Um retrato a cores do regime político
Urbano de Campos — 6 Maio 2025

A campanha eleitoral teve no seu arranque oficial uma contribuição que não pode deixar de ser assinalada: o apoio vibrante e empenhado de Cavaco Silva ao líder do PSD, Luís Montenegro. Com o peso que ainda julga ter como ex-primeiro-ministro e ex-presidente da República, Cavaco fez uma espécie de declaração papal ungindo Montenegro não apenas como o mais bem preparado para chefiar o próximo governo, mas também como um exemplo de rectidão e probidade.
O mais importante das afirmações de Cavaco, na circunstância em que são proferidas, não será o ponto em que procura elevar o companheiro de partido aos cimos da política. Dizer que Montenegro revela “superioridade técnica e política” em relação aos concorrentes, ou que demonstra qualidades que Cavaco “não vislumbra nem antecipa” nos demais líderes partidários – vá que não vá, podem ser afirmações que se tomam por próprias de um apaniguado no calor da refrega eleitoral.
Onde a prosa e a retórica de Cavaco (o homem escreveu e discursou sobre o tema) merece mais atenção é na tentativa de limpar as vestes de Montenegro das nódoas que lhe têm caído em cima desde que o escândalo da empresa “familiar” tem vindo a escorrer pela praça pública.
Cavaco ainda tem um requebro crítico quando assinala o “erro inicial” de Montenegro ao tentar esconder os factos, mas logo o desculpa com “a maneira superlativa” como tentou corrigir o pecadilho – demonstrativa, acredita Cavaco, “da sua boa-fé”.
Feito o reparo, Cavaco desdobra-se no afã de construir um escudo protector do candidato a primeiro-ministro. Montenegro, diz ele, estará a ser “alvo de uma campanha de suspeitas e insinuações” que chegam à “devassa da sua vida privada”. O homem “não violou quaisquer princípios éticos ou cometeu ilegalidades” e demonstra até “uma dimensão ética na vida política” igual ou superior à dos demais candidatos.
É esta operação de limpeza, motivada pelas trafulhices em que Montenegro está metido por culpa própria, o centro da investida inusitada de Cavaco Silva. Não fosse o líder e candidato do PSD estar enterrado até às orelhas e o prof. Cavaco não teria de se tirar do seu sossego para terçar armas pela “ética” do personagem.
E é aqui que a intervenção de Cavaco ganha verdadeiro sentido político. Não o sentido político-partidário-eleitoral que ele procura – mas aquele que denuncia a degradação do sistema político em que as forças do poder chafurdam.
Lembrámos em artigo anterior o caso de Isaltino Morais, ex e actual presidente da Câmara Municipal de Oeiras, condenado por corrupção e que voltou, serenamente – por livre deliberação dos eleitores -, ao mesmo cargo em que cometeu os crimes por que foi condenado. Importa também lembrar o caso mais recente de Miguel Albuquerque, líder do PSD Madeira, reeleito com quase maioria absoluta para a chefia do governo regional, sabendo-se que está indiciado de oito crimes, nenhum deles de somenos: corrupção activa e passiva, prevaricação, recebimento indevido de vantagem, tráfico de influência, participação económica em negócio, abuso de poder e atentado contra o Estado de direito.
Como é óbvio por estes indícios, uma boa parte do eleitorado aceita ser governado por gente sem escrúpulos ou de fama duvidosa – dando sinal de como se vai tornando amorfo e, na realidade, conivente com o tipo de corrupção que marca os agentes do poder político.
A desvalorização dos negócios de Luís Montenegro, feita pelo PSD em peso e agora pelo “decano” Cavaco Silva, cultiva, acentua e tira partido desta tendência. De certo modo, não admira que Cavaco Silva o faça. Ele próprio, apesar da soberba que exibe, tem rabos de palha que merecem ser tirados da sombra em que caíram.
O caso BPN (Banco Português de Negócios, envolvendo ainda a Sociedade Lusa de Negócios e o Banco Insular) configura uma série de crimes – da corrupção, à lavagem de dinheiro e ao tráfico de influências – que vieram a público em 2008. Foram levados a cabo pelo que fora o núcleo duro do X Governo (1985-87), chefiado por Cavaco Silva: Dias Loureiro, Oliveira e Costa, Duarte Lima, Miguel Cadilhe. As contas da fraude foram fechadas pelo governo de Passos Coelho. O prejuízo total poderá ter atingido mais de 9.000 milhões de euros, com 5.000 a 7.000 milhões a pesar no erário público. O presidente do colectivo de juízes que julgou o caso classificou-o como “a maior burla da história portuguesa”.
Ainda um grãozinho de sal: no início de 2011, soube-se que Cavaco Silva tinha adquirido, anos atrás, um lote de 105.378 acções da SLN por um preço especial, abaixo do valor proposto aos próprios accionistas, tendo-as vendido, em boa hora, com lucro substancial.
Eis os homens de confiança de que Cavaco se rodeou quando reclamava “deixem-me trabalhar”. Eis a “ética” em que todos eles se filiam. Não se percebem assim melhor os empenhos morais e políticos de Cavaco Silva?
Os encómios a Montenegro por parte de um “senador” do PSD, de um quadro destacado da República, só contribuem para encharcar ainda mais o chão pantanoso em que o país se movimenta. Não se defende aqui a ilusão de que uma escolha criteriosa dos candidatos aos cargos públicos seja a maneira de sanear esta democracia apodrecida. O que se diz é que todos estes sinais dão conta de que a podridão, no estado actual das forças sociais e políticas em confronto, não só é irreversível como se está a tornar o estado normal do regime pela mão dos seus próprios mentores.
Comentários dos leitores
•MANUEL BAPTISTA 6/5/2025, 19:53
Neste regime de «democracia burguesa», como temos tido, existem muitas formas possíveis de fazer trabalho educativo, trabalho de organização; mas... isso implica que haja um compromisso a sério com as classes exploradas.
Só com muita humildade, com muita auto-crítica, muita inteligência em aprender com os erros próprios e os dos outros, poderá haver uma esquerda social, política e cultural, que lute ombro a ombro com os membros da classe oprimida, independentemente das vassalagens (partidárias, ideológicas, de grupo ...)
Se quisermos fazer um trabalho sério e de fundo, não podemos evadir estes problemas, acho que é vital - para a esquerda - debater estas questões.
•JMLUZ 13/5/2025, 17:00
Concordo inteiramente com o Manuel Baptista
•leonel l. clérigo 17/5/2025, 12:41
A MANUEL BAPTISTA e ANDRADE LUZ
Vou apenas responder ao comentário de Manuel Baptista (MB) visto Andrade Luz concordar "inteiramente" com ele.
1 - Comecemos pela palavra REVOLUÇÃO.
Cada palavra tem seu "conteúdo". E basta desfolhar qualquer Dicionário para verificar ter ela também um: uma mudança profunda da estrutura Política, Económica e Social de uma sociedade. E vale também notar que Gramsci acrescentou a isto uma maior precisão na sua resposta a Mussolini em 16 Maio de 1925:
"Só é revolução aquela que se baseia em uma nova CLASSE (social). O fascismo não se baseia em nenhuma classe que já não esteja no poder..."
2 - Segundo o "critério" de Gramsci - que eu adoto - a REVOLUÇÃO dos CRAVOS não foi Revolução nenhuma: na melhor das hipóteses foi uma eclética Revolta - que não teve ainda um verdadeiro "ajuste de contas" histórico - que resultou numa "caldeirada" de interesses de CLASSES", perante uma situação já INEVITÁVEL: a derrota com extinção do IMPÉRIO imposta pela luta dos Povos colonizados de África e que já tivera seu início com o Brasil e depois com Goa, Damão e Diu. E hoje, no rescaldo dos "Cravos", se anda ainda "nas bocas do mundo" a "liberdade (?)", a "democracia (?), os "direitos humanos" (a que se juntaram recentemente os dos animais... com excepção dos que vão para o matadouro)...dos dois primeiros D, o célebre terceiro D - o DESENVOLVIMENTO - esse, desde a nascença que desapareceu do mapa "por obra e graça do Espirito Santo". Foi de facto um "erro" terem posto DESENVOLVIMENTO em vez de CRESCIMENTO, pois seria fácil - com os dinheiros dos "Desenvolvidos europeus" que foram caindo em algumas poucas algibeiras - "demonstrar" que em Portugal foi possível "concretizar" os 3D de Abril. A quantidade de BMW que passaram a andar por aí foram um bom indicativo "visual" disso.
3 - Meus caros camaradas MB e AL: a nossa "inefável" CLASSE CAPITALISTA, se pudesse ser vendida, ninguém a comprava. E há que perder qualquer esperança REFORMISTA vinda dela: já teve tempo suficiente de vida para mostrar do que era capaz e não o fez.
E a dita "Esquerda" - incluo nela os Comunistas - parece ter também um PROBLEMA: sua incapacidade em vislumbrar um FUTURO, estabelecer um DIAGNÓSTICO sério (não palavroso ou de reivindicação sindicalista como se vê agora na Campanha Eleitoral) dos GRAVES PROBLEMAS do PAÍS e sintetizá-los num PROGRAMA CLARO para se poder concretizar um DESENVOLVIMENTO para as nossas GENTES.
A REVOLUÇÃO, parece continuar a ser vista e empregue como "palavra mágica", espécie de gazua para abrir as portas do "BEM-ESTAR". Mas a REVOLUÇÃO é um meio e não um FIM. Antes disso muito trabalho - de que fala o MB - há a fazer...e nunca foi feito. Estou convencido se fosse entregue HOJE o PODER à "ESQUERDA", ao fim de 24 horas estava ela "na rua" por "ignorância e má figura".
4 - Michal Kalecki - um economista marxista polonês ao tempo de Keynes e um dos fundadores do método de análise da "economia como um todo" ou MACROECONOMIA - foi um autodidata que mereceu o respeito de grandes intelectuais europeus de Esquerda da ECONOMIA POLÍTICA - como Joan Robinson, Sraffa...- tinha um pensamento curioso que se difundiu: "os capitalistas ganham o que gastam e os trabalhadores gastam o que ganham”. E quando o Capitalista é "mixuruca" - como o nosso - o resultado é sempre desastroso.
Mas tinha ele também uma convicção saída da sua abordagem MACROECONÓMICA e que interessa de sobremaneira ao SUBDESENVOLVIDO PORTUGAL: o seu "ceticismo quanto às possibilidades de superação do SUBDESENVOLVIMENTO sob o CAPITALISMO".
O Sr. Rui Rocha - e seus largos amigos a "coberto" ou "descoberto" - mais seus "flatus vocis" LIBERAIS CAPITALISTAS do já longínquo tempo da Rainha inglesa Vitória - que se cuidem.
•jml 19/5/2025, 12:36
Continuo a concordar com o que diz o M.Baptista- O que é preciso é uma prática de discussão que nos leve a tirar conclusões que possam elevar a consciência da classe trabalhadora a lutar pela sua emancipação.
•MANUEL BAPTISTA 19/5/2025, 20:58
Leonel: Tens de te reler de modo crítico (auto-crítico). Os outros não entendem o que pretendes, qual o fundo do teu pensamento. As tuas frase partem em todas as direções, não percebo o fio lógico entre elas.
É preciso fazer o vazio, como dizem os budistas zen. O vazio e depois organizar a nossa visão das coisas de acordo com um único princípio: o da REALIDADE. Então, se realmente nos mantivermos dentro desta disciplina mental, veremos que de nada serve jogar com as palavras, com os conceitos. Lenine terá dito: «só a verdade é revolucionária», eu - que não sou leninista de modo nehum - tento aplicá-la no dia a dia, sem prosápias, sem efeitos retóricos.
A verdade é esta: Todos nós de «esquerda» vivemos parte ou a totalidade da nossa vida a sonhar, mas ignorando o princípio de realidade. Pode ser-se pragmático sem se ser oportunista, pode ser-se conciliador (com outros da nossa classe ou com aliados desta) sem ser reformista. Pode ser-se sonhador nuns momentos, mas perfeitamente realista, noutros...
Para explicar as coisas o melhor que posso, inventei uma história:
- Um indivíduo está com a «espada» suspensa permanentemente por cima da cabeça. Mas, ele não se importa; faz como se ela não existisse, quer mostrar a todos que é o mais valente. Isto é o comportamento de muitos, que se julgam revolucionários.
Ou um individuo, sabendo que tem a espada permanentemente em cima da cabeça, vai estudar o problema e procurar uma solução. Enquanto não encontra a solução, não faz qualquer gesto que possa provocar a queda da espada em cima da cabeça; mas quando tem a solução, age com determinação e rigor cirúrgico, para que a espada deixe de ser um perigo. Isto é um comportamento de alguém refletido, que percebe a gravidade da situação e não desiste de encontrar uma solução.
Por muito que te custe aceitar, é melhor ter a seguinte postura; «Eu tenho aquilo que mereço; se fui derrotado, se não alcancei o fim que pretendia, sou largamente responsável pelos factos. Não me serve de nada escrever «culpando» os outros, ou as circunstâncias, ou a classe capitalista, ou, ou...
•leonel l. clérigo 20/5/2025, 15:04
Manuel Baptista
Para começar, vale aqui dizer que não sou "católico". Quer isso dizer que não é meu hábito "arrastar-me de joelhos" pelo terreiro de Fátima em penitência: se cometo erros, assumo e "aguento-me à bronca" e não os atiro para cima de ninguém para "disfarçar".
E vale também dizer: quanto aos erros "pessoais", cada um "sabe de si". Já os "pessoais" que considero interferirem em prejuízo do destino da Sociedade em que vivo, aí PROTESTO!...com as poucas "forças" que disponho, sobretudo aqui no MUDAR de VIDA.
Penso não ser isto novidade e já algumas vezes lancei aqui umas "biscas" sem resposta. Felizmente que te decidiste agora: mais vale tarde que nunca. Há que reter que um oportuno "tornado" POLÍTICO faz, bastas vezes, "bem à saúde".
1 - O SUBDESENVOLVIMENTO deste nosso PAÍS - fruto duma longa HISTÓRIA de DEPENDÊNCIA com origem, julgo, nas ESTRATÉGIAS da IGREJA a que se juntou mais recentemente o IMPÉRIO USA por "intermédia pessoa" da UE - tem-me roubado algum tempo para pôr a claro as "Especificidades" da Origem dessa DEPENDÊNCIA, o que não deveria ser já surpresa a quem se deu ao trabalho de ler alguns dos meus comentários.
E confesso o meu desconhecimento sobre o "Budismo Zen", visto ter preferido empregar o meu tempo em esclarecer-me na EXPERIÊNCIA TERRENA do SUBDESENVOLVIMENTO em MARX/ENGELS, LENINE, ESTALINE, MAO, GRAMSCI, FIDEL, GUEVARA, HUGO CHAVÉZ, IBRAHIM TRAORE...
E com todo este "arsenal" consegui escapar às angústias dos "ORFÃOS do IMPÉRIO" com a partida de BIDEN e a chegada de TRUMP. E, já "calejado", não "caí de costas" à medida que os últimos resultados "eleitorais" começavam a anunciar o "desastre" da "nossa" ESQUERDA.
Deixemo-nos de tretas: ainda bem que este "TORNADO" do passado domingo veio pôr a nu - se o soubermos aproveitar... - a pastelada "democrática" que, com os anos, acabou por tornar "aguadas" as cabeças da nossa gente pensando-se que era assim que as "colavam" à eternidade.
2 - Manuel Baptista: o que é isso da DEMOCRACIA, que tem sido a base da Ideologia do nosso REGIME BURGUÊS-CAPITALISTA? Com uma simples "discussão", cai tal TEMA como um "castelo de cartas", se a lógica "não for uma batata": como pode a DEMOCRACIA sobreviver, ombro a ombro, com o REGIME UNIVERSAL de SALÁRIO da nossa ECONOMIA de TROCA: brincamos ou quê?
Mas as carpideiras "democráticas" - Varoufakis já referiu o "pânico" da Burguesia Europeia - deixam, por ofício, passar isso em claro.
3 - Esta nossa SOCIEDADE parece estar fadada para apontar sempre o dedo ao sítio errado. Em época de "escolher" um PROGRAMA, um RUMO, escolheu-se "surpreendentemente" e como solução a "AUSÊNCIA de PROGRAMA", na "fezada" de se passar a viver melhor. Como é possível haver um País onde a ingenuidade "é mato"?...
Ora aqui está uma questão interessante - até para os adeptos do Budismo Zen... - que valia a pena debater, mesmo que isso acabe por pôr de pantanas o "sono feliz" da nossa Esquerda.
4 - Manuel Baptista: não me parece difícil ver que não se trata aqui de "culpados" dado que já sabemos há muito ser isso "bolas para fora" que já têm barbas.
Mas do que se trata é de se saber o que foi ERRADO ou CERTO, para se poder corrigir na "acção futura". Não é com o SILÊNCIO dos DEUSES - que perpetuam, entre outros, a ausência GRAVE de qualquer PROGRAMA POLÍTICO-ECONÓMICO - que isso se consegue. Até porque já há quem diga que, com o "método silencioso e invisível" com que se escolhem os DEUSES, não se vai além de "especialistas" em "navegação à vista".
E é de NAVEGAÇÃO à VISTA que se trata.
Nota final:
Não há RUMO sem um PROGRAMA com OBJECTIVOS CLAROS.
E sem tirar a limpo o que vem IMPEDINDO - e como - a nossa SOCIEDADE SUBDESENVOLVIDA de se DESENVOLVER dando-lhe as condições de PRODUÇÃO para sustentar o BEM-ESTAR, não pode haver um PROGRAMA SÉRIO.
•Francisco Parrinha 23/6/2025, 17:02
A minha disposição para a politica nacional nestes dias é nula.
Face às atrocidades que estamos a presenciar no Médio Oriente.Tudo o resto deixa de constituir uma preocupação.
•leonel l. clérigo 25/6/2025, 8:13
F. Parrinha
Essa de "fecharmos a loja " faz-me lembrar o pequeno Comerciante de rua que fechou a loja só porque abriu um Supermercado no largo.