O que mostra a crise governativa?

Editor — 30 Outubro 2021

A crónica das discussões sobre o OE22 pode resumir-se em três breves temas: o finca-pé do governo na sua política de sempre, o manobrismo oportunista do presidente da República, e a relutância da esquerda parlamentar em fazer um balanço explícito dos seis anos passados de aliança com o PS. 

Tirando isto, só um àparte de comédia: tal como no ano passado, PSD e CDS quiseram à viva força que o Orçamento — por eles considerado “o pior de sempre” — fosse, ainda assim, aprovado pela esquerda, para sossego próprio e do mundo dos negócios. Fica entendido em que consiste a sua preocupação com “o país”.

A espuma do jogo político

É óbvio que o PS e o governo não abdicaram da linha geral que aplicaram ao longo dos últimos seis anos: conceder aos trabalhadores e aos serviços de carácter social apenas aquilo que não pusesse em causa a segurança do patronato, nem o cumprimento à risca dos encargos da dívida — pública ou privada, mas paga por todos nós. 

O presidente da República, exorbitando das suas competências formais, achou que a chantagem sobre a esquerda parlamentar, sob a ameaça de eleições antecipadas, bastaria para forçar a aprovação do OE. Foi ele o ponta-de-lança do PSD e do CDS, que não queriam eleições neste momento, por motivo das suas evidentes fraquezas. O “analista político” Marcelo falhou os cálculos e o presidente da República viu-se como um aprendiz de feiticeiro: queria o Orçamento aprovado para evitar eleições, acabou por derrubar o Governo, ter eleições e não ter Orçamento.

Mas as questões que verdadeiramente nos interessam estão noutro lado.

Um balanço por fazer

BE e PCP, em 2015-19, defenderam a aliança com o PS para obter dois efeitos: expulsar a direita do governo e fazer reverter as medidas impostas pela troika nos quatro anos anteriores. Mas desde início aceitaram que essa reversão seria resultado de uma política gradual, passo a passo, em que “não se poderia ter tudo de um dia para o outro”.

Nesta lógica, qual a razão de negarem agora essa via e chumbarem o OE22? O que os levou hoje a considerar “insuficientes” as cedências do governo, se elas também foram insuficientes desde 2015 até hoje? Acima de tudo, a consciência de que politicamente perderam com a coligação, e precisavam de demarcar-se quanto antes do PS e do governo. 

Mas, em vez de fazerem um balanço político explícito dos seis anos decorridos, dão-nos a entender que, desta vez, o governo se tornou subitamente intransigente e incumpridor, quando isso ocorreu desde início. A aceitação por António Costa das propostas ou das exigências dos seus aliados sabia-se que tinha limites: manter o essencial das leis laborais da troika (de que o patronato e a UE não abrem mão), pagar cada cêntimo da dívida, subordinar salários e apoios sociais ao défice das contas públicas.

Um período de quebra das lutas laborais

O período de 2015-19, mais os dois anos seguinte, aliviou as classes trabalhadoras de parte do fardo imposto pela direita. Mas teve também um outro efeito evidente de sinal contrário: a capacidade reivindicativa e de intervenção política da massa trabalhadora, e em geral das massas populares, não só não avançou como ficou presa do arranjo governativo. Ficou dependente de negociações que não pusessem em risco o equilíbrio conseguido, dependente portanto do nível e do sucesso das exigências colocadas pelo BE e pelo PCP ao governo, dependente em última instância da aceitação deste.

Chegados a 2021 não há movimentação sindical nem política capaz de pressionar patrões e de coagir a direita — capaz, em suma, de expressar, fora das balizas e dos procedimentos parlamentares, as necessidades sentidas pelas classes trabalhadoras e pela população pobre.

Não foi assim perante a troika

Há que lembrar o contraste deste período com a situação vivida nos anos da troika. Nessa altura, tiveram lugar alguns dos maiores protestos de rua em muitas dezenas de anos, a par de greves e lutas diversas de inúmeros sectores laborais. Membros do governo eram perseguidos e apupados na rua e em actos públicos. Foi esta a frente mais importante de luta contra o governo Passos-Portas e aquela que mais contribuiu para desacreditar a política de austeridade e abrir caminho à viragem eleitoral de Outubro de 2015.

Este movimento, em vez de se desenvolver nas novas condições políticas criadas com a queda do governo Passos-Portas, foi esvaziado, dando margem ao novo governo PS para aplicar a tal política gradualista de recuperação das perdas sofridas em 2011-2015. Quando se avisava “não se pode ter tudo num dia”, estava-se a sugerir às classes trabalhadoras — as mais penalizadas pela austeridade — que aguardassem pelos arranjos gizados no âmbito da aliança PS-BE-PCP. As lutas em geral foram amortecidas, e greves mais combativas foram mesmo torpedeadas e dadas como “provocatórias”.

Não foi apenas o confinamento que desmobilizou as acções de massas. O declínio começou antes da pandemia; o confinamento apenas mascarou esse facto. As tímidas lutas iniciadas com o fim do confinamento mostram a dificuldade em levantar de novo um movimento de protesto, apesar das desgraças que se vivem em consequência da pandemia.

Um fruto amargo: despolitização

O fruto, volvidos seis anos, é uma despolitização (ainda maior) da massa trabalhadora, e mesmo a redução da sua actividade reivindicativa sindical a índices muito baixos. Em vez de ter dado passos no sentido de fazer valer a sua vontade de modo independente face ao poder, em vez de tomar como ponto de partida a experiência de oposição à troika e à austeridade, a massa trabalhadora recuou, em grande parte na expectativa de que a coligação de esquerda resolvesse os seus problemas. 

Hoje, vê-se sem força para levantar as reclamações que obriguem o governo e o patronato a ceder em questões de mínima justiça — falta de força essa que se revela, não só na fraca acção própria, como inclusive na quebra do voto dado ao PCP e ao BE, como se pode avaliar pela sucessão dos resultados eleitorais posteriores a 2015.

Em termos práticos, BE e PCP agiram como uma ala esquerda do PS, sem dele se distinguirem e com a desvantagem de poderem propor mas não poderem impor nem actuar como governo. Não admira que seja o PS a colher os frutos políticos da governação e a arrecadar os votos. 

A hegemonia do PS revela, insistimos, a despolitização da larga maioria da massa trabalhadora, que prefere obviamente uma melhoria das condições de vida, que rejeita a austeridade castigadora da direita — mas fica prisioneira da liderança política do PS.

Isto mostra também como PCP e BE se encontram em dependência estratégica do PS.

Uma negociação desigual

Por tudo isto, nem as mais “exigentes” propostas agora feitas ao governo a propósito do OE22 foram capazes de mobilizar um apoio popular que desequilibrasse os pratos da balança.  

Sem uma retaguarda de acção de massas, tais propostas, por muito boas que sejam, não têm o peso social que as possa fazer vingar. Por isto, tanto o governo como o patronato se sentiram à vontade para as desprezar — precisamente por saberem que daí não lhes virá mal nenhum. 

Firmeza tardia

PCP e BE sublinharam repetidamente a importância das suas propostas para lá da estrita negociação orçamental, e deram-nas como cruciais para poderem aprovar o OE. “Tirar o país da situação em que se encontra”, “dar uma resposta global aos problemas do país”, disseram os dirigentes do PCP. Mais do que “medidas simbólicas” pretendia-se “um OE capaz de responder ao país”, disseram os líderes do BE.

Certo. Mas a pergunta que se coloca é esta: com que peso negocial partiram para a discussão, se estava em causa um confronto em que se jogava “uma resposta global aos problemas do país”?

A recusa que BE e PCP mantiveram diante da intransigência do governo foi tardia e esconde a fraqueza de base que já apontámos. Ambos quiseram meter pela frincha do OE reclamações que precisariam de ser suportadas por um mínimo de acção de massas — melhor dito: reclamações que deveriam ser a expressão, na luta parlamentar e partidária, de necessidades levantadas e defendidas activamente pela massa trabalhadora.

O conjunto, virtualmente interminável, de reclamações que o BE e o PCP avançam é muito justo, mas não constitui por si uma via política de oposição ao PS. Só a identificação, entendemos nós, dos interesses políticos de classe em confronto permitirá definir uma linha de medidas imediatas, mesmo limitadas, e não o inverso.

Outro debate é possível

Para estabelecer uma verdadeira demarcação com o governo e com o PS, se fosse esse o propósito, PCP e BE teriam de trazer a público uma outra discussão, que obviamente não cabe no terreno estreito de um debate de orçamento. Uma discussão que, não enjeitando a abordagem de políticas concretas, partisse contudo dos interesses de classe — políticos e não apenas reivindicativos — dos trabalhadores e dos mais pobres.

Nesse sentido, repetimos aqui alguns temas de reflexão que referimos por ocasião das eleições de 2019, quando as perspectivas de reforço do PS e de quebra dos seus aliados já se desenhavam.

– Todos os ganhos da massa trabalhadora se mostram pontuais, precários e revogáveis, dependentes do sucesso dos negócios capitalistas. Que novas vias de acção (política, sindical, de massas) podem assegurar a independência do mundo do trabalho face aos interesses do capital e forçar o patronato a ceder?

– A dívida condiciona toda a política económica. Como libertar os trabalhadores dessa canga e fazer o capital pagar-lhe os custos?

– A crise do capitalismo mundial, sem fim à vista, bloqueia o progresso material e social. Que política têm os trabalhadores de pôr em campo para salvaguardar as suas condições de vida e assegurar melhorias para as gerações futuras? Sacrificar-se, colaborando na (impossível) “resolução da crise”, ou enfrentar o capitalismo em crise dando-o como uma não-solução?

– A degradação das instituições, o esvaziamento da democracia, o monopólio político das classes dominantes são evidentes. Com que forças e por que meios podem os interesses de quem trabalha impor-se? Como fazer crescer uma nova corrente de ideias, com apoio popular, para a qual o jogo parlamentar e institucional seja um auxiliar mas não o centro da intervenção política?

– As ameaças crescentes do imperialismo norte-americano, os sinais de nova Guerra Fria, colocam o mundo à beira de conflitos colossais, à sombra dos quais renasce o fascismo. Como mobilizar as forças populares? Como forçar os governos a distanciarem-se do belicismo imperialista e dos compromissos com a NATO? Como isolar as organizações fascistas?

– As instituições da União Europeia são veículo do domínio do grande capital, estrangeiro e nacional. Onde devem os trabalhadores buscar aliados para uma resposta comum, senão nos trabalhadores dos demais países? Que passos dar para forjar uma união da massa trabalhadora que a coloque ao nível de um combate de escala europeia?


Comentários dos leitores

MANUEL BAPTISTA 30/10/2021, 16:49

Escrevem o comentário como se BE e PCP fossem a expressão política da classe trabalhadora. Não o são.
- Primeiro, sempre se pôde questionar teoricamente se algum partido ou ideologia é «proprietário» de uma classe.
- No caso vertente, isso é apenas uma capa, pois se tornaram há muitos lustres os capatazes do capital, mas com umas conversas de «defesa» dos trabalhadores para melhor os enganar.
Portanto, a política de classe verdadeira passa pelo assumir da autonomia dos trabalhadores enquanto protagonistas do seu destino, não como massa de manobra, seja de quem for.
É esta a lição a tirar destes anos de conivência com o PS, a roçar a subserviência, dos partidos parlamentares de «esquerda».

José Mário Costa 30/10/2021, 17:18

Ainda estão no tempo do finado PC (R) e do que deu o vanguardismo marxista-leninista no mundo por onde passou?!... Aconselho-os a irem ver o filme "Funeral de Estado"...

afonsomanuelgoncalves 2/11/2021, 14:01

O marxismo e o leninismo foram substituídos pela sigla esquerda e a social-social-democracia e o liberalismo pela sigla direita e é esta dicotomia causa dos eloquentes debates que ouvimos nos canais televisivos, nos artigos dos jornais e nos discursos políticos dos quadros partidários em debates empolgantes. O país, as classes sociais ficam nas margens da discussão, apenas ee vê que a esquerda luta contra a direita e a direita luta contra a esquerda e esta luta determina a escolha eleitoral dos que votam nas eleições. É a democracia que temos e o Estado de direito (burgués) que temos. Pouco há fazer e a dizer dentro deste círculo vicioso em que a discussão política se dissolve com a tímida esquerda completamente incapaz de se libertar. Numa nota à margem tive o prazer de ver 2 vezes o filme "Funeral de Estado" e cheguei à conclusão, mal ou bem, que o verdadeiro juíz da História é o sentimento sentido pelos povos "Do povo mui amado e dos príncipes mui temido" como afirmou Garcia de Resende na crónica de D, João II, e não nos historiadores de polichinelo que vejo por todo o lado a encherem-se de frases catgóricas com teses proeminentes que depois são negadas e desmontadas passados meia dúzia de anos.

leonel lopes clérigo 3/11/2021, 12:01

Em minha simples opinião, no seu comentário acima o Afonso Gonçalves fez uma boa síntese do que se passa neste nosso SUBDESENVOLVIDO país, que poucos têm a coragem de dizer que o é, coisa que seria um bom passo para se encarar as coisas de frente em fez dos "fingimentos" à "web summit 2021" que a nada conduzem.
E o que é pior: não se vislumbra nada nem ninguém que saiba como sair disto, a não ser os patetas do costume que se fingem convencidos que sabem tirar da manga a SOLUÇÃO da CRISE que, cá entre nós, há muito se arrisca a ser "eterna".
Por isso, há uma bela composição do TOM JOBIM que hoje me chama a ouvi-la com frequência o seu começo:

"Tem dias que eu fico pensando na vida
e sinceramente não vejo saída..."

Tom JOBIM - Sei lá (a vida tem sempre razão)

Fm 3/11/2021, 21:25

Os partidos da chamada esquerda deixaram de ser partidos sindicalistas para serem partidos parlamentares com um olho no governo. Após o 25A os partidos (UDP/PCP) defendiam os trabalhadoras, embora alguns (PCP) sempre tiveram um apetite para os trair com revisionismo do tempo da URSS. A UDP sempre foi um partido virado para o sindicalismo. Já o seu filho BE tornou-se um partido do sistema virado para questões laterais que até tem dado votos e ultrapassou o próprio PCP. Hoje os trabalhadores praticamente estão sozinhos, não tendo onde recorrer por que os sindicatos (CGTP/UGT) que temos estão todos vendidos ao sistema e manietados pelos partidos pelos patrões e governo no CCS. Só autonomia dos trabalhadores fora dos partidos e sindicatos do sistema pode dar frutos criando sindicatos revolucionários como a velha CGT.

Leonel Lopes Clérigo 4/11/2021, 13:49

Na nota acima, o nosso Companheiro Fm parece ter - para reorganizar a CLASSE TRABALHADORA nos dias de hoje - uma proposta (só organizativa?...) que passa pela "autonomia dos trabalhadores fora dos partidos e sindicatos do sistema" única maneira de se criarem "sindicatos revolucionários como a velha CGT."

Se estou a entender bem Fm, suponhamos que se consegue "esvaziar" as organizações herdadas do "revisionismo do tempo da URSS", obtendo-se "sindicatos revolucionários".
E surge, em meu entender, a questão: que se faz então com essa força SINDICAL? Ou seja: que PROJECTO CONCRETO REVOLUCIONÁRIO - para oferecer aos trabalhadores - deverá ter essa NOVA FORÇA SINDICAL de modo a diferenciar-se do AUSÊNCIA de PROJECTO das outras "QUE EXISTEM"?

Se não explicamos aos TRABALHADORES - tal como fazem as Organizações Burguesas - ao que nos PROPOMOS, ficamos iguais aos outros. Já aprendemos que é curto "adjectivar sem mais" ou seja: "engalanar" a Proposta de REVOLUCIONÁRIA, o que não significa que ela o seja. As existentes (ou muitas delas) também se dizem REVOLUCIONÁRIAS.

Fiquei com a ideia que Fm tem clara a resposta. Por isso aguardo.

Fm 4/11/2021, 14:25

Não tenho resposta pronta para isso. Nos tempos mais próximos vai ser impossível esvaziar os sindicatos reformistas por que estão enfeudados no sistema e muitos muitos trabalhadores até apoiam este sistema, por que se assim não fossem o poder da burguesia já tinha caído há muito tempou. O que difere sindicatos revolucionários dos reformistas é o modo de actuar a começar por não receber subvenções de que nos explora e fazer acordos com o patronato e com estado para trair os trabalhadores e também não aceitar fazer parte da burocracia sindical com dirigentes pagos a tempo inteiro. Fazer greves para fazer cócegas ao governo e aos patrões. Para isso temos de desmascarar o sindicalismo oficial que é um mal no seio dos trabalhadores. Também acreditar que os partidos são nossos amigos e não são. Nestes quase 50 anos depois do 25A os trabalhadores só tem perdido. Cada vez mais repressão dos governos com as policias. Quando os trabalhadores estiverem ganhos para isto, vamos fazer a revolução social. Não tenho dúvidas.

Leonel Lopes Clérigo 4/11/2021, 17:43

Meu caro companheiro Fm: eu também "Não tenho resposta pronta para isso".
Mas uma coisa me parece: essa resposta TEM QUE SER ENCONTRADA. Senão, ficamos como aquela da cantora italo-francesa DALIDA: "Paroles et paroles et paroles..."
E mais: ficamos sem saber o que e como fazer "no dia seguinte..."
É a chamada "navegação à vista" onde a derrota é certa.

Fm 6/11/2021, 13:19

A minha proposta está a vista. O que é que propões. Comunismo autoritário falhado que governou é governa em muitos países, mas as pessoas não têm liberdade, nem para fazer uma associação. O caso de Cuba é sintomático. O povo vive na miséria e está neste momento a lutar pela liberdade. Pouca gente sabe. O que virá a seguir não sei. Depende do povo.
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Leonel Lopes Clérigo 6/11/2021, 16:24

Fm: afinal HÁ uma PROPOSTA e ela parece "ESTAR À VISTA". Só que eu, que sou um bocado Burro, não consegui descortiná-la. Mas não é de admirar...

Nasci para ser ignorante
mas os parentes teimaram ...
(e dali não arrancaram)
em fazer de mim estudante...

Sebastião da Gama


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