Documento
Enfrentar a crise, lutar pelo socialismo
Uma perspectiva comunista
14 Março 2013
“O que se passa sob os nossos olhos é a falência do sistema produtivo capitalista. É uma civilização inteira que se decompõe. A presente crise tem pois um potencial revolucionário como não tiveram as crises do passado mais recente: ela é o sinal de que se fechou a época de expansão capitalista iniciada com o segundo pós-guerra e que se criam, com isso, condições para um novo ciclo revolucionário à escala mundial”.
Este é um dos pontos de vista expressos no manifesto Enfrentar a crise, lutar pelo socialismo – Uma perspectiva comunista, divulgado no início deste ano, que publicamos de seguida na íntegra.
ENFRENTAR A CRISE, LUTAR PELO SOCIALISMO
Uma perspectiva comunista
Crescem as vozes que reclamam um novo rumo político para o país. As manifestações e lutas de massas dos últimos anos mostram que ganha adeptos a ideia de que é preciso fazer frente à austeridade, ao governo e à Troika. A ilusão de aceitar sacrifícios em nome do futuro perde terreno.
Mas, que fazer para travar a pilhagem do trabalho pelo capital? Como assegurar emprego e vida digna à população trabalhadora? Como acabar com os privilégios dos grandes patrões, dos gestores e dos políticos que os servem? Como pôr fim à acção de especuladores e corruptos? Como impedir a fascização das instituições? Como rejeitar as ordens de Berlim ou de Bruxelas? Como desvincular o país das guerras da NATO? Enfim, que fazer para derrubar as barreiras que travam as aspirações do movimento popular?
Estas perguntas, colocadas pelo momento que vivemos, têm de ter resposta. Sem isso, o movimento popular não ganhará capacidade para fazer frente aos desafios da situação, e vencerá a ideia de que não há alternativa à força cega do capital.
Compreender a natureza da actual crise é crucial para saber o que está em causa e decidir das respostas políticas a dar. Do nosso ponto de vista, não está em causa apenas uma quebra económica no mundo dos negócios. O que se passa sob os nossos olhos é a falência do sistema produtivo capitalista. É uma civilização inteira que se decompõe.
A presente crise tem pois um potencial revolucionário como não tiveram as crises do passado mais recente: ela é o sinal de que se fechou a época de expansão capitalista iniciada com o segundo pós-guerra e que se criam, com isso, condições para um novo ciclo revolucionário à escala mundial.
As novas revoluções sociais, inevitáveis, desenrolar-se-ão num patamar de desenvolvimento muito superior ao do passado, e contarão com massas trabalhadoras muito mais vastas e mais instruídas. As condições para o sucesso do socialismo à escala global são hoje muito mais favoráveis do que há um século, ou mesmo há 60 ou 30 anos atrás.
Com o texto que se segue, procuramos retomar a linha de pensamento e de acção prática do marxismo revolucionário: em vez da tentativa inútil de equilibrar os antagonismos da sociedade burguesa é preciso apontar para o derrube das relações sociais que produzem esses antagonismos.
Propomos uma reflexão sobre o modo como a esquerda deve encarar a presente crise do capitalismo, a fim de encontrar novos caminhos para a acção política dos trabalhadores e no sentido de congregar todos os que se revêem no marxismo revolucionário.
Por uma Plataforma Comunista
Dezembro 2012
I. O ESTADO DO MUNDO
A crise actual espelha a decadência da sociedade fundada sobre o capitalismo. Revelar as suas origens e a sua natureza é perspectivar as condições para lhe fazer frente
Uma crise sem fim à vista
1. O capitalismo arrasta-se numa crise sem fim à vista. O crescimento económico global está bloqueado. Por todo o mundo, a única resposta das classes dominantes tem sido uma transferência brutal e acelerada de riqueza para o capital, especialmente para as mãos de um núcleo cada vez menor de capitalistas.
2. Nos países de capitalismo mais desenvolvido a burguesia desencadeou uma ofensiva em toda a linha assente num confronto de classe directo. O pacto social que vigorou no segundo pós-guerra foi varrido. As expectativas de bem-estar e progresso gradual desapareceram. Pode ver-se hoje que não se entrara afinal numa nova era capitalista, apenas se vivera por curtas décadas uma conjuntura excepcional.
Nas regiões menos desenvolvidas, que nunca chegaram a ter as vantagens sociais do primeiro mundo capitalista, o proletariado sofre uma exploração brutal, praticamente sem direitos laborais ou sociais. E o declínio desses direitos no mundo desenvolvido antecipa a evolução que se irá dar nos demais países.
3. A massa trabalhadora, empobrecida a passos largos, não encontra caminho de saída. As suas conquistas sociais e laborais, onde as há, vão sendo lapidadas.
O desemprego maciço, muito dele tornado permanente, faz crescer a competição entre os trabalhadores. As suas organizações de classe são fustigadas por leis cada vez mais reaccionárias e perdem força reivindicativa. Os partidos nos quais os trabalhadores mais politizados ainda vêem uma trincheira de defesa perdem influência e resignam-se ao papel de levantar reclamações de natureza democrática, sem capacidade para travar, quanto mais inverter, o rumo dos acontecimentos.
4. A perspectiva de uma revolução social – isto é, de substituir as classes no poder, e não apenas de mudar os administradores do actual poder – está desacreditada ou é vista sem esperança. No entanto, só essa perspectiva responde à presente crise do sistema capitalista e às necessidades do mundo de hoje. É este o nó górdio que precisa de ser rompido.
Crise económica, crise geral
5. A crise que o capitalismo atravessa não se resume a mais uma quebra dos negócios, nem resulta de uma globalização “selvagem” ou de uma liberalização “sem regras” do comércio mundial.
As origens do colapso financeiro de 2007-2008 remontam à década de 1970 e radicam numa queda da taxa de lucro dos capitais. Depois do crescimento impetuoso subsequente à segunda grande guerra, o ritmo de acumulação do capital nos grandes centros mundiais foi sofrendo uma desaceleração. Com altos e baixos, mantém-se há perto de 40 anos com reduzidas taxas de crescimento, correspondentes a cerca de metade do que se verificou no segundo pós-guerra.
6. O aumento exponencial da produção e da concorrência, conjugado com a redução dos salários relativos (por comparação com o volume atingido pela produção), conduziu a um excesso de bens, tornados invendáveis pela quebra relativa da procura global, e a um excesso de capital sem aplicação produtiva. O estoiro de 2007-2008 (iniciado no coração do capitalismo mundial, e não na periferia) foi o desembocar deste longo processo.
A origem da crise não está, portanto, na falta de produção, ou na baixa produtividade do trabalho, mas sim, pelo contrário, na sobreprodução e na consequente quebra de rentabilidade do capital – resultantes do progresso tecnológico e do enorme aumento da capacidade produtiva do trabalho social.
7. Também não se trata apenas de uma decadência dos velhos países industrializados e de uma substituição do seu papel pelo dos países emergentes. A decadência do Ocidente capitalista e do Japão condiciona e arrasta para o fundo as economias capitalistas em desenvolvimento.
Os novos centros de acumulação que procuram afirmar-se – como a China, a Índia, ou o Brasil – apesar de, por enquanto, continuarem a crescer, fazem-no a ritmos progressivamente menores precisamente pelo peso negativo que a crise das grandes economias tem no crescimento mundial.
A existência de países em crescimento económico não anula, pois, a natureza global da crise do sistema capitalista.
8. Esta quebra do sistema capitalista mundial como um todo contraria a ideia de que se assiste apenas a uma “transferência” de poder económico entre regiões do globo. Além disso, essa “transferência” é, na verdade, uma competição feroz entre novas e velhas potências capitalistas sustentadas em gigantescos grupos económicos com interesses planetários e mobilizando para o efeito todo o aparato dos respectivos Estados.
9. A profundidade sem precedentes e o carácter global da presente crise colocam o sistema capitalista num beco do qual não poderá sair por medidas estritamente económicas. Não se perspectiva um novo ciclo de progresso, com correspondente absorção da força de trabalho entretanto despedida. Pelo contrário, os prognósticos de estagnação e mesmo de recessão mundial para os próximos anos apontam para o agravamento e não para a atenuação dos problemas, mostrando que estamos no início de uma crise de longa duração.
As medidas de “estímulo” aplicadas pelos governos mostram-se ineficazes e, na melhor das hipóteses, apenas conseguirão adiar novos colapsos.
A única via de resposta à crise que o capitalismo comporta consiste na destruição maciça de capital em volumes nunca antes vistos, nomeadamente por recurso a guerras destruidoras.
Competição entre potências capitalistas
10. Esta crise assinala a decadência dos EUA como potência hegemónica do capitalismo mundial. Com os EUA, são arrastados os dois outros elementos da tríade capitalista, a União Europeia e o Japão. Mas reconhecer a decadência destas potências não significa dizer que o seu papel dominante desapareceu ou que cessaram as ameaças que exercem sobre o mundo.
Pelo contrário. O crescente poder e sobretudo a independência das novas potências, ao representar uma séria ameaça para a hegemonia dos EUA, da UE e do Japão, leva estes blocos imperialistas a não aceitar o processo de modo pacífico.
Diminuída a sua capacidade de competição no plano económico, recorrem a todos os meios para manter essa hegemonia – nomeadamente usando a superioridade militar. É esse o significado da aliança entre os EUA e a União Europeia no quadro da NATO, materializada nas guerras desencadeadas contra a Jugoslávia, o Afeganistão e o Iraque; do combate às revoltas árabes iniciadas em 2011 (com especial relevo para os ataques à Líbia e à Síria); do crescente papel consignado a Israel como estado-mercenário do imperialismo; dos planos para estender o controlo militar à África; e do cerco que vai sendo montado à China e à Rússia.
11. Não pode, portanto, ser posta de lado a possibilidade de esta competição enveredar pela acção militar generalizada. A guerra torna-se mais provável à medida que a crise se eterniza e mina as bases económicas das principais potências ocidentais. As guerras regionais mais recentes (Jugoslávia, Iraque, Afeganistão, Líbia, Síria), as ameaças ao Irão, bem como o fomento pelo imperialismo de rivalidades regionais, religiosas e étnicas e de nacionalismos retrógrados, são prelúdio de acções de maior envergadura que podem levar as potências ao confronto directo.
Crise da civilização burguesa
12. O discurso dominante sobre a crise procura reduzir o problema às questões económicas ou mesmo financeiras. É a tentativa de absolver o sistema social capitalista. Na verdade, o que está em causa não é a “economia”, mas a economia capitalista; a crise não se limita aos negócios, mas atinge uma civilização inteira.
Esta redução da crise ao “económico” e ao “financeiro” penetrou, porém, o senso comum e mesmo a esquerda, que tendem a aceitar o discurso moral sobre a ganância de uns quantos capitalistas ou a incompetência dos dirigentes, a inverter causas e efeitos da crise e a acreditar em soluções paliativas que não tocam na origem dos problemas.
13. Na verdade, a globalização e a financeirização do capital, embora lhe tenham potenciado os efeitos, não são a origem da presente crise mundial. São sim recursos a que o sistema deitou mão para a atenuar e adiar a sua eclosão – estendendo e deslocando a produção em busca de força de trabalho mais barata, alargando o mercado mundial, contrariando a quebra global dos salários (e, portanto, do consumo) com a extensão do crédito, incrementando a especulação como saída para a acumulação de capital improdutivo.
O chamado neoliberalismo, associado à globalização e à financeirização do capital, não é uma deriva ideológica duma facção da burguesia responsável pela deriva material do sistema. Ao contrário, foram as dificuldades económicas da produção capitalista, passado o impulso do pós- -guerra, as causas das mudanças políticas e ideológicas nas classes dominantes.
14. É, assim, ilusório pensar que existem medidas de política económica ou financeira que possam solucionar os problemas sem tocar no quadro do próprio sistema capitalista. Os problemas existem e avolumam-se precisamente porque esse quadro se vai mantendo.
O actual bloqueio volta a demonstrar que as crises no sistema capitalista são inevitáveis, por serem fruto do seu crescimento e não do seu atraso, por resultarem do seu funcionamento interno e não de obstáculos que lhe sejam externos.
Por isso mesmo, a destruição de bens e de capacidade produtiva (mercadorias, empresas, força de trabalho) revela-se como a condição de sobrevivência do capitalismo. Nestes períodos, o seu sistema de relações sociais mostra ser incapaz de traduzir em benefício colectivo os frutos da civilização e torna-se um obstáculo ao livre crescimento das forças produtivas, ao progresso da humanidade. Aqui reside o potencial revolucionário da presente crise.
15. Existem pois dois entendimentos antagónicos sobre a crise com implicações políticas de monta.
O entendimento de que a presente crise é fruto de um “desvio financeiro” do capitalismo conduz em linha recta à conclusão de que basta pôr na ordem o capital financeiro e banir a sua expressão ideológica, o neoliberalismo, para sanar a presente crise e prevenir novas crises. Ou seja, de que não é necessário pôr em causa o sistema de produção capitalista.
Ao contrário, o entendimento de que a crise resulta de uma queda da rentabilidade do capital, com sentido histórico – e que isso espelha a decadência da civilização burguesa – leva a concluir que aquelas medidas políticas não são solução para o problema, quando muito serão paliativos, e de que é preciso atacar pela base o sistema que lhe está na origem: a produção capitalista.
16. Quando vista nos seus aspectos de fundo, a crise fornece-nos uma radiografia do estado terminal a que chegou a civilização burguesa. O mundo está a viver a falência do sistema produtivo capitalista, que entrou na sua fase senil. Com isso está em causa todo o edifício social que assenta nesse sistema produtivo.
A crescente dificuldade de reprodução do capital traduz-se, com efeito, numa dificuldade crescente de reprodução das relações sociais. Daí a decomposição das instituições, o esvaziamento da democracia, o abandono do estandarte do progresso, o apagamento das grandes crenças burguesas (nação, pátria, família).
A ideologia do progresso contínuo, da prosperidade – que foi desde sempre a chancela do positivismo burguês, da superioridade do capitalismo sobre as formações sociais atrasadas – transfigurou-se num discurso de justificação do retrocesso: não mais emprego garantido, não mais melhoria de vida de geração para geração, não mais consumo livre, não mais lazer, não mais saúde e instrução para todos, não mais protecção social.
Este novo discurso denuncia a incapacidade das classes dominantes para convencerem as classes dominadas da superioridade do seu sistema, denuncia a incapacidade de uma civilização para mobilizar o todo social em torno dos seus objectivos de classe.
Uma sociedade que já só assegura (agora também pela voz dos seus mentores) um amanhã pior que o dia de hoje – e que afirma só poder subsistir nessa condição! – é uma sociedade que caminha para o fim.
As contradições em que o capitalismo está enredado não podem, pois, ser resolvidas dentro dele próprio; só uma revolução social o pode fazer da única maneira viável: pondo fim às relações sociais capitalistas.
17. O capitalismo, contudo, mostrando-se incapaz de encontrar saída no estrito plano das soluções económicas, tem achado maneira de manter incontestado o seu domínio. E assim poderá continuar por tempo indeterminado enquanto não entrarem em cena as forças capazes de uma transformação social radical, revolucionária. Essas forças são constituídas pelo proletariado mundial; os seus aliados são o campesinato pobre dos países menos desenvolvidos e os povos que lutam contra a dominação imperialista.
Mas para que tais forças sociais constituam, de facto, uma oposição ao poder da burguesia mundial é preciso perceber as causas que abateram o movimento revolucionário pelo socialismo e o impedem de crescer, apesar da decadência do capitalismo. É esta a contradição a resolver: um movimento revolucionário bloqueado no meio de uma crise geral do sistema capitalista.
II. A CRISE DO COMUNISMO
A crise das ideias comunistas e a necessidade de a superar. Transformações recentes no capitalismo, lições da crise actual e perspectivas de renovação da luta revolucionária
Um recuo inevitável
18. A crise das ideias comunistas acompanhou o crescimento e a expansão do capitalismo sobretudo no segundo pós-guerra. Concorreram para isso
– as enormes mutações sociais no proletariado mundial, em todo o século XX e desde que a crise mundial se aprofundou;
– a dissolução ideológica que o marxismo revolucionário sofreu no século XX, acompanhando o longo estertor da revolução soviética e a dominação capitalista na URSS e na China;
– e, no presente, a ausência de forças políticas de esquerda com peso de massas que conduzam um claro ataque político às bases do sistema capitalista.
19. A revolução russa de 1917 e a onda revolucionária que desencadeou por todo o mundo nas décadas seguintes libertaram um quarto da Humanidade do atraso e da miséria. A ameaça que isso representou para o capitalismo mundial desencadeou a mais vasta reacção dos poderes burgueses para estancarem o alastramento revolucionário.
a) As potências imperialistas fizeram do terror de massas uma poderosa arma contra-revolucionária que em muitos casos fez recuar a luta de classes. Mas completaram essa acção violenta com o elogio das virtudes do sistema capitalista, na mira de retirar base à revolução social.
b) A prosperidade do mundo desenvolvido, construída sobre os escombros de duas guerras mundiais, fez crer que as revoluções seriam coisas do “terceiro mundo” e que, mesmo aí, o progresso capitalista esvaziaria por completo a necessidade das revoluções sociais.
c) A via social-democrata, o Estado de bem-estar, a paz social, a democracia representativa foram exibidos como o modelo a seguir e como o desaguar natural do progresso capitalista.
d) Nas sociedades capitalistas “livres”, a ascensão social era apresentada como uma via aberta a qualquer cidadão; todos, camponeses ou operários, poderiam virtualmente libertar-se do trabalho braçal e aceder ao estatuto de membro da “classe média”, em perfeita harmonia com o capitalismo.
e) O colapso da URSS, a entrega dos países do Leste à União Europeia, a conversão da China ao capitalismo, a corrupção dos regimes nacionalistas nos países libertos da colonização foram dados como provas suplementares não só da inutilidade das revoluções como da superioridade do capitalismo.
f) A paz e a igualdade entre as nações, de que a ONU seria o parlamento mundial, as promessa de desarmamento e de aplicação de recursos na promoção do bem-estar dos povos, pareciam afastar as ameaças de guerra da face do planeta.
20. Nesta batalha de mais de 70 anos o capitalismo levou a melhor sobre as revoluções nascentes.
O capitalismo ganhou uma decisiva base de apoio nas novas classes burguesas que se desenvolveram nas três formações sociais consolidadas na segunda metade do século XX: a pequena burguesia assalariada dos países capitalistas, sobretudo das metrópoles imperialistas; a burguesia nacional que ascendeu ao poder nos países dependentes; e a burguesia de Estado que se constituiu como classe dominante (a partir das camadas de quadros políticos e técnicos) nos países que haviam levado a cabo revoluções proletárias.
Mesmo enquanto arvoraram bandeiras progressistas, e até “socialistas”, o papel efectivo dessas camadas sociais foi o de esvaziar a luta anticapitalista do seu conteúdo de classe proletário e do seu sentido revolucionário.
Tornou-se assim inevitável a descrença no socialismo, o abandono do confronto de classes, a despolitização das massas. O movimento revolucionário recuou, ganharam ascendente as correntes pacifistas, de conciliação de classes, reformistas. Todos os sonhos de emancipação social das classes trabalhadoras pareciam enfim resumir-se a uma luta moderada no quadro do capitalismo pelas melhorias possíveis.
Sinais de viragem
21. Mas eis que a crise se instala no mundo desenvolvido tendo como epicentro os EUA, a cabeça do imperialismo mundial. A estagnação larvar iniciada nos anos 1970, como um fenómeno global, não pôde ser atenuada por mais tempo. A crise revela-se como o ponto de chegada do enorme desenvolvimento material e da expansão geográfica do capitalismo. Já não se pode sugerir que as crises são o fruto do atraso.
Estagnado o crescimento, o retrocesso social atinge os proletários do mundo desenvolvido. A pobreza enraíza-se e alastra onde era suposto não existir. Vê-se afinal que a bitola do capitalismo não é elevar as classes trabalhadoras ao nível superior dos países desenvolvidos, mas rebaixá-las para o nível dos países menos desenvolvidos.
O capitalismo expansivo de 1945-74, adoçado por “ganhos civilizacionais” que se anunciavam como definitivos – parecendo desmentir o marxismo – volta a mostrar a sua face terrorista e selvagem, o seu sentido predador e destruidor. Manietado pela sua própria crise, torna-se irremediavelmente incapaz de ser fonte de progresso social.
22. Todas as garantias de melhor futuro se desfazem. O rumo inverte-se: os arautos do capitalismo já não cantam mais progresso; agora empenham-se em justificar a inevitabilidade de retrocesso. Uma a uma, todas as supostas vantagens e superioridade do sistema capitalista transformam-se no seu contrário.
a) A crise do mundo desenvolvido compromete a sua condição de modelo para o terceiro mundo. O seu declínio limita o crescimento e reforça a dependência dos países menos desenvolvidos.
b) O Estado de bem-estar é banido e condenado como se fosse a fonte do recuo social. O reformismo social-democrata abandona os pergaminhos “progressistas” para se tornar a versão moderada da reacção burguesa.
c) As democracias fascizam-se. Reforçam os aparatos repressivos, incentivam a delação, criam leis de excepção, praticam, e algumas oficializam mesmo, a tortura como método de “defesa do Estado”. Fomentam a desinformação de massas e o obscurantismo. Acirram diferenças religiosas e étnicas para justificar conflitos políticos e intervenções militares. A repressão e o terror de Estado destacam-se como núcleo duro da dominação burguesa.
As instituições perdem aos olhos da massa da população o resto de crédito e de representatividade que ainda pudessem ter. Os regimes transformam-se, de forma visível, em plutocracias de que os interesses populares estão arredados.
d) As miragens de paz e de concórdia que o “fim da história” (isto é, o fim da luta de classes) anunciava traduziram-se em guerras mortíferas facilitadas pela hegemonia sem rival dos EUA, na subjugação de povos e países, na denegação do direito internacional, na anulação da ONU, na consolidação e alargamento da NATO.
e) O pacto social Capital-Trabalho, que cortou as asas ao sindicalismo de classe e amarrou o movimento operário aos planos de expansão capitalista – a troco das migalhas de um crescimento exponencial feito em paz social – mostra-se agora inconveniente para um capitalismo estagnado.
f) A ascensão social permanente, que parecia caracterizar as sociedades mais desenvolvidas, deixou de funcionar. A promessa de pleno emprego concretiza-se no pleno desemprego para milhões de pessoas. Vastas camadas do operariado e das massas mais pobres são repelidas para fora do sistema de trabalho assalariado, ou ficam condenadas ao trabalho esporádico. As próprias classes intermédias perdem privilégios e garantia de trabalho.
g) A “vitória” sobre o “socialismo”, em vez de travar a crise do capitalismo, acelerou a sua evolução para o descalabro.
Os regimes económicos e sociais mais atrasados foram modernizados a marchas forçadas pelo capitalismo globalizado. Sob a dominação do mercado mundial operou-se uma extensa socialização da produção.
A expansão aos novos mercados, porém, esgotou o ímpeto em menos de vinte anos, não evitando que o capitalismo mundializado fosse conduzido ao beco da crise actual. Rapidamente o sistema mostrou a mesma face espoliadora às populações trabalhadoras recém-conquistadas.
Em vez da ambicionada eternização do capitalismo, desenvolveram-se as bases materiais do socialismo. O triunfo do imperialismo mostrou-se, assim, de curto prazo.
Um novo ciclo revolucionário
23. Numa época de expansão e crescimento das forças produtivas capitalistas, como a que decorreu no segundo pós-guerra, não é possível levar a cabo verdadeiras revoluções sociais. Apesar das importantes lutas anticoloniais e anti-imperialistas travadas depois de 1950, e das vitórias conseguidas, a revolução proletária mundial entrou em recuo. Uma revolução socialista só é possível nos períodos em que se abre o conflito entre as forças de produção modernas e as formas de produção burguesas.
É isso mesmo que está em causa na actual crise. Criam-se assim as condições de um novo ciclo revolucionário no qual participarão as forças sociais geradas no período de expansão capitalista que se encerrou.
24. Embora disperso e politicamente enfraquecido, o proletariado, várias vezes declarado em vias de extinção, é hoje uma classe mundial muito mais vasta do que era em 1917 ou mesmo em 1989. Milhões de camponeses foram transformados em operários. Sob o impacte da crise, uma parte das classes intermédias dos países mais desenvolvidos são proletarizadas.
Esta evolução de fundo vai na direcção de ampliar enormemente as classes proletárias, na acepção de classes despojadas de qualquer meio de produção. Como uma parte crescente dessa massa não tem ocupação no quadro da produção capitalista – e é mesmo impedida pelo sistema de ter uma ocupação útil – os factores de explosão social crescem também em proporção.
25. Tal como os trabalhadores do “velho” mundo capitalista, as massas trabalhadoras da China, da Rússia, da Índia, dos países entretanto industrializados e de todo o “terceiro mundo” enfrentam hoje um mesmo inimigo: o capitalismo e o imperialismo. O confronto Capital-Trabalho está no centro das contradições mundiais; o conflito burguesia-proletariado clarificou-se. O sentido comum das lutas de classes travadas pelo mundo fora é a resistência à exploração. As acções de massas tendem a adquirir pontos comuns, a internacionalizar-se, a unificar-se.
26. As classes dominantes de todo o mundo encontram-se mais isoladas perante os seus inimigos de classe. A concentração do poder económico, por um lado, arrasta a concentração do poder político, mostrando o Estado e as instituições como instrumentos de uma classe restrita. A crise, por outro lado, ao cortar privilégios a largas camadas das classes médias assalariadas, retira à burguesia o seu principal apoio na luta contra o proletariado. A base social do poder burguês restringe-se.
27. Renovam-se as condições para reerguer a luta anticapitalista e anti-imperialista.
A transformação revolucionária da sociedade de hoje significa libertar as forças produtivas e as imensas perspectivas de progresso que se abrem à humanidade das cadeias da propriedade privada, do lucro, da organização social capitalista.
III. PELO COMUNISMO, HOJE
Actualidade do comunismo. Pontos para uma plataforma de unidade comunista
Socialização e liberdade
28. O grau de desenvolvimento que a sociedade capitalista atingiu não só permite como exige que a produção material seja colocada ao serviço de toda a Humanidade. A premissa do lucro como princípio e finalidade da produção limita as condições desse desenvolvimento. É isso que explica o absurdo da fome, do desperdício, do desemprego, das desigualdades, da delapidação de recursos naturais, da destruição ambiental – quando os factores de progresso, em si, são ilimitados.
A tarefa que se coloca à nossa época é a socialização dos meios de produção, a expropriação do capital, o domínio da produção pelos produtores associados. É esta a condição para que as forças produtivas se desenvolvam plenamente em vez de se verem limitadas e destruídas em crises sucessivas e cada vez mais profundas. É essa a condição para que toda a Humanidade beneficie dos ganhos proporcionados por séculos de trabalho, de conhecimento e de avanço técnico.
29. No centro de todos os conflitos do mundo de hoje está a contradição que opõe os interesses do Capital aos interesses do Trabalho. A batalha dos comunistas não se dirige apenas contra o grande capital, nem apenas contra o capital financeiro – mas contra o capitalismo como sistema.
Por isso, consideramos que o recuo de grande parte da esquerda para a trincheira democrática burguesa – alimentando ilusões sobre o “melhoramento das instituições”, dando papel privilegiado às eleições e ao parlamento como via para o progresso social, a igualdade, uma “economia ao serviço do povo”, etc, sem pôr em causa o sistema social capitalista – significa o abandono do socialismo quando ele mais precisa de ser defendido e tornado vivo, como saída real para a situação presente do mundo.
30. Seguimos a ideia do Manifesto Comunista de que o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos. Ora, a liberdade que é bandeira da sociedade burguesa (desdobrada em inúmeros direitos formais reconhecidos ao Cidadão, ao Homem, à Mulher, à Criança, etc.) assenta na consagração do direito de propriedade privada capitalista e do direito de explorar o Trabalho – e por isso mesmo constitui obstáculo ao livre desenvolvimento de cada um e de todos os seres humanos. O conteúdo concreto da liberdade que reivindicamos, hoje, consiste na libertação dos proletários do trabalho assalariado, na libertação dos povos da dominação imperialista. Libertar as forças produtivas do espartilho da propriedade privada é a chave para uma efectiva liberdade do ser humano.
Poder proletário e partido
31. Não cremos na utopia de uma gradual e pacífica passagem do regime burguês para um regime proletário. As forças das classes dominantes actuais, mesmo no regime democrático burguês mais puro, não aceitariam ser desbancadas do poder e expropriadas dos meios de produção que hoje detêm. Não há pois aprofundamento democrático que conduza os trabalhadores ao poder, que instaure o socialismo.
De resto, como vimos, o curso da história presente mostra como a burguesia limita cada vez mais os direitos democráticos e fasciza aceleradamente os seus regimes por todo o globo como medida para pôr o seu domínio a resguardo.
32. Os trabalhadores comunistas não devem esconder que o seu programa visa a tomada do poder político, e que isso implica fazer uso da violência que for precisa para vencer a violência com que as classes hoje dominantes o asseguram para si mesmas.
A condição política para a criação de um regime socialista é a destruição do Estado burguês. Em seu lugar, a instauração de um poder proletário, assente nos organismos políticos de massas, significará o exercício pleno da democracia pelos trabalhadores, impedindo a restauração do regime de exploração pelas classes proprietárias. É esse o conteúdo da ditadura proletária.
O Estado proletário é a forma de poder necessário para concretizar a transição para o socialismo e para uma sociedade sem Estado e sem classes.
33. Só organizado em partido, para si, o proletariado poderá conduzir uma luta política independente. O papel do partido é reunir os comunistas numa mesma organização que se proponha levar a cabo os interesses do proletariado no seu conjunto – tanto nos seus objectivos imediatos (formação do proletariado em classe, derrube da dominação burguesa, conquista do poder político pelo proletariado), como nos seus objectivos finais (abolição da exploração, constituição de uma sociedade sem classes).
34. Combatemos a ideologia anti-organização e antipartido que se espalhou entre muitos trabalhadores e organizações da esquerda. Vemos na origem deste recuo a desilusão com o reformismo que levou a maioria dos partidos comunistas a integrar-se nos regimes democráticos burgueses, a desilusão com o centralismo antidemocrático que abafou a livre discussão política entre militantes, a desilusão, sobretudo, com o facto de as grandes revoluções do século XX não terem logrado pôr fim ao capitalismo e se terem afundado em regimes burocráticos e ditatoriais.
As razões desta degenerescência têm de ser compreendidas, antes de mais nas suas raízes materiais, e também nos seus aspectos políticos e ideológicos. Mas não há que confundir o comunismo – isto é, o movimento histórico de transformação da sociedade de exploração numa sociedade sem exploração – com os desvios, as traições ou os crimes cometidos em seu nome.
Acção de massas, luta por reformas, luta revolucionária
35. A luta política no quadro do sistema democrático burguês faz parte das nossas tarefas diárias, não por acreditarmos que ele possa ser aperfeiçoado, ou reformado, mas por considerarmos que é através da luta política que o proletariado se organiza como classe capaz de defender os seus interesses de agora e futuros – por melhores condições de vida e pelo socialismo, por uma sociedade sem classes.
36. Defendemos a luta por conquistas imediatas para as massas trabalhadoras não como um fim que se esgote em si mesmo, não apenas como uma forma absolutamente necessária de obter melhores condições de vida – mas por ser essa a via prática pela qual os trabalhadores confrontam o sistema de exploração, percebem os seus limites e chegam à necessidade de lhe pôr fim.
37. Partilhamos a ideia de que os sindicatos, além de serem as principais organizações de massas de resistência diária à exploração, são uma escola de socialismo na medida em que levem a cabo uma luta de classe contra o Capital.
Combatemos o desprezo pelo movimento sindical que se difundiu entre muitos trabalhadores e correntes políticas de esquerda. O reformismo que o invadiu, a colaboração de classes, a burocratização de dirigentes e de quadros intermédios, a ineficácia das negociações baseadas na crença de manter um pacto social Capital-Trabalho que não existe – contribuíram para isso. Mas desprezá-lo seria um erro fatal para a luta de massas anticapitalista.
38. A crise capitalista veio agravar as desigualdades de que são vítimas as mulheres. Desemprego em maior percentagem, salários mais baixos, piores condições de vida, aumento da violência sexual e familiar – mostram que os direitos formais de que gozam as mulheres não se traduzem, principalmente entre as mulheres trabalhadoras, numa efectiva igualdade em relação aos homens.
A luta das mulheres pela igualdade não é apenas um movimento entre outros. Trata-se neste caso da maioria da espécie humana, para mais maciçamente proletarizada e a viver em condições de exploração que ultrapassam as dos homens. A libertação das mulheres não é apenas mais um auxiliar da luta social: a entrada das mulheres em pleno na luta social transformará por completo as forças e as perspectivas do combate pelo socialismo.
39. Nos últimos anos, massas de milhares de jovens até há pouco alheios à política saíram à rua contra o sistema social. Avessas aos conselhos do poder para que os protestos se situem nas margens da ordem e não ponham em causa o regime político ou o sistema económico, as manifestações de jovens levantam as suas exigências de trabalho e de vida digna, esboçam actos de solidariedade internacional e ousam enfrentar as forças repressivas. Apesar da débil estrutura do movimento, da mistura de interesses de classe que expressa, da falta de experiência política – as razões da revolta dos jovens falam mais alto que tudo isso: são elas o desemprego crónico, a falta de perspectivas de vida, a noção crescente de que o capitalismo não tem melhor a dar, e a evidência de que o poder político está ao serviço deste estado de coisas.
Este movimento é um sinal de mudança: significa uma alteração na balança das forças sociais e um reforço decisivo para a luta colectiva. A sua convergência com o movimento laboral é o caminho para que a resistência da população trabalhadora tenha sucesso.
40. A multiplicação de movimentos de contestação – de jovens, de ambientalistas, de minorias – mostram que o sistema capitalista é factor de desconchavo da vida colectiva e se torna incapaz de dar satisfação às exigências colocadas por diversos estratos sociais. Por si sós, muitos desses movimentos dispersam as suas energias sem resultados palpáveis ou são isolados e absorvidos pelo sistema. Sem pôr em causa o sentido específico de cada um deles, acreditamos que será a luta anticapitalista que lhes pode dar força e rumo eficaz. Será esse o cimento capaz de os aglutinar em corrente e de lhes potenciar as capacidades próprias.
Imperialismo, globalização e internacionalismo
41. As burguesias nacionais da Europa agregaram-se na União Europeia pela necessidade de reforçar o seu poder comum e fazer frente aos seus concorrentes em melhores condições. Trata-se de um processo histórico inerente ao próprio crescimento capitalista que alterou por completo as relações entre os grupos económicos e as burguesias de cada país membro.
A agudeza da actual crise na Europa veio desmentir os cenários de “igualdade” e de “convergência” entre países e povos, ricos e pobres. Verifica-se na verdade, como é próprio do capitalismo, um aumento das desigualdades e não uma eliminação das diferenças entre os pólos capitalistas mais fortes e as regiões mais dependentes. Consequentemente, crescem os conflitos de interesses, aumenta o domínio económico e político dos estados mais poderosos sobre os mais fracos, emergem o chauvinismo, o racismo e mesmo as ameaças de ruptura da União.
42. A nossa luta contra a União Europeia tem por alvo o capitalismo globalizado e as consequências dessa situação nova no nosso país. Não tem como meta a restauração da independência nacional burguesa, etapa ultrapassada quando a classe dominante portuguesa se integrou no mercado europeu. Só a pequena burguesia alimenta a ilusão de fazer renascer o seu espaço nacional de ontem.
Não tem por objectivo, tão-pouco, a ilusória reforma “democratizadora” das instituições europeias, moldadas à medida das ambições imperialistas do grande capital Europeu, e por isso mesmo estudadas para excluir a vontade dos povos.
43. O proletariado tem que rejeitar tanto a miragem do regresso a um passado nacional morto, como as promessas chauvinistas de uma “Grande Europa”.
A magnitude da ofensiva burguesa contra as classes trabalhadoras e o seu carácter global fomentam a ideia de que a resistência de massas seria mais fácil se fosse travada contra cada burguesia em cada país. Mas esse quadro nacional está definitivamente ultrapassado. Hoje, as forças que podem ajudar a luta de cada proletariado nacional são os proletários dos outros países da União Europeia.
O internacionalismo, desde sempre inscrito no programa dos comunistas, tornou-se assim uma necessidade prática e premente. O proletariado precisa de unificar as lutas nacionais e internacionais contra a burguesia. Esse passo é indispensável para a voluntária associação de todas as nacionalidades numa Europa liberta das desigualdades do capitalismo.
44. A crise mundial do capitalismo é também a crise do sistema imperialista hoje dominante. O combate contra o imperialismo norte-americano, a que estão associados a União Europeia e o Japão, teve um grande impulso nas últimas décadas com a luta pela independências de vários regimes da América Latina, com as resistências armadas no Afeganistão e no Iraque, com as revoltas árabes de 2011, com as manifestações internacionais contra a guerra, contra a NATO e contra o capitalismo. Estes movimentos somam-se às resistências já históricas de Cuba e da Palestina.
Para se situar no campo da luta anti-imperialista, a esquerda tem de apoiar sem equívocos todas as acções de massas que representem oposição ao imperialismo e combater todas as intervenções do imperialismo, incluindo as que se acobertam com pretextos “humanitários” ou “democráticos”. Do mesmo modo, tem de condenar os nacionalismos reaccionários, os etnicismos, os sectarismos religiosos pró-imperialistas ou estimulados pelo imperialismo.
IV. NÓS AQUI
Novas condições da luta de massas em Portugal
Romper o bloqueio
45. Pilhagem brutal dos pobres pelos ricos, corrupção crescente, apodrecimento das instituições, submissão ao grande capital europeu, envolvimento nas guerras imperialistas – são estes os traços do rumo político do país.
De governo em governo, o ataque aos trabalhadores foi sempre aumentando. Não obstante a resistência materializada em greves, protestos e manifestações, apesar do esforço de militantes e activistas, a situação não pôde ser invertida até à data – o que contribuiu para espalhar a ideia de que não há alternativa à força impessoal do capitalismo.
46. A actual correlação de forças entre Trabalho e Capital coloca em causa a acção tradicional da esquerda de conformar a luta dos trabalhadores aos limites da ordem vigente.
Não está à vista, com efeito, a possibilidade de eleger, no actual “Estado de direito democrático”, um governo que defenda os trabalhadores. Mesmo fazendo apelo ao sentimento de unidade das massas populares, não será a aposta numa solução parlamentar, no quadro das instituições, que por si conseguirá alterar a balança das forças políticas e sociais.
Para poder tomar medidas contra o grande capital, rejeitar o rumo ditado por Bruxelas, desvincular o país das guerras da NATO, deter a fascização das instituições, o movimento popular precisa de romper o bloqueio que o tem limitado: a sua sujeição voluntária à ordem capitalista.
47. Para poder travar a ofensiva do capital e ter hipóteses de inverter o rumo político do país, a luta de massas tem de ter por alvo o sistema capitalista. Para isso é preciso renovar o interesse dos trabalhadores pela política, renovar a convicção de que só pela sua intervenção as condições da sua vida poderão mudar.
Colocar a luta de classes no centro da acção, contrapondo os interesses próprios dos trabalhadores aos interesses da burguesia capitalista, é o factor indispensável para estimular e dar rumo à resistência de massas.
Abril não volta
48. Os últimos 38 anos são a história do fim do nacionalismo colonialista e da consolidação do capital moderno tal como ele é: incompatível com a afirmação dos interesses de classe operários e populares.
Nas novas condições criadas com a independência das colónias e a consequente queda do regime fascista, derrotada a onda revolucionária de 74-75, a democracia representativa mostrou ser o regime adequado para a recuperação dos negócios capitalistas e para submeter toda a vida do país aos interesses do Capital. Os interesses operários e populares não têm campo para se imporem. A democracia é monopólio da burguesia.
49. As esperanças num renascimento do “espírito de Abril”, ou num “novo 25 de Abril”, são hoje uma completa ilusão. A evolução do capitalismo em Portugal e a consequente subversão do quadro político e social anterior a 1974 não o permitem. O renascimento de uma intervenção de massas com capacidade de transformar o país só pode dar-se encarando a necessidade de uma revolução social.
O facto de as massas e sobretudo as novas gerações não darem hoje grande valor ao 25 de Abril não resulta de repudiarem o que então foi conquistado ou de não terem vivido a ditadura – mas sim da intuição de que o mundo que hoje enfrentam é outro e exige outro tipo de respostas.
50. A defesa do que resta das conquistas de Abril soará como frase vazia se não for parte de uma acção apontada para o futuro, que faça frente ao capitalismo de hoje e ao seu cortejo de misérias actuais. É nessa acção revolucionária que podem ter sucesso as diversas reivindicações levantadas por diferentes sectores: jovens, minorias, moradores, imigrantes, ecologistas, etc. Nada de novo se fará em Portugal sem que o proletariado se torne politicamente independente e ouse levantar as suas exigências de classe contra os interesses do Capital.
A ilusão nacionalista
51. No quadro da actual crise, prevalece na esquerda uma corrente que procura distinguir entre os males causados pelo grande capital e pelo capital financeiro e as imaginadas virtudes de um capitalismo liberto de monopólios, parasitas e especuladores. Essa corrente admite que tudo iria bem se fossem os capitalistas “produtivos” a dominar a cena, particularmente os pequenos e médios capitalistas. Assentam nestes argumentos as propostas de resolução da crise pelo desenvolvimento da economia “nacional” e pela dinamização do “mercado interno”.
É um ponto de vista baseado na crença pequeno-burguesa de que a exploração praticada pelo pequeno e o médio capital é essencialmente diferente da que é levada a cabo pelo grande capital e que procura torná-la aceitável pelos proletários. Ilude o facto de todos os sectores patronais, grandes ou pequenos, se mostrarem solidários na forma de fazer pagar os custos da crise: acentuar a exploração dos trabalhadores.
52. Ilude também o facto de, no grau a que chegaram as relações de produção em Portugal, o pequeno e o médio capital só poderem existir como parte integrante do sistema capitalista, designadamente na dependência do grande capital e da finança.
Esta dependência é não só interna como externa. Não se pode esquecer que a integração europeia é um facto. O capital português tem hoje os seus interesses interligados com os de outros capitais europeus; e a sua dependência face aos grupos mais poderosos faz dele uma peça subalterna, sem vida própria, da teia capitalista europeia. Por isso o nosso mercado interno é diariamente devassado, em todos os sectores, pela concorrência dos capitais europeus mais poderosos, quando não pela aliança destes com os grupos portugueses dominantes. Por isso também a liberdade de decisão política do Estado se encontra grandemente limitada.
53. A “dinamização do mercado interno”, apresentada por vezes como chave de resolução da crise, não poderá portanto decorrer de uma simples mudança de orientação política no quadro do sistema capitalista português tal como hoje existe. Produzir para satisfazer as necessidades sociais, sobretudo as da população mais pobre, não só significa subverter a lógica de funcionamento capitalista da produção, que tem por alvo exclusivo o lucro, como ainda implica afrontar aquela rede de interesses, com dimensão europeia.
54. As ideias e as correntes políticas que vêem as origens da crise na baixa produtividade, na quebra da procura, na “desregulamentação” dos mercados, na maior ou menor intervenção do Estado, nas disparidade de rendimentos, nos baixos salários, no vírus neoliberal, etc, acreditam que uma intervenção “correctora” nesses domínios pode solucionar ou atenuar a crise, ou evitar que ela ressurja.
Mas esta crença, não apenas em Portugal mas universalmente, está a ser desmentida pela ineficácia das medidas tomadas – seja a gigantesca injecção de dinheiros públicos no sistema financeiro, seja a política de austeridade sobre os trabalhadores a pretexto da dívida do Estado.
Reerguer a luta contra o Capital
55. A política europeia de austeridade não é cega. Imposta a pretexto das dívidas dos países dependentes, tem por fim canalizar todos os recursos possíveis para os grandes centros capitalistas e liquidar a concorrência das pequenas economias. Concentração e destruição de capital é o seu móbil.
Esta política visa a criação, nas franjas das principais potências da União Europeia, de zonas deprimidas depositárias de mão-de-obra tão barata que torne rentável o investimento capitalista em condições semelhantes às dos países mais pobres.
56. Só por ingenuidade ou por ignorância acerca da natureza da actual crise – e acerca dos meios postos em marcha pela burguesia para a debelar – se pode pensar que o caminho para resolver os conflitos sociais está na busca de uma fórmula que concilie todos os interesses em presença. Os trabalhadores portugueses não podem alimentar a esperança de inverter o rumo de penúria para que são empurrados sem tocar nos interesses do Capital.
Perante o retrocesso a que a crise conduz toda a vida social, a realidade mostra que a luta de massas, para dar frutos, tem de atacar as bases do regime.
É o sistema de exploração que tem de ser posto em causa – não há ganhos para ambos os lados entre Capital e Trabalho.
57. Muitas camadas sociais são atingidas pela crise e pelas medidas terroristas do poder. Multiplicam-se por isso os protestos e as acções de rua, cresce o descrédito nos governos e nas instituições.
Mas os efeitos da austeridade não são uniformes. As consequências mais violentas abateram-se e abatem-se em primeiro lugar sobre a classe operária produtiva e sobre os empregados pobres, na forma de despedimentos colectivos, salários não pagos, cortes nos apoios sociais, carestia da alimentação e da habitação. As lamentações oficiais sobre os sacrifícios impostos às “classes médias” não passam de uma tentativa do poder para comprar a tolerância destas camadas e diluir a natureza de classe do ataque aos trabalhadores.
Os sectores sociais capazes de conduzir a luta a patamares superiores são, pois, as classes por condição anticapitalistas, o operariado e as faixas mais pobres dos trabalhadores assalariados.
58. Debilitados política, ideológica e organizativamente por mais de 30 anos de retrocesso social e derrotas políticas, os trabalhadores portugueses não encontram ainda saída que os liberte dos custos da crise. Mas, para um número crescente, não é a confiança no capitalismo que os leva a aceitá-lo – é antes a noção real de que não há um programa político coerente que o substitua, e de que não há força organizada que o possa deitar abaixo.
59. À medida, porém, que a brutalidade das medidas de austeridade tornam num inferno a vida de milhões de assalariados impõe-se a conclusão de que a luta só será eficaz se ferir os interesses do Capital. Reclamar medidas que empurrem os custos da crise para cima dos capitalistas é a única via de o movimento de resistência acumular força que lhe permita travar a ofensiva do poder.
Reerguer a luta contra o Capital não é, portanto, nas condições actuais, uma utopia, nem representa um estreitamento do campo de apoio à luta de massas. Pelo contrário, é a condição de fazer despertar o sentido de classe dos trabalhadores, de os colocar na dianteira da acção e de alargar o campo da resistência de massas.
Justamente nas épocas de crise como a que estamos a viver, em que o antagonismo entre Capital e Trabalho se exacerba e fica mais claro, torna-se não só necessário mas obrigatório atacar o próprio sistema de exploração.
V. FAZER FRENTE À OFENSIVA CAPITALISTA
Pontos de acção política com vista à unidade popular contra a austeridade
Unidos contra a austeridade
60. As medidas de austeridade dos últimos quatro anos têm-se mostrado sucessivamente mais graves e incapazes de qualquer melhoria económica. Por baixo das miragens de um crescimento futuro está uma realidade muito mais crua: o Capital leva a cabo uma política de esmagamento das classes trabalhadoras.
Para além da descida dos salários, da precarização do emprego e da privatização das empresas públicas, os grandes alvos da política capitalista são o desmantelamento da Segurança Social, do Serviço Nacional de Saúde e do Ensino público. Tudo sectores que o capital privado ambiciona, a coberto de cortar na “despesa” do Estado.
61. Este ataque não pode ser travado com tentativas de concertação. Será possível fazer recuar o patronato, o Governo e a Troika se do lado dos trabalhadores forem reunidas as forças sociais dispostas a obrigar o Capital a pagar a crise. A resposta à crise do capitalismo não está na habilidade das soluções propostas, mas na força colocada no confronto de classes.
É preciso incentivar a disposição de luta e rejeitar toda a chantagem sobre os perigos de “convulsão social”. Com o argumento da ordem e do civismo, as classes dominantes pretendem assegurar as condições para continuarem a esmagar os de baixo. Contra isso, é preciso unir todas as forças que se juntam à luta de massas e declarar a legitimidade da luta social em todas as suas formas.
62. Os sindicatos têm um papel primordial na missão de unir todos os trabalhadores na defesa dos seus interesses: vincando o sentido de classe das reivindicações, promovendo o papel activo das bases, incentivando a participação democrática em assembleias para decidir formas de luta, prestando solidariedade aos trabalhadores das empresas em luta, dando especial apoio aos precários, aos imigrantes, às mulheres.
63. Importa desenvolver a acção unitária contra o desmantelamento dos serviços sociais, as privatizações e a montagem do Estado policial.
Importa ainda avançar no sentido da coordenação das lutas económicas e políticas do proletariado à escala europeia contra a União Europeia capitalista, estabelecendo relações internacionalistas com organizações de outros países, particularmente as de Espanha.
64. As grandes manifestações realizadas em Setembro de 2012 demonstraram que a miragem de aceitar sacrifícios em nome do futuro está a desfazer-se. Um número crescente de trabalhadores aponta o dedo ao Governo e à Troika, rejeita a austeridade e reclama um novo rumo político. Importa que esta ideia de mudança ganhe cada vez mais adeptos.
A continuidade deste movimento de protesto, o seu alargamento a novos sectores da população, a sua rejeição plena das medidas de austeridade, é portanto essencial para derrotar as forças que aprovaram e que aplicam o programa da Troika.
O que há de novo na situação actual não é o fracasso das metas do governo nem o reforço das medidas de austeridade – é a resposta maciça que lhes foi dada nas ruas. Foi isso que contribuiu para isolar o Governo. É isso que pode bloquear a política de austeridade.
O capital que pague a crise
65. O ponto central da nossa posição é que os trabalhadores devem rejeitar pagar os custos da crise – pela acção de massas, pelo apoio mútuo, pela solidariedade de classe nacional e internacional.
Com vista reforçar o movimento contra a austeridade, o governo e a troika, realçamos quatro objectivos que as acções de luta têm levantado e que correspondem às exigências imediatas da população trabalhadora atingida pela crise:
i. O capital que pague a dívida
– revogação do acordo com a Troika e demissão do Governo
– anulação das medidas de austeridade contra os trabalhadores
– aplicação de impostos fortemente progressivos sobre o capital e as fortunas
– fim ao esbanjamento de dinheiros públicos; revogação das Parcerias Público-Privadas
ii. Trabalho para todos
– suspensão dos despedimentos
– contra o desemprego e a precariedade, reduzir o horário de trabalho sem reduzir salários
– reforma aos 60 anos com 40 anos de descontos
– defesa da contratação colectiva
iii. Combate à pobreza
– aumento dos salários e pensões mais baixos
– congelamento dos preços dos bens de primeira necessidade
– criação de um programa nacional de habitação social
– uso exclusivo dos dinheiros do Estado e da Segurança Social para apoio ao bem-estar dos trabalhadores
– corte drástico nas despesas militares; anulação de todas as missões militares e policiais no estrangeiro
iv. Justiça social
– apoio social aos bairros pobres, aos imigrantes e à população empurrada para a miséria
– julgamento de especuladores e corruptos; expropriação das suas fortunas em benefício da Segurança Social
– fim dos privilégios de administradores e políticos; extinção das reformas milionárias.
Comentários dos leitores
•afonsomanuelgonçalves 16/3/2013, 11:57
Toda a habitação é habitação social independentemente das formas arquitetónicas que possam ter de acordo com o destino de classe social a que são dirigidas. Por isso, deve pôr-se fim a este tipo de construção "social" destinado aos pobres e que geralmente têm essa marca do destinatário. A habitação deve ser uma das grandes preocupações de um governo cominista a fim de colocar em termos de igualdade a qualidade de vida de todos os trabalhadores na vida comum deste país tão disfigurado socialmente.
•Eduardo 16/3/2013, 22:24
Este longo texto exigia uma análise detalhada mas há falta desta anoto só uns dados que me chamaram a atenção:
- Uma quase ausência das razões que explicam a derrocada do modelo de capitalismo de Estado na URSS e nos restantes países que seguiram a receita.
- O silêncio sobre aspectos centrais desse modelo derrotado: Partido-Estado com uma poder absoluto, economia estatizada, ausência de auto-organização social nessas sociedades.
- Pouca reflexão sobre as mutações reais nas sociedades capitalistas nas segunda metade do século XX.
- Sem referências a questões contemporâneas decisivas da sociedade de consumo, tecnologia, ciência, ambientais.
- Nula análise dos problemas associados ao modelo leninista de partido.
- Pouco sentido de crítica e dúvida, muita fé marxista.
- Silêncio sobre as contribuições históricas das correntes anti-capitalistas de tipo anarquista, sindicalista revolucionário e conselhista.
Por tudo isto parece-me estarmos em face de um documento convencional, para não dizer revivalista, que pouco acrescenta ao que os m-l dos anos 60-70 diziam. Assim não vamos lá. Afinal parece que o século passado serviu de pouco aos «marxistas revolucionários».
Saúde e liberdade.
•antonito 16/5/2013, 14:18
Caros amigos, só hoje li a parte que saíu no Jornal Mudar de Vida, em papel, de Março-Abril de 2013.
Considero um bom documento, na generalidade, mas gostaria de referir, desde já, alguns pontos daquela parte:
- No nº 18 "Um recuo inevitável" omite o que foi o capitalismo burocrático de Estado, que levou à liquidação da ditadura operária, do controlo operário, da produção de modo capitalista, à criação de capital financeiro, etc., na fase final da URSS e na China actual;
- Diz que há ausência de forças políticas de esquerda com peso de massas, mas não é isso que se passa, elas existem, o problema é a sua ideologia reformista e revisionista (do revisionismo moderno).
- No texto não se fala do aniquilamento dos movimentos feito pela perigosa e quase absoluta dominação do revisionismo, o que impede a luta de classes. Esta só existirá verdadeiramennte quando estiver livre desses intervenientes, geralmente pseudo-comunistas.
- Ponto 25: onde diz que o conflito burguesia-proletariado se clarificou, não me parece, pois o que sucedeu é que o revisionismo, dominando sindicatos e organizações populares, retirou toda a ideologia da classe operária e da luta de classes, limitando os trabalhadores à luta contra este ou aquele gooverno, parecendo sempre que apenas querem votos no seu partido ao qual estão acorrentados, que subiria assim ao governo capitalista com uma hipotética maioria PC/PS (ou parte do PS), mais o Bloco, possivelmente...
Há que discutir muito bem este documento, pois apesar de tudo é dos melhores que se têm visto, no que respeita à Revolução Socialista e à independência do proletariado para avançar com ela (avançar com os seus aliados, evidentemente).