O que está a acontecer nos EUA?
Editor / Vicente Navarro, Monthly Review — 21 Julho 2021
Não é inútil sublinhar que os acontecimentos políticos e sociais nos EUA são da maior importância para a evolução do mundo de hoje. Não só por serem os EUA a maior e a mais desenvolvida potência capitalista, como ainda por ser o imperialismo norte-americano o coroamento do sistema imperialista mundial. Entender o confronto das classes sociais na sociedade norte-americana é um factor chave para perceber o rumo desses acontecimentos.
O estudo que divulgamos em forma resumida foi publicado na revista marxista norte-americana Monthly Review. O autor aborda o fenómeno do trumpismo à luz do papel (normalmente ignorado) das classes sociais, situando nesse contexto as (muito mais debatidas) questões raciais e de género. Não é possível, defende o autor, explicar o que está a acontecer no país sem levar em conta essa “variável de poder” que são as classes sociais e o seu comportamento.
A democracia norte-americana é posta sob fogo pelo autor, que demonstra os seus “severos limites”, facto que afecta principalmente a classe trabalhadora e explica a grande desconfiança e o desinteresse da maioria dela no processo político.
Contra o que a propaganda dos próprios EUA e do mundo Ocidental apregoa como um “modelo” (a ponto de o considerar exportável…), a democracia norte-americana é na verdade, como o estudo mostra, o mais acabado monopólio político do capitalismo hiper-desenvolvido.
O QUE ESTÁ A ACONTECER NOS EUA?
Como as classes sociais influenciam a vida política
Vicente Navarro [*]
Para entender o que está a acontecer nos Estados Unidos, após a eleição presidencial, é preciso compreender a distribuição do poder no país. É amplamente reconhecido que os brancos nos Estados Unidos têm mais poder do que os negros e que os homens têm mais poder do que as mulheres. Raça e género são, de facto, duas variáveis muito importantes para entender o que está a ocorrer na vida política dos Estados Unidos.
Muito foi dito sobre o papel que tanto o sexismo como o racismo desempenharam nas últimas eleições presidenciais e nas enormes mobilizações a favor e contra Donald Trump, que é amplamente percebido como o líder de facto das forças racistas e sexistas. No entanto, raça e género não são suficientes para explicar o que está a acontecer nacionalmente.
Classes sociais nos Estados Unidos
É necessária outra variável de poder que muito raramente aparece no tratamento da vida política dos Estados Unidos: a classe social. De facto, mesmo no meio académico, o conceito de classe social raramente aparece, como se nos Estados Unidos não existissem classes sociais. Mas de facto existem classes sociais.
No topo da estrutura de classes dos EUA está a classe empresarial (os proprietários e gerentes de grandes empresas), um sector muito pequeno da população. Joseph Stiglitz (prémio Nobel de Ciências Económicas) chamou-lhes o 1% do topo, um termo popularizado pelo movimento Occupy Wall Street.
Em seguida, vem a classe média, que possui diferentes camadas.
A classe média alta pode ser dividida em dois grandes grupos: a classe média profissional (profissionais com nível superior), na sua maioria homens, mas com uma população feminina em rápido crescimento; e os proprietários e gestores de empresas de médio porte, equivalentes à [média] burguesia na designação europeia.
A classe média baixa, que ocupa uma posição acima da classe trabalhadora e abaixo da classe média alta, é composta por uma porção considerável de proprietários de pequenas empresas e pelos trabalhadores mais privilegiados do sector privado, como supervisores de nível inferior, vendedores empresariais, técnicos de nível inferior, trabalhadores de manutenção e semelhantes, predominantemente brancos.
Este é tipicamente o segmento mais reaccionário da sociedade, que muitas vezes se alia tanto contra a classe trabalhadora como contra a classe média alta, e, quando mobilizado por aqueles que se situam no topo da sociedade, constitui a base de massa para o que agora é chamado “populismo” de direita ou neofascismo.
Depois, há a classe trabalhadora [working class], que é a maioria da população. Possui quatro componentes principais: três muito grandes e uma muito pequena.
Primeira: Trabalhadores administrativos (como secretárias) e do comércio (como os dos supermercados). Na maioria mulheres, constituem uma das maiores componentes da classe trabalhadora.
Segunda: Trabalhadores industriais — ou seja, operários [blue-collar workers] — a maioria dos quais são homens.
Terceira: Trabalhadores de serviços, que ocupam cargos em hospitais, instituições médicas, serviços sociais, transportes, correios e outros serviços essenciais, a maioria dos quais são mulheres.
Quarta: Trabalhadores agrícolas, um grupo muito pequeno, mas extremamente importante, que produz a maior parte dos alimentos consumidos nos Estados Unidos.
A estrutura de classes dos EUA é muito semelhante à estrutura de classes da maioria dos principais países da Europa Ocidental. Existem, é claro, algumas diferenças (como um sector industrial maior na Alemanha), mas, na maior parte, as semelhanças superam as diferenças.
Classe social, subjectiva e objectivamente
A classe social existe não apenas objectivamente, mas também subjectivamente. A percepção amplamente divulgada pelos estabelecimentos académicos e políticos é que a maioria da população dos Estados Unidos se considera de classe média. E, de facto, quando se pede aos americanos que se definam como classe alta, média ou baixa, a maioria responde que é de classe média. Essa é a prova mais frequentemente mostrada para apoiar a ideia de que os Estados Unidos são uma sociedade de classe média.
Acontece que, na cultura dominante, o termo classe baixa [lower class] é profundamente ofensivo. Uma coisa é referir uma classe de baixo rendimento e outra bem diferente é referir uma classe baixa. Se os americanos forem questionados se são membros da classe alta, classe média ou classe trabalhadora, mais pessoas se definem como classe trabalhadora do que como classe média. Aliás, o mesmo acontece em França, Alemanha, Itália e Espanha.
Um dos estudos mais detalhados feitos nos Estados Unidos sobre as percepções de classe, em que as pessoas foram questionadas a que classe social pertenciam — alta, média, trabalhadora ou classe baixa (este último referindo-se a classe trabalhadora “não qualificada”) — tem resultados expressivos. A grande maioria das famílias com rendimento abaixo da mediana da renda familiar (62.000 dólares por ano) definiu-se como pertencente à classe trabalhadora.
Para a maioria, as diferenças entre a identidade de classe objectiva e subjectiva não são tão grandes quanto podemos ser levados a acreditar. Isso é semelhante na Europa Ocidental. Há muitas diferenças, mas a auto-identificação de classe das populações não é muito distinta entre os países de ambos os lados do Atlântico Norte.
Não só como se vive, mas também como se morre
Considerando as taxas de mortalidade nos EUA por doenças cardíacas por classe social, verifica-se que a classe empresarial nem sequer está incluída, pois os seus elementos são tão poucos que não aparecem na população da amostra. O trabalhador braçal tem uma taxa de mortalidade por problemas cardíacos que é o dobro da classe profissional.
Assim, nos EUA, os diferenciais de mortalidade por classe são muito maiores do que os diferenciais de mortalidade por raça ou género. Os diferenciais de mortalidade por classe social são muito maiores nos Estados Unidos do que na Europa Ocidental. E, em ambos os lados do Atlântico Norte, as diferenças de mortalidade por classe são maiores do que as diferenças de mortalidade por raça e género.
Como o poder de classe se manifesta nas instituições políticas
Vejamos agora as configurações de classe das três principais instituições políticas federais durante os últimos vinte anos: o Gabinete (Governo ou Conselho de Ministros na Europa), o Senado e a Câmara dos Representantes. A maioria dos membros dessas instituições pertence à classe empresarial, seguida de perto pela classe média alta. A classe trabalhadora não aparece em nenhum lugar do Gabinete nem no Senado, e só aparece na Câmara com uma representação extremamente limitada de 1,3%. Não é novidade que os negros e as mulheres também estão sub-representados no Gabinete, no Senado e na Câmara.
Em 3 de novembro de 2020, [a par da presidência] o eleitorado votou em 435 deputados para a Câmara dos Representantes e em 100 membros para o Senado. Este último é na verdade muito pouco representativo, já que o sistema usado para eleger os seus membros é tendencioso e favorece pequenos estados rurais e conservadores em vez de estados grandes e altamente industrializados (onde vive a maioria da classe trabalhadora).
Todos os estados, independentemente de seu tamanho demográfico, têm dois senadores. Um eleitor na Califórnia, que tem quase quarenta milhões de habitantes e dois senadores, é muito menos influente do que um eleitor, por exemplo, em Wyoming, que tem apenas meio milhão de habitantes, mas também tem dois senadores. Pequenos estados rurais e conservadores têm tanto poder como os grandes estados, o que ajuda a explicar o conservadorismo do poderoso Senado. O Senado, até recentemente controlado principalmente pelo Partido Republicano (que se tornou ultradireitista com Trump), aprova o orçamento federal, as nomeações presidenciais, incluindo os membros do Gabinete, e os juízes do Supremo Tribunal.
Quem escolhe o presidente?
O presidente dos EUA não é escolhido directamente pelo eleitorado nem é eleito directamente pela Câmara ou pelo Senado. Em vez disso, é eleito por uma câmara especial — o Colégio Eleitoral — com 538 membros: 100 senadores, mais 435 membros da Câmara dos Representantes, mais 3 membros de Washington DC [a capital federal]. A sua composição é decidida pelo eleitorado de cada Estado por meio de um sistema que também favorece os pequenos estados em relação aos grandes. Para referir o mesmo exemplo, o Wyoming (um estado republicano) tem três delegados no Colégio Eleitoral. Se as eleições fossem proporcionais, a Califórnia (um estado democrático) teria 240 delegados, mas tem apenas 55.
Esta situação explica que, embora nos últimos vinte anos tenha havido mais votos nos candidatos presidenciais democratas do que nos republicanos (excepto em 2004), o viés na composição do Colégio Eleitoral significa que o presidente dos Estados Unidos foi um Republicano na maior parte desses anos. Apesar da impopularidade do Colégio Eleitoral, as probabilidades da sua eliminação são quase nulas, porque isso exigiria o apoio de dois terços do Senado mais a ratificação de três quartos dos cinquenta estados.
Um poder bicéfalo e exclusivista
A falta de proporcionalidade reproduz um Congresso [Senado mais Câmara dos Representantes] pouco representativo, e que exclui partidos de centro-esquerda e esquerda. O sistema eleitoral federal permite efectivamente apenas dois partidos, ambos de direita: o Partido Republicano e o Partido Democrata. Proporcionalidade significaria que um partido que obtivesse, digamos, 30% do voto popular teria 30% dos parlamentares. Não é assim nos Estados Unidos. Se um partido não obtiver a maioria dos votos, perde tudo, independentemente de receber 49% ou apenas 1% dos votos.
Isto torna muito difícil que novos partidos estejam presentes em órgãos representativos. A única oportunidade de indivíduos de outras correntes serem eleitos está nas primárias de qualquer um dos dois partidos tradicionais.
Foi assim que Bernie Sanders concorreu nas primárias presidenciais do Partido Democrata. Sanders, um conhecido senador independente de Vermont, apresentou propostas progressistas como o estabelecimento de um salário mínimo de 15 dólares por hora, um plano de saúde universal e um New Deal Verde, que se tornaram muito populares mesmo entre os eleitores conservadores. Mas Sanders foi claramente marginalizado pelo aparelho do Partido Democrata em 2016 e novamente em 2020. Mais um exemplo de como é praticamente impossível a um candidato de esquerda alcançar um espaço político significativo no governo dos EUA.
O movimento sindical muito fraco do país ajuda a explicar a ausência ou a influência limitada de partidos de esquerda nas instituições representativas dos EUA, o que, por sua vez, leva a mais restrições aos direitos dos trabalhadores, num círculo vicioso.
Há uma falta de consciência fora dos Estados Unidos sobre quão severos são os limites da democracia norte-americana. Um indicador disto é que [em 2020] 150 milhões de pessoas votaram em dois candidatos — um republicano e um democrata — ambos explicitamente contra o New Deal Verde e o Medicare para Todos (o apelo para um sistema de saúde universal), propostas muito populares mas que não foram apresentadas ao eleitorado. A proporcionalidade muito limitada do sistema eleitoral e a quase impossibilidade de terceiras forças aparecerem nas duas câmaras representativas restringem gravemente a democracia dos EUA.
Um processo eleitoral privatizado
Outra limitação da democracia dos EUA é a privatização do processo eleitoral. A maior parte do financiamento das eleições é privado e não há limite de quanto dinheiro pode ir para o partido Democrata ou Republicano ou para seus candidatos. Esse dinheiro é usado principalmente para comprar acesso aos média, que estão disponíveis para quem pagar mais, também sem quaisquer limitações.
As contribuições de grandes associações económicas, financeiras e profissionais são particularmente importantes antes do início do processo eleitoral, quando o candidato ainda não é bem conhecido. Depois, outras contribuições são adicionadas a essa lista, incluindo contribuições menores de cidadãos individuais, como foi o caso de Sanders (cuja doação média foi, significativamente, de 27 dólares).
Este sistema desempenha um papel importante no processo eleitoral, uma vez que limita os candidatos que não conseguem obter suficiente financiamento. Este financiamento privado também aparece em alguns partidos europeus, mas na maioria das vezes é ilegal e pode ser considerado corrupção. Nos Estados Unidos é legal, normalizado e esperado.
Um sistema contra as classes trabalhadoras
Esta democracia limitada afecta principalmente a classe trabalhadora e condiciona a defesa dos seus interesses, incluindo o desenvolvimento dos seus instrumentos políticos, como partidos políticos e sindicatos de classe. A ausência de partidos de esquerda nas instituições representativas dos EUA vai a par do poder limitado das principais associações sindicais, como vimos.
Os sindicatos, como os que fazem parte da Federação Americana do Trabalho (AFL) e do Congresso das Organizações Industriais (CIO), são praticamente proibidos, pela Lei Taft-Hartley, de funcionar como sindicatos comuns. Greves de solidariedade (um sector de trabalho apoiar outro sector), bem como greves gerais, são proibidas no país. Greves e acordos colectivos de trabalho são apenas sectoriais e são muito descentralizados, fragilizando a mão de obra.
Na realidade, os sindicatos dos EUA são muito mais expressões do sindicalismo empresarial do que do sindicalismo de classe. Essa fraqueza do trabalho é o sonho dos partidos liberais, financiados e criados pela grande classe patronal na maioria da Europa Ocidental. Todas as políticas públicas neoliberais implementadas nos países da Europa Ocidental (inclusive os social-democratas) visam o enfraquecimento do trabalho, tomando os Estados Unidos como modelo nas tentativas de “americanizar” os mercados de trabalho e os estados de bem-estar.
Esta situação de impotência explica a grande desconfiança e desinteresse da maioria da classe trabalhadora dos EUA no processo político. Apenas metade da população vota nas eleições presidenciais (e menos ainda nas eleições legislativas que não coincidem com as presidenciais) e há uma relação directa entre nível de rendimento e participação eleitoral: quanto menor o rendimento, menor a participação. A metade da população que não vota é a maioria da classe trabalhadora. Isso significa que a maioria da população votante é formada por membros da classe média baixa, classe média alta (classe profissional) e classe alta.
Trump: 2016 e 2020
Muito tem sido escrito sobre o porquê da vitória de Trump em 2016 e como ele mobilizou, em 2020, o maior número de votos de sempre para um candidato republicano. Como vimos, muitos atribuem a alta mobilização e polarização do eleitorado em apoio a Trump a um suposto aumento do racismo e sexismo nos Estados Unidos.
Sem negar que o racismo, o sexismo e outras formas de opressão desempenharam um papel importante, a questão das classes sociais — muitas vezes esquecida — também precisa de ser considerada.
As vitórias de Ronald Reagan nos Estados Unidos e Margaret Thatcher no Reino Unido [no início dos anos 1980] tiveram um impacto significativo e duradouro. O neoliberalismo, promovido pelas classes dominantes, foi a resposta destas aos avanços do movimento laboral em ambos os lados do Atlântico Norte durante o período do pós-guerra (por volta de 1945 a 1974, conhecida como a “era de ouro” do capitalismo). Essas políticas neoliberais enfraqueceram significativamente as forças do trabalho organizado.
Antes da viragem neoliberal, o Partido Democrata nos Estados Unidos seguia a tradição do New Deal estabelecido pelo presidente Franklin D. Roosevelt [1933-45, fundador do estado de bem-estar social dos EUA]. O New Deal foi continuado mais tarde pela Grande Sociedade que estabeleceu, sob o presidente Lyndon B. Johnson [1963-69], o Medicare e o Medicaid — um programa de saúde para idosos e deficientes, e um programa para os pobres, respectivamente. Durante este período, o Partido Democrata não era um partido trabalhista, mas pretendia obter apoio sindical. E de facto, embora a maioria da classe trabalhadora se abstivesse, aqueles que votavam, votavam nos democratas.
O Partido Democrata, entretanto, mudou significativamente com Bill Clinton. Depois de vencer a eleição em 1992 (com uma plataforma bastante progressista, emprestada da campanha de Jesse Jackson em 1988, incluindo uma convocação para um programa nacional de saúde), ele abandonou tais compromissos e apostou no projecto neoliberal: desregulamentação do capital, acordos mundiais de livre comércio, favorecimento de indústrias que saíssem dos Estados Unidos. Clinton inspirou Tony Blair no Reino Unido, tornando-se uma referência para a Terceira Via (incorporação do neoliberalismo e abandono de elementos chave da social-democracia), seguida posteriormente por Schröder na Alemanha, Hollande em França e Zapatero em Espanha.
Essa mudança afectou a classe trabalhadora nos Estados Unidos de maneira muito directa. Por exemplo: Baltimore era uma cidade do aço até que as fábricas se mudaram, prejudicando economicamente a cidade. A maioria dos trabalhadores do aço eram brancos e bem pagos. Quando as siderurgias se foram embora, a sua situação mudou profundamente. Em 2016, a população operária votou esmagadoramente em Trump, por considerar que ele era contra o poder (establishment) liberal — o qual, segundo eles, controlava o governo federal e era responsável pelo que lhes acontecera.
Como aconteceu na Europa, a instabilidade, a incerteza e as protecções sociais limitadas — consequências das políticas neoliberais aplicadas pelos governos dos partidos de centro-esquerda, supostamente progressistas — desempenham um papel crucial na manutenção do racismo e na rejeição do “outro”, sejam imigrantes ou minorias raciais específicas.
Uma tentativa de explicar o crescimento do voto em Trump por parte da classe trabalhadora branca — e da classe média baixa — com base no racismo e no sexismo ignora o enorme dano que as políticas neoliberais causaram entre vastos sectores da classe trabalhadora, especialmente entre a classe trabalhadora branca, que passou de um padrão de vida decente para uma vida de miséria num período muito curto. Tenha-se em vista, por exemplo, o aumento das taxas de mortalidade e o declínio da expectativa de vida entre os trabalhadores brancos causados por “doenças do desespero” [**]. Focar apenas o racismo ignora, nomeadamente, o facto de muitas pessoas brancas da classe trabalhadora que votaram em Trump terem votado em Barack Obama na sua primeira candidatura à presidência [2008].
O trumpismo
Trump apresentou-se como a voz daqueles que odiavam o poder (establishment) liberal, representado por Hillary Clinton (vista como a candidata das feministas liberais) e por Biden, um político com uma longa carreira típica no poder federal liberal.
Trump, em 2020, obteve 42% dos votos dos que têm rendimento inferior a 50.000 dólares por ano e 42% dos votos dos que têm rendimento entre 50.000 e 99.000 dólares. Ele só ganhou a votação no segmento da população dos 100.000 dólares por ano ou mais. No entanto, o número de votos da classe trabalhadora em Trump foi considerável. Esses eleitores pró-Trump incluíam algumas regiões industriais que votaram em Obama em 2012 e depois mudaram para Trump, que se apresentou como a voz do povo contra a economia e o poder financeiro, caracterizando Biden como a voz de Wall Street.
Trump vem de um sector da classe empresarial (imóveis privados, casinos e serviços) que não é percebido como uma parte real do poder liberal de Washington, embora tenha tido o apoio de empresas de petróleo e gás, defesa, construção, indústria de energia e as principais empresas farmacêuticas. O seu tom anti-sistema e crítico em relação ao poder liberal e seus meios de comunicação explica a enorme lealdade dos seus partidários, que se tornaram a base sólida do Partido Republicano. E explica como, apesar de ser o primeiro presidente moderno que nunca obteve a maioria nas sondagens eleitorais nacionais, Trump tenha a lealdade de pelo menos 40% da população votante.
É errado interpretar o trumpismo como um movimento populista. Tal leitura subestima a natureza do fenómeno, e incorrectamente sugere que quando o líder desaparece, o movimento também desaparece. O movimento precedeu Trump. É caracterizado por um nacionalismo extremo, com lembrança nostálgica de um passado imperial idealizado, baseado: na superioridade da raça branca e suas religiões cristãs; num sexismo profundo, com as mulheres vistas como objectos sexuais, apêndices no mundo do homem, destinadas principalmente a papéis reprodutivos; numa ideia de proteccionismo e crescimento económico a todo o custo; e em políticas de desregulamentação dos mercados de trabalho e eliminação de protecções sociais e ambientais.
Este movimento — com ideologia profundamente autoritária, caudilhista e antidemocrática — considera a democracia um obstáculo para a obtenção dos seus fins. É uma cruzada, defendendo o cristianismo contra religiões malignas como o Islão e outras. Tem características muito semelhantes (na verdade, idênticas) à maioria dos partidos ultradireitistas na Europa Ocidental.
Polarização de classe e pandemia nos Estados Unidos
Uma grande intervenção visando controlar a pandemia tem sido a quarentena da população (principalmente a classe média profissional, a classe média baixa e alguns sectores relativamente privilegiados da classe trabalhadora). A maioria dos trabalhadores não essenciais mantidos em quarentena foram trabalhadores não manuais (aptos a trabalhar em casa). Em geral, os membros desse grupo, que votaram principalmente em Biden, têm estabilidade no trabalho e, portanto, a sua principal preocupação tem sido a saúde e a pandemia.
Metade da população dos EUA, no entanto, não podia ficar de quarentena em casa. Por causa da natureza manual do seu trabalho, bem como do seu carácter essencial, eles foram forçados a continuar a trabalhar [fora de casa]. Além disso, devido à sua muito limitada estabilidade no emprego (muitas são mulheres negras com trabalho precário) e à falta de protecção social, não podiam dar-se ao luxo de não ir trabalhar. Muitos votaram em Trump porque ele elogiou a priorização da economia e a criação de empregos acima de tudo.
A pandemia mostrou claramente que existe uma classe trabalhadora nos Estados Unidos que tem de continuar a trabalhar para sustentar toda a sociedade. Significativamente, os Centros de Controle e Prevenção de Doenças classificaram como trabalhadores essenciais não apenas os assistentes sociais e de saúde, mas também os trabalhadores das indústrias de alimentos, transporte, comércio, educação e muitos mais, somando quase 70% da força de trabalho, com os trabalhadores da linha de frente a representar 42% deles. A maioria deste último grupo são mulheres e trabalhadores com baixa remuneração.
Republicanos, Democratas: uma diferença muito limitada
Com Trump, [em 2020], o Partido Republicano aumentou os seus votos em nove milhões, muitos deles vindos da classe trabalhadora branca, em grande parte abstencionista. O número de votos que recebeu — 74 milhões — foi o maior de sempre do Partido Republicano. Desnecessário será dizer que muitos outros sectores também votaram em Trump, incluindo, como vimos, a maioria das pessoas que ganham mais de 100.000 dólares por ano (na sua maioria, brancas).
Os votos do Partido Democrata, com Biden, aumentaram catorze milhões em comparação com os votos obtidos por Hillary Clinton em 2016. No entanto, a enorme mobilização eleitoral teve como objectivo parar Trump, mais do que apoiar Biden. A maioria dos negros e latinos, mulheres, classe média profissional e trabalhadores sindicalizados que votaram, votaram em Biden. Ele obteve sete milhões de votos a mais do que Trump. O total de mais de 81 milhões de votos para Biden foi o máximo para um único candidato em qualquer eleição presidencial.
No entanto, no Colégio Eleitoral, a diferença entre os candidatos foi muito limitada, mais próxima do que nas eleições anteriores para candidatos presidenciais democratas bem-sucedidos (Clinton e Obama). O Partido Republicano perdeu a maioria no Senado, mas ganhou lugares na Câmara dos Representantes, embora o Partido Democrata mantivesse a maioria.
É assim provável que Trump concorra à presidência novamente em 2024. O futuro apresenta-se extremamente difícil porque o trumpismo é muito poderoso e a liderança do Partido Democrata não está disposta a fazer as mudanças nas instituições económicas e políticas exigidas para satisfazer as enormes necessidades da maioria da classe trabalhadora multirracial dos EUA.
Sabe-se que há uma grande mobilização de diversos movimentos sociais que podem pressionar por mudanças. Mas uma condição primária é encontrar elementos transversais que possam uni-los — incluindo afinidade de classe e solidariedade.
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[*] Vicente Navarro (Vicenç Navarro) é um sociólogo e cientista político espanhol. Professor de política pública e de saúde na Universidade Johns Hopkins (EUA) e professor emérito de ciência política e social na Universidade Pompeu Fabra (Barcelona).
Texto original, em inglês, publicado na revista marxista Monthly Review, junho 2021.
Tradução e entre-títulos MV.
[**] Os três tipos de “doenças do desespero”: a overdose de drogas (incluindo a overdose de álcool), o suicídio e a doença do fígado por alcoolismo (Nota MV).
Comentários dos leitores
•afonsomanuelgoncalvess 25/7/2021, 12:08
O artigo do Prof. Vicente Navarro publicado pela revista marxista Monthly Review apresenta um retrato muito promenorizado da engrenagem política e social do capitalismo e imperialismo como exemplo acabado do seu desenvolvimento. Trata-se dos EUA que mesmo ao atravessar uma crise social e sanitária incontrolável tem na sua dependência o capitalismo mundial. No entanto esta análise política quer da super-estrutura ou da sociedade, acaba por ser um trabalho puramente universitário. de Direito Constitucional e estruturalista na formulaçâo teórica das classes sociais que compoem a sociedade americana, cada uma delas colocadas objectiva e subjectivamente no seu lugar
Parece-me que a ideologia marxista está ausente e isso não é de estranhar dado que o marxismo actual sofre de miopia e de uma acentuada amnésia histórica,