Desta vez, ninguém disse “Je suis kurde”

Manuel Raposo — 31 Dezembro 2022

Manifestação em Paris. A nossa vingança será a revolução das mulheres. Dez anos depois do 9 de janeiro, o estado turco massacrou mais três dos nossos amigos

O atentado a tiro que, na semana passada, em Paris, matou três curdos e feriu outros tantos suscitou a indignação da comunidade curda imigrada em França e desencadeou enormes manifestações de protesto. A reacção das autoridades francesas seguiu o padrão regimental nestas coisas: dar o acto como resultado do desvario de um indivíduo desequilibrado e, deste modo, inocentar a sociedade francesa e descartar hipóteses de conspiração que levem às raízes políticas do problema. 

Mas, como os representantes da comunidade curda realçaram, não só há um caldo de cultura que alimenta estes actos considerados “isolados”, como existem claros propósitos do Estado em esconder a natureza política dos atentados — e é isso que fica sempre omitido nas desculpas e nos pêsames oficiais. (1)

O criminoso em causa — um francês branco com ligações conhecidas à extrema direita fascista — já tinha sido preso e condenado por porte de armas proibidas e violência racista, manifestava abertamente ódio racial aos imigrantes, tinha sido recentemente posto em liberdade enquanto esperava julgamento por ter atacado um campo de refugiados em Paris. Objectivamente, foi deixado à solta para prosseguir na sua senda criminosa.

O atentado tem evidentes contornos políticos: uma das vítimas, Emine Kara, era a líder do Movimento das Mulheres Curdas em França. Tal como há dez anos, os alvos foram escolhidos. 

Há perto de dez anos (em janeiro de 2013), três mulheres curdas foram assassinadas a tiro, com balas na cabeça. Todas elas desenvolviam actividade política pela causa curda. Uma, Sakine Cansiz, era co-fundadora do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK); outra, Fidan Dogan, era presidente do centro de informação curdo em França e representante do Congresso Nacional do Curdistão; a terceira, Leyla Soylemez era uma jovem activista. Todas as suspeitas do crime recaíram sobre a polícia secreta turca. 

Apesar de o ministro francês do Interior de então, Manuel Valls, ter dito que as mulheres foram “sem dúvida executadas”, e de o juiz de instrução ter mostrado que o suspeito estava “ligado aos serviços secretos turcos” — apesar disso (ou por isso mesmo), até hoje as conclusões da investigação feita pelas autoridades judiciárias francesas continuam por divulgar sob a capa do “segredo de Estado”. O dito suspeito (de nacionalidade turca), entretanto, morreu na prisão e uma pedra foi posta sobre o caso.

Juntemos factos recentes. A entrada da Suécia e da Finlândia para a Nato — sobre a qual a Turquia pôs condições — está pendente da entrega à polícia turca dos militantes curdos  refugiados naqueles países. O “paraíso democrático” escandinavo, agora governado por forças que vão da extrema direita aos socialdemocratas, abdicou dos seus princípios de livre asilo a perseguidos políticos e aceitou as imposições do tiranete Erdogan. Nato obriga. Eis o perfil do “Ocidente alargado”.

Os curdos estão acossados por vários lados. O PKK (sem dúvida, a força política mais representativa dos interesses nacionais curdos) foi classificado pela UE como “organização terrorista”, na senda da Turquia e dos EUA — e com isso fica o campo aberto para a ilegalização das suas organizações sediadas no estrangeiro. A Nato, em nome da sua expansão pela Europa e da preservação da “unidade” das fileiras, move-lhes uma perseguição que, pelo exemplo escandinavo, só acabará quando todos os activistas estiverem na prisão. Por fim, nos casos em que os Estados não possam meter directamente a mão por via oficial, resta o expediente dos atentados selectivos, mantidos impunes ou dados como “casos isolados”. (2)

O que se vê agora acerca dos curdos e do PKK é uma antecipação do que se poderá passar com qualquer outra manifestação de divergência política dentro do mundo ocidental. A nova guerra-fria movida contra a China e a Rússia, o confronto económico mundial levado a extremos conduzem à necessidade de arregimentar as populações — e, para isso, as vozes discordantes não serão toleradas, como a manipulação da informação a pretexto da guerra na Ucrânia bem comprova. 

Neste caso, sim, tem sentido dizer “Todos somos curdos”.

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(1) Para que o leitor veja como o atentado de Paris tem o seu caldo de cultura na própria sociedade francesa — e seguramente noutras —, perca mais 27 segundos do seu tempo a observar o vídeo em baixo. Num concurso televisivo para adivinhar palavras, é dada ao concorrente a pista “Animal que vive entre nós”. Resposta do concorrente: “Estrangeiro”… Seguem-se risos colectivos. O apresentador ameniza: “Não há problema”. (Agradeço o envio a JMTV)

 

(2) A população curda conta entre 30 e 40 milhões de pessoas, metade delas na Turquia onde constituem cerca de 20% da população. É aqui que a sua organização é mais forte, mais independente e demonstra ter mais consistência política. O PKK, fundado em 1978, reivindica um Curdistão unificado, independente e socialista. A perseguição do regime turco ao PKK resulta destes factos. Desde 1999, o seu principal líder Abdullah Ocalan está preso na Turquia, condenado a prisão perpétua.

Fortes comunidades existem também na Síria e no Iraque, mas a sua organização política não se compara à dos curdos da Turquia, o que ajuda a compreender a manipulação a que têm sido sujeitos por parte dos EUA, quer aquando dos ataques militares ao Iraque em 1991 e em 2003, quer na guerra da Síria desde 2011.


Comentários dos leitores

CarlosM 31/12/2022, 17:17

De facto, nunca se ouviu "Je suis Curde". O que mostra que entre as vítimas de ataques terroristas há vítimas de primeira e há "as outras."
A hipocrisia do "mundo livre" é tão mais significativa quanto milícias curdas do YPG lutaram ao lado do Exército Livre da Síria contra o regime de Assad e contra o ISIS, tendo sido fundamentais no combate de Kobane, em 2014-5. O YPG recebeu nessa altura apoio militar dos EUA. Quanto ao PKK, em 2008, o Tribunal Europeu de Primeira Instância intimou a UE a retirá-lo da sua lista de "organizações terroristas", por falta de justificação - o que até agora ainda não aconteceu. Também o Supremo Tribunal da Bélgica decidiu, em 2020, que o PKK devia ser designado apenas como um ator armado num conflito interno. O governo belga tem ignorado isto.


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