crise é crucial para saber o que está em causa e decidir das respostas políticas a dar. Do nosso ponto de vista, não está em causa apenas uma quebra económica no mundo dos negócios. O que se passa sob os nossos olhos é a falência do sistema produtivo capitalista. É uma civilização inteira que se decompõe. 

A presente crise tem pois um potencial revolucionário como não tiveram as crises do passado mais recente: ela é o sinal de que se fechou a época de expansão capitalista iniciada com o segundo pós-guerra e que se criam, com isso, condições para um novo ciclo revolucionário à escala mundial. 

As novas revoluções sociais, inevitáveis, desenrolar-se-ão num patamar de desenvolvimento muito superior ao do passado, e contarão com massas trabalhadoras muito mais vastas e mais instruídas. As condições para o sucesso do socialismo à escala global são hoje muito mais favoráveis do que há um século, ou mesmo há 60 ou 30 anos atrás.” 

(Do manifesto Enfrentar a crise, lutar pelo socialismo – uma perspectiva comunista)


Comentários dos leitores

José Manuel Almeida 18/8/2023, 12:27

Camaradas
Gostava de assinar o Mudar de Vida.
Como é possível fazê-lo?
Obrigado

mraposo 18/8/2023, 12:57

Camarada J M Almeida
Não é preciso assinar, o site do MV é de aceso livre. Vamos incluir o seu email na nossa lista de endereços e passará a receber uma mensagem sempre que haja novos artigos. Agradecemos o seu interesse.
Saudações

António Veríssimo 26/8/2023, 14:42

O MUDAR DE VIDA em destaque:
https://www.facebook.com/groups/434509220376620

Adilia Maia 4/9/2023, 9:52

O texto de Domenico Moro é muito bom e esclarecedor e a Nota do Editor é imperdível. É`bom encontrar gente inteligente e honesta num mundo que se encontra à beira do precipício. Só espero que estas sanções à China conheçam o mesmo sucesso que tiveram as lançadas contra a Rússia e que o feitiço se vire contra o feiticeiro. Como pode um país que é um símbolo maior do capitalismo mundial incorrer em contradições tao flagrantes sem pestanejar, afinal onde ficou a tão acarinhada liberdade dos mercados ou esta só é para funcionar quando convém a um dos mercadores?
Para quem nao percebeu inicialmente e encheu a boca com: A Rússia é o agressor, talvez agora caia a ficha mas nao sei pois como Einstein disse : há duas coisas que me enchem de espanto, a infinitude do Universo e a infinitude da estupidez humana;mas da primeira tenho algumas dúvidas.


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