Uma campanha alegre

Manuel Raposo — 17 Setembro 2019

Quem tenha assistido aos frente-a-frente televisivos entre António Costa e Jerónimo de Sousa, e entre António Costa e Catarina Martins ficou com dados para perceber porque é que o PS se abeira da maioria absoluta, deixando o PCP e o BE a uma distância muito maior do que há quatro anos (*). Não só os números dizem quem ganhou com a aliança governativa, como os debates mostram porquê.

Toda a discussão, em ambos os casos, se travou em torno daquilo que os comentadores batidos chamam as “políticas sectoriais”: salário mínimo, Segurança Social, Saúde, leis laborais, investimento público, e por aí fora, num rosário interminável que foi até aos manuais escolares. Tudo assuntos muito pertinentes mas que, tratados um a um, deixam de fora questões políticas de fundo.

Por exemplo: Por que razão se eternizam a penúria e as dificuldades do lado da massa trabalhadora? Porque é tão difícil obter os mínimos ganhos quando se trata dos assalariados e dos mais pobres? Porque é que em quatro anos de “aliança de esquerda” nem sequer foi possível repor tudo o que a troika fez perder à maioria da população nos quatro anos anteriores? E porque é o PS que, apesar disto, arrecada a maioria dos votos?

Um aval a António Costa

Costa esteve perfeitamente à vontade nos debates porque, no campo em que as coisas foram postas, quem detém o poder de governar tem toda a margem de manobra. Basta dar a entender: eu governo, tenho a capacidade de fazer, vocês só têm capacidade de propor. De tudo o que possa ser proposto, portanto, o PS escolhe o que acha “viável” e “prioritário”, construindo sobre isso a sua política concreta, que chancela de “realista”.

Os eleitores cedem a este “realismo” porque não vêem outra possibilidade para lá disso — tanto mais que quer o BE quer o PCP afinam pelo mesmo diapasão de “acumular ganhos” paulatinamente, convergindo com o discurso gradualista de Costa. Para além de umas tímidas referências ao favorecimento dos ricos e da banca, ou aos apoios que o PS busca à direita, nenhuma diferenciação foi feita sobre os interesses de classe em jogo, nenhum esclarecimento que desse a perceber aos trabalhadores o porquê do arrastamento e da eterna parcialidade de qualquer medida que realmente os beneficie.

Travado no terreno escolhido por Costa, o debate evitou mesmo os temas gerais de pudessem levantar maior contradição com o PS. A dívida pública foi apenas referida por dever de ofício, mas não tratada como nervo sensível, fulcro das opções governativas. O empenhamento do país nas acções militares europeias e norte-americanas foi ignorado. O tabu da NATO permaneceu tabu. O seguidismo da diplomacia portuguesa face aos manejos imperialistas da UE e dos EUA passou sob silêncio. A necessidade de resposta aos novos fascismos emergentes, cá dentro e lá fora, não foi tema. O que fazer na iminência de nova tempestade financeira foi ignorado. Etc. Não se pode dizer que estes sejam temas sem importância para definir a política nacional presente e próxima.

Nem mesmo a acusação repetidamente feita ao PS de servir a direita — que daria um manancial de exemplos e de argumentos esclarecedores — foi tratada de forma concreta. Percebeu-se que nem o BE nem o PCP quiseram criar susceptibilidades que comprometessem entendimentos futuros — o que, aos olhos de todos, é um aval dado a António Costa.

Uma outra discussão por fazer

Era possível que BE e PCP travassem outro debate com o PS? Não parece, tendo em vista que ele esteve na linha dos quatro anos passados.
Mas é possível trazer para a praça pública outro tipo de discussão. Uma discussão que, não enjeitando a abordagem de políticas concretas, partisse contudo dos interesses de classe (repetimos), políticos, dos trabalhadores e dos mais pobres.

Crise do capitalismo mundial sem fim à vista, progresso bloqueado. Que política têm os trabalhadores de pôr em campo para salvaguardar as suas condições de vida e assegurar o progresso das gerações futuras? Sacrificar-se, colaborando na (impossível) “resolução da crise” ou combater o capitalismo em crise?

Todos os ganhos da massa trabalhadora se mostram pontuais, precários e revogáveis, condicionados pelo sucesso dos negócios capitalistas. Que novas vias de acção (política, sindical, de massas) podem assegurar a independência do mundo do trabalho face aos interesses do capital e forçar o patronato a ceder?

Degradação das instituições, esvaziamento da democracia, monopólio político da burguesia. Com que forças e por que meios podem os interesses operários e populares impor-se? Como fazer crescer uma nova corrente de ideias, com apoio popular, para a qual o jogo parlamentar e institucional seja um auxiliar mas não o centro da intervenção política?

Ameaças crescentes do imperialismo norte-americano, mundo à beira de conflitos colossais, fascismo renascido. Como mobilizar as forças populares? Como forçar os governos a distanciarem-se do belicismo imperialista e dos compromissos com a NATO e a proscreverem as organizações fascistas?

União Europeia: instituições viciadas, domínio esmagador do grande capital, capital nacional unha-com-carne com o capital europeu. Onde devem os trabalhadores buscar aliados para um combate comum, senão nos trabalhadores dos demais países? Que passos dar para forjar uma união da massa trabalhadora que a coloque ao nível de um combate de escala europeia?

Sem alternativa

O conjunto, virtualmente interminável, de reclamações que o BE e o PCP avançam é muito justo, mas não constitui por si uma via política de oposição ao PS. Só a identificação dos interesses políticos de classe permite definir uma linha de medidas imediatas, mesmo limitadas, e não o inverso. Partir do antagonismo entre os interesses dos trabalhadores e os do capital é a chave dessa identificação. O facto de nem o BE nem PCP o terem feito mostra o terreno político situacionista em que actuam.

E é por isto que o mote principal das campanhas do BE e do PCP é evitar a maioria absoluta do PS. Trata-se de uma mera acção de emergência para evitar a hegemonia do PS, na falta de uma política realmente alternativa.

Não admira o crescimento do PS. Ele revela despolitização da larga maioria da massa trabalhadora, que prefere obviamente uma melhoria das condições de vida, que rejeita a austeridade castigadora da direita — mas fica prisioneira da liderança política do PS.

———

(*) Sondagens recentes atribuem ao PS mais de 38% dos votos (6 pontos acima de 2015), menos de 29% a PSD+CDS (quebra de quase 12 pontos), 9,5% ao BE (menos 0,7) e 7% à CDU (menos 1,1). Se estes números se confirmarem, quer dizer que o PS não só cativa eleitorado do centro e da direita como dos seus aliados à esquerda.


Comentários dos leitores

afonsomanuelgoncalves 18/9/2019, 11:31

Uma campanha triste chamo-lhe eu porque é de tristeza que se trata. Na esquerda critica à politica de conciliaçào e de discordância pontual, considera-se geralmente que ela resulta de erros ou falta de visão mais acutilante por parte dos oponentes à esquerda do PS, o que cria a sensação de que se pode aceitar tal prática por falta de força politica ou por mera incapacidade desta esquerda parlamentar. O mesmo se passa com a actuaçáo sindical que com protestos, também eles pontuais, vão arrastando os trabalhadores atrás de si.No entanto tudo isto está no ADN destas forças da pequena burguesia em que se converteu o PCP e o BE. Iludirmo-nos que estes partidos representam os interesses dos trabalhadores e continuarmos na sua rectaguarda a chmar-lhes à atenção destas práticas ineficazes é o mesmo que esperarmos sentados pela libertação dos trabalhadores face ao capital.

leonel clérigo 21/9/2019, 17:38

MAIS do MESMO: “NAS ELEIÇÕES, ESCOLHER OS FACTOS”
Só um “Empirista” empedernido pode atrever-se a aceitar que o “mundo dos factos” não é “caótico”. E mais: que basta acordar e abrir os olhos - sem sequer passar pelo “oculista” - para que a “realidade” fique límpida, transparente que nem a água do Gerês e se mostre “tal qual é” a quem tem as pálpebras descerradas.
Por isso, julgo que “aconselhar” a que “Nestas eleições, escolha os factos”,(1) mais não é do que permanecer na lengalenga que a nossa “decrépita” burguesia capitalista - através de seus Partidos e de seu "braço armado" da Comunicação Social - tem oferecido ao “eleitor” desde o 25 de Novembro de 75.
E é assim que, para “traçarmos uma linha em nome da verdade”, teremos então que escolher uma outra “linha”.
1 - Os Partidos do Poder e seus Dirigentes - (PS/PPD/CDS) - que nos vêm governando em “monopólio” há cerca de 40 anos e com o consentimento do País "eleitor" - mais não fizeram do que nos presentear com “factos”:
o PREC deixou-nos na Bancarrota; o ouro que herdamos do bom Salazar e com tanto sacrifício, evaporou-se “porque a malta não queria trabalhar” na época da grande bagunça de Abril; as “privatizações” foram uma “necessidade” para podermos pagar um “prato de sopa” a cada um e não morrermos de fome; os fundos comunitários da CEE - que não foram gastos em “copos” como dizem os ricos e maldizentes do Norte da Europa - foram gastos em “carrinhas Passat” - e outras - voltando a “maçaroca" ao local de origem salvo a “dívida” astronómica que por cá ficou; as fábricas venderam-se porque os operários fabris era tudo gente mal-comportada que só pensava em “manifs” contra os capitalistas que, bem ao contrário, são gente séria e de comportamento “exemplar” (2)…
2 - A progressiva “institucionalização” da “Democracia” também acabou por trazer ao “debate político” - sobretudo em tempo de “eleições” mais recentes - “novos factos”. Estes, estão bem descritos no texto acima de Manuel Raposo como “políticas sectoriais”, com as características daquilo que o Professor de Economia Eduardo Catroga apelidava (e bem) de “Pentelhos” ou seja “coisa pequena e de escassa importância”.(3)
Deste modo, os “GRANDES PROBLEMAS” com que o País de debatia - e debate - passaram a ser do “estilo”: se “os hospitais tinham falta de “adesivos”, se “as escolas tinham sopa na ementa das cantinas”; se os transportes públicos de Lisboa deveriam ser pintados com a côr do PPD (côr de laranja”) ou com o “velho” amarelo da Carris ou ainda, se as novas cores do interior das instalações da Autoridade Tributária deveriam usar as cores da Aliança PPD/CDS: côr de laranja e azul (tudo coisa para saloios).
Como se vê, "não havia cão nem gato" que não apostasse nos “factos” que, curiosamente, transformaram os Lusos em mais “atrasados mentais” do que já eram, não trazendo à luz do dia os tais "problemas estruturais" mas “inconvenientes”. Fazia-se como às criança: não se contava nada para não as assustar.
3 - Vir agora - 40 anos passados - “linguarejar” a “novidade” da necessidade dos “factos” (que factos?), parece mostrar que as “perguntas adequadas” que a intrépida “Comunicação Social” vai “lançar” aos nossos “futuros governantes”, vão centrar-se nas cores das “camisas” que vão usar nos próximos 4 anos, se vão deixar a gravata de lado e aparecerem “esgargalados”, se a frota de automóveis de cada ministério vai ser comprada à Volvo ou à Tesla e se o combate aos incêndios vai ter mais helicópteros ou mais cavalos para a GNR patrulhar os campos.
4 - Quem pensar poder ouvir do(a)s “jornalistas” (4) da nossa Comunicação Social perguntas sobre o “nosso futuro” invertendo a "coisa" e perguntando como os “Governantes” tencionam RESOLVÊ-LO, desengane-se. Estou convicto que, apesar da bela intenção dos "factos", tudo vai continuar com os "factos" do antigamente ou seja: do que referia o Prof. Catroga.
Pretender ouvir - por exemplo - a pergunta a um candidato a primeiro Ministro: “Como pretende o Senhor, resolver o velho problema do Desenvolvimento do nosso País Subdesenvolvido? Que Plano tem?” Ou “Como pretende o Senhor, com uma classe capitalista sem dinamismo e dependente, ignorante e “nhonhas”, resolver o Problema da Industrialização que eternamente vem sendo bloqueado?” Ou ainda (e até), “Como vai o Senhor “dar a volta” à “tradicional” força excessiva da “fracção” burguesa “RENTISTA” e parasita (Banca, Turismo…Serviços) que dominam e bloqueiam há séculos este País” e dar - com a ajuda do Estado - novo “poder” e impulso à FRACÇÃO INDUSTRIAL que é a ÚNICA que pode - como eles dizem - (ajudar a) criar “valor” e “progresso”?…
não é coisa - apesar dos "factos" - que passe pela cabeça de alguém com juízo.
(1) - SIC Polígrafo - “Jornal da Noite”: Anuncio na Revista do Semanário Expresso
(2) - Todas as fábricas “desordeiras” foram “fechadas/vendidas” (ficou para o fim o Estaleiro de Viana). Por exemplo: a Sorefame - que vinha fazendo “comboios”… - foi fechada. Hoje, compram-se no exterior (e alugam-se em Espanha); um belo negócio que veio dar aos “serviços” do brilhante prof. Cavaco Silva, lugar de “primeiro Plano”. Tudo isto nos recorda a velha época medieval aos tempos do Eixo Salamanca/Coimbra que participou - apesar da massa cinzenta de um Tomás de Mercado ou de um Martin de Azpilicueta e outros - na ruína da Ibéria: para quê - era voz corrente - perder tempo e ter canseiras a “produzir” se dispomos de "rendas" com fartura que nos chegam com o ouro e a prata do Império na América Latina?…(e os “diamantes” de Angola…) Cavaco foi um belo expoente do Rentismo (a "vocação dos serviços") que perdura “vivinha da costa” e com a qual é "impossível" à Burguesia Lusa desenvolver o País.
(3) - Curiosamente, o Economista Eduardo Catroga, já considerava - independentemente do que se referia - que “os políticos e os jornalistas estão desviados da discussão das questões estruturais do País”. Certo ou errado, não deixa de ser um “maldizente” este professor e, vai daí, "Populista/esquerdista".
(4) - Julgo adivinhar que o Grupo Profissional dos Jornalistas “manda pouco” mas paga “as favas”. Por detrás deles está o poder real do Capitalista (melhor, dum grupo "invisível" deles) da Comunicação que tecem as “LINHAS” ideológicas com a ajuda das “Primas Donas” de confiança.


Envie-nos o seu comentário

O seu email não será divulgado. Todos os campos são necessários.

< Voltar