E agora? A situação política do país após 18 de maio
Manuel Raposo — 23 Junho 2025

A surpresa, para não dizer o pânico, que se apoderou de sectores da esquerda portuguesa com os resultados das eleições de 18 de maio só pode resultar de uma tremenda falta de atenção ao que vinha sucedendo de há anos a esta parte. Para nos situarmos apenas nos tempos mais recentes, desde 2019 que a trajectória de quebra da esquerda e de subida da direita estava à vista – num primeiro momento, mascarada pelos resultados positivos do PS de António Costa à custa dos parceiros BE e PCP, o que foi ingenuamente aceite como uma vitória “da esquerda”; num segundo momento, já sem esse véu de ilusão, mostrando à luz do dia a cavalgada da direita e da extrema-direira neofascista.
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Os números de 18 de maio são inequívocos. Houve um claro reforço da direita e extrema-direita e uma ainda maior quebra da esquerda.
(Inclui-se o PS nesta designação de “esquerda” apenas para melhor contrastar os ganhos e perdas de votos entre os campos comummente tidos por esquerda e direita).
Em relação aos resultados das eleições de 10 de março do ano passado, o bloco PSD+CDS+CH+IL ganhou 430 mil votos, enquanto o bloco PS+BE+PCP+L+PAN perdeu 535 mil votos. Muito provavelmente, deu-se uma deslocação em cascata do eleitorado para a direita, ao mesmo tempo que terá havido transferências directas da esquerda para a direita e extrema-direita.
De um modo ou de outro, certo é que (1) se consumou o ascenso do campo direita/extrema-direita, (2) o PS passou a um papel subalterno, e (3) tornou-se irrelevante o peso da esquerda parlamentar.
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O quadro torna-se mais sombrio se tivermos em conta os próximos actos eleitorais e o ascendente que a direita/extrema-direita passa a ter nas diversas instituições do regime.
As Autárquicas de setembro-outubro podem resultar em perdas maiores a favor da direita, e as Presidenciais do próximo ano podem dar a vitória a um enigmático almirante, politicamente oportunista, atrás do qual se alinham os adeptos da “ordem” – como em 1984 a direita ex-salazarista se alinhou atrás do general Soares Carneiro, e antes tinha apostado na “maioria silenciosa” de Spínola.
A somar a isto, há a possibilidade de a direita por junto, com mais de dois terços dos deputados, levar a efeito uma revisão constitucional – não apenas para consagrar uma vitória ideológica e moral sobre a esquerda, mas também para o efeito prático de eliminar as obrigações sociais do Estado que ainda subsistem na letra da Constituição.
Por fim, as agressões cometidas por bandos fascistas no dia 10 de junho (o “dia da raça” para o salazarismo), numa acção concertada – em Lisboa, no Porto, em Guimarães e outros pontos do país, usando largamente as redes sociais – mostram o impulso que o crescimento da bancada parlamentar neofascista veio dar aos arruaceiros de extrema-direita, numa combinação, pelo menos tácita, entre acção política legal e acção à margem da lei.
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O facto de o sul do país (Algarve, Beja, Portalegre, Setúbal), com largo peso proletário, ter ficado praticamente dominado pela extrema-direita assume um significado político próprio que não pode ser diminuído.
Parte da massa trabalhadora balanceou-se para a extrema-direita cativada pela demagogia “anti-sistema” e “anti-corrupção”, mas também acolhendo a propaganda contra os imigrantes e contra os ciganos. O significado político deste facto é que forças como o PS e o PCP, tradicionalmente dominantes na região, perderam grande parte da confiança que, mal ou bem, a massa popular e trabalhadora nelas depositava.
Essa massa, formada em muitos casos pelo proletariado mais pobre, está muita dela sujeita a trabalho precário, sobrevive com pensões de miséria, depende de empregos municipais mal pagos, ou passa parte do ano inactiva por força de ocupações sazonais na agricultura e no turismo.
A revolta social não desapareceu nestes sectores. Tornou-se até mais aguda à medida que as expectativas de melhorias se desvaneciam – mas foi capitalizada sobretudo pela extrema-direita. Não se pode dizer que não houvesse matéria política, matéria de contestação, que desse base a um movimento de protesto de carácter popular. Foi precisamente por existir essa base de revolta e de indignação latentes que a extrema-direita pôde fazer a sua propaganda e cativar pessoas para o seu lado.
É forçoso concluir que o crescimento da direita é o reverso da falta de comparência da esquerda, que não soube interpretar as agruras e encabeçar as ambições das classes trabalhadoras e, dentro destas, dos sectores mais pobres.
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A deslocação deste eleitorado popular não deixa de ter um sentido de classe, na medida em que representa uma reacção de revolta contra a degradação da sua vida.
Simplesmente, como essa revolta não encontrou respostas políticas próprias, desviou-se para as soluções oferecidas pela direita burguesa vestida de “voz crítica” dos males do sistema político e social – coisa que cabia à esquerda fazer.
A direita e o neofascismo ocuparam o espaço deixado vago pela esquerda, que não soube afirmar-se como força de combate – político e de classe – à degradação da vida social promovida pelo regime.
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O panorama partidário mudou. A esquerda oficial – para quem dela esperava uma via de melhorias graduais, sem os sobressaltos das greves e da luta de rua – deixou de ser almofada.
Isto remete-nos para a análise dos últimos dez anos.
A esperança da população trabalhadora numa esquerda reformadora esvaiu-se entre 2015 e 2024. Num primeiro momento, de 2015 a 2019, os fracos ganhos do primeiro governo do PS, com o apoio do PCP e do BE, foram sendo tolerados porque, mesmo escassos, representavam um alívio face ao sufoco dos anos da Troika.
Sob a ilusão de uma esquerda no poder, as manifestações de massas e as lutas sindicais que tinham crescido contra o governo de Passos Coelho amainaram, cedendo à ideia de que o acordo parlamentar PS/PCP/BE, “com o tempo”, responderia às reclamações laborais e populares. Interrompido o impulso de luta de 2011-2015, os trabalhadores ficaram na dependência das promessas do PS. Consequência: as bases eleitorais do BE e do PCP foram sendo absorvidas pelo PS, o que evidenciava uma deslocação gradual para a direita de parte da massa trabalhadora.
Num segundo momento, de 2020 a 2024, com os ganhos eleitorais obtidos à custa dos parceiros, o PS libertou-se de compromissos à esquerda e retomou o rumo à direita, sua vocação de sempre.
Todos os factores que conduziram à vitória da direita em março de 2024 e em maio de 2025, e ao apagamento da esquerda parlamentar estavam, pois, anunciados desde o final do primeiro governo de António Costa.
Para quem não se alimente de miragens, ficou à vista que uma política de “melhoramentos” (perfeitamente enquadrada pelo patronato), não pode dar frutos duradouros. A esquerda parlamentar, para largos sectores populares, mostrou-se ineficaz e até inútil.
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Os mais pobres e os mais desesperados que se sentiram atraídos pela direita e extrema-direita são também, em regra, os mais despolitizados. A despolitização da massa trabalhadora e popular está na base do êxito da direita e extrema-direita e merece por isso uma observação atenta.
Esta despolitização tem aspectos que hoje se podem considerar históricos, com origem na mudança política operada em novembro de 75. Mas tem também, como vimos, aspectos que respeitam à política seguida nos últimos anos e que não podem ser secundarizados.
A ideia de defesa de interesses de classe foi sendo metodicamente desgastada ao longo dos últimos 50 anos. Desde logo, pela desarticulação dos organismos que, na onda revolucionária de 74-75, representavam os interesses populares e operários e que foram a expressão concreta das diferenças de classes e da oposição de objectivos políticos então presentes na sociedade portuguesa.
Depois, foi desgastada pela difusão da ideia de que a defesa de desígnios ditos “nacionais” (na economia, na representação política, nas instituições) serve igualmente todos “os portugueses” sem distinção. A linguagem política dominante passou a omitir ou a tocar de raspão termos como capitalismo, exploração, interesses de classe, etc. O combate ideológico da parte da esquerda que esta situação exigia foi simplesmente abandonado.
A percepção e a prática do confronto de classes foi-se dissolvendo ainda mais por falta de acção política de massas e de um plano político para pressionar os governos, denunciar as forças partidárias e as instituições do regime, confrontar o patronato – em termos de antagonismo de interesses. Quase 500 despedimentos colectivos, abrangendo 6.000 trabalhadores, na maioria da indústria transformadora, decorreram no ano de 2024 praticamente em silêncio, sem difusão pública.
Neste caldo de perda de referências de classe, uma parte do eleitorado popular e trabalhador (naturalmente a começar pelo mais despolitizado, muito dele formado por proletários postos à margem do mundo do trabalho) julgou ver na demagogia da extrema-direita uma hipótese, nem que fosse por exclusão de partes, de agitar as águas.
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O fracasso da esquerda parlamentar, concretamente o PCP e o BE (os únicos que têm tido meios de intervenção de massas), além de eleitoral é político. A que se deve?
– A insistir numa política de remendos da situação do país sem ousar pôr em causa o regime económico-político-social-institucional.
– A ter abandonado o confronto de classes e a demarcação de interesses de classe como mola transformadora da situação.
– A fragmentar a acção política em “políticas sectoriais” (salários, pensões, saúde, habitação, direitos diversos, ambiente, etc.), todas elas muito justas, mas cujo somatório não atinge o nervo do regime social – que é o sistema de exploração e as suas instituições e que só pode ser atingido por uma linha política anticapitalista. É esse o cimento capaz de aglutinar em corrente todas essas lutas e de lhes potenciar as capacidades próprias.
A consequência directa desta postura é a dependência estratégica da esquerda parlamentar em relação ao PS, o que implica colocar as classes trabalhadoras na dependência das classes pequeno e médio burguesas – e, por essa via, na dependência da ordem capitalista no seu conjunto. O significado político disto é uma aliança de classes não declarada que amarra as classes trabalhadoras e as leva a aceitar, como se fosse inevitável, o regime de exploração em todas as suas dimensões (materiais, institucionais, ideológicas).
Debilitados política, ideológica e organizativamente por 50 anos de retrocesso social e derrotas políticas, os trabalhadores não encontram saída que os liberte dos custos de um capitalismo decadente. Mas, pela experiência vivida, não é certamente a confiança no capitalismo que os leva a aceitá-lo – é antes a noção real de que não há um programa político coerente que o combata em toda a linha, e de que não há força organizada disposta a deitá-lo abaixo.
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Que sentido geral se pode tirar da situação (que, de resto, não é exclusivamente portuguesa)?
– As contradições de classes estão a agudizar-se, mas não têm expressão política própria da parte das classes trabalhadoras e populares, que se conformam às fórmulas políticas das outras classes.
– As classes dominantes já não conseguem impor-se com os métodos, os argumentos e os personagens de ontem. A prova está no crescimento da extrema-direita, no declínio das formações partidárias “centristas”, na degradação da política e dos próprios agentes políticos.
– As classes populares sofrem no corpo e no espírito os efeitos da deterioração social e política produzida por um capitalismo senil, sem vislumbre de progresso, mas resignam-se à ordem do capital por não verem saída.
– A contradição por resolver é esta: o quadro é de decadência geral do sistema capitalista, mas o combate anticapitalista permanece bloqueado.
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A balança das forças representadas na Assembleia da República evidencia, agora de forma inquestionável, os limites estreitos da aposta política parlamentar. Mais do que nunca nos últimos 50 anos, fica claro que não há possibilidade de fazer valer os interesses populares por simples via eleitoral. A situação exige uma alteração na relação de forças entre o poder e os trabalhadores – o que, pela experiência conhecida, só pode ser conseguido dando primazia absoluta à luta de massas: sindical, de empresa, de bairro, de rua.
Se há lição flagrante dada pelos resultados de 18 de maio é a de que os trabalhadores não podem alimentar a esperança de inverter o rumo de penúria material e de irrelevância política para que são empurrados sem atacar os interesses do capital. Não há mudança possível sem combate anticapitalista. O que levanta a questão de pôr em marcha uma plataforma política que una a esquerda combativa.
Comentários dos leitores
•Adilia Mesquita 23/6/2025, 21:12
Concordo a 300% com a sua análise corajosa que só peca por tardia. A esquerda tem contemporizado, cheia de luvas, sem fibra para fazer real oposição. Sem humildade para reconhecer uma ignorância do processo histórico que acoberta por detrás de chavões. Sem perceber que precisa de estudar, de se atualizar, de procurar entender o que é peculiar ao mundo em que estamos a viver. Numa palavra, sem perceber que afinal tudo se resume numa expressão simples : "É o capitalismo, estúpido!" E que é preciso entender as contradições que está a enfrentar e que só podem ser resolvidas se com coragem tomarmos o 'destino' nas nossas próprias mãos.
•MANUEL BAPTISTA 24/6/2025, 6:19
Embora com divergências no pormenor, considero que esta análise é um discurso que está praticamente ausente nas forças que agitam rótulos socialistas ou comunistas, mas não correspondem já ao substrato político e ideológico dos seus fundadores e dirigentes do passado.
A questão da educação dos quadros médios e de base dessas organizações sempre teve - em Portugal - uma grave debilidade. Tal como nas hostes de direita e extrema-direita, o que importa nos partidos «ditos de esquerda» é exibir fidelidade ao chefe. Não é a compreensão e inteligente adequação ao programa político. Na minha vida profissional de cerca de 40 anos, vi isso - com desgosto - ao nível sindical. Testemunhei o comportamento dos sindicalistas que promoviam seu partido, a sua linha política, como se tal fosse o papel dos sindicatos.
Realmente, tudo isto resulta da incapacidade de pessoas oriundas da burguesia, que foram «esquerdistas» nos seus anos de juventude, que se encontram em postos chave dos partidos de «esquerda», mas que são intrinsecamente oportunistas; a política deles é eleitoralista e nem concebem o que seja uma política de classe. Triste.
•leonel l. clérigo 24/6/2025, 12:21
Adília MESQUITA
Se está de acordo em 300% com o texto de MR, eu estou em 500% de acordo com seu comentário.
GUERRA à Ignorância e ao "YES SIR!" que adormecem as mentes.
De facto, é preciso começar a demonstrar - não a papaguear - e com bases sólidas: é o CAPITALISMO, ESTÚPIDO!...
•leonel l. clérigo 24/6/2025, 12:28
Manuel Baptista
Eu "gostava" de ter em PORTUGAL um LENINE. E que eu saiba, nunca ele foi um Sindicalista nem teve ORIGEM proletária.
•MANUEL BAPTISTA 3/7/2025, 8:54
Manuel Raposo,
Teu trabalho de análise é meritório. Vai procurar escalercer as causas da derrota histórica da esquerda, não poupando quer os dirigentes, quer os militantes de base, que com aqueles levaram as suas organizações para abismo . Lamento dizer que este desfecho era inteiramente previsível e que eu próprio previ ao observar o resvalar para uma posição direitista oportunista, o pcf, que foi arrastado há anos para uma insignificância em termos eleitorais. Muito do que aconece ( de negativo, infelizmente) nas esquerdas europeias é mimetizado em Portugal, por uns e por outros. A todos os problemas e debilidades que apontas, deves acrescentar um défice de pensamento próprio, original, genuíno das diversas componentes das esquerdas (incluindo formações sem representação parlamentar). Tudo isto faz parte do complexo neo-colonial que eu analisei num ensaio escrito em 2009 e que podes ler no meu blog: "Portugal, país neo-colonial?"
Para além dessa data, todas peripécias e posturas vieram confirmar as minhas teses de 2009, mas foram ignoradas pois estavam em contradição com as posições dos hierarcas dos vários partidos formações e sindicatos: eles nunca iriam sequer ponderar a pertinência e justeza de tal trabalho crítico. Seria o mesmo que fazerem uma auto-crtica em profundidade e sabes que as pessoas com mentalidade burocrática são formatados para terem sempre razão, quaisquer que sejam as circunstâncias.
Reflito que o tempo está maduro, como disse na conferência inicial que vos organizaste na Casa do Alentejo, de se formar um pólo, mais que uma frente ou coligação, que não têm eficácia, porque logo são dominados por burocratas experientes nestas coisas. O polo reflexão/acao transparente não seria refém de logicas sectárias. Porém, destinado a permeabilizar a reflexão entre componentes da esquerda, sendo disponível para desenvolver acções sem subordinação a um poder. Na essência libertário, porque não manipulável por forças que passam o tempo a fazer isso em sindicatos, associações e etc.