Frutos serôdios do novembrismo
Manuel Raposo — 24 Novembro 2024
Quarenta e nove anos depois, no que respeita à História, está tudo dito e provado acerca do 25 de Novembro. O que resta discutir, e por isso se volta ao assunto todos os anos, é a questão política, isto é, o curso que o golpe imprimiu à vida do país – pela razão de que, ao derrotar o movimento popular de 74-75, o golpe abriu caminho, não apenas à destruição das principais conquistas revolucionárias, mas também, por isso mesmo, à reconstituição das forças sociais e partidárias mais reaccionárias da sociedade portuguesa. A anatomia política do golpe tem, portanto, de ser feita sob a luz do momento em que hoje estamos; do ponto de chegada e não tanto do ponto de partida de há 49 anos. A actualidade do assunto reside aqui.
O ponto de partida é sabido. Foi um golpe militar longamente preparado e executado pela ala direita dos militares, apoiados nos serviços de informação e governos europeus e norte-americano. Teve como ferro de lança político o Grupo dos Nove, o PS e Mário Soares. Visou pôr fim ao movimento popular mais radical da nossa história recente, desencadeado com a queda da ditadura. Criou condições para a reconstituição do grande capital português, desarticulado com a perda das colónias e por acção da onda operária-popular. Destruiu as organizações populares e operárias que deram corpo ao movimento revolucionário. Sobre os seus destroços, instituiu uma democracia parlamentar de que as classes trabalhadoras estão completamente arredadas no que respeita à questão essencial: o poder. Cumpriu, neste aspecto, aquilo que Gustave Flaubert, confrontado com a Comuna de Paris, preconizava para o povo: dê-se-lhe a liberdade, mas não o poder.
Sabido isto, é o ponto de chegada, ou seja, a situação actual, que suscita as perguntas mais interessantes e de resposta mais útil.
O que pretende a direita ao oficializar a evocação do 25 de Novembro? Dar mais um passo no arrastado processo da contra-revolução iniciada em 75. Com juras de respeito à democracia, leva a cabo uma campanha de desacreditação de tudo o que ainda possa cheirar a direitos e regalias colectivos, com efeitos práticos na privatização de tudo o que dê lucro, da saúde à escola ou à habitação. Quase cinquenta anos depois, o capital, agora com ampla representação partidária desde o centro reformista à extrema-direita fascista, prossegue a batalha de ideias para se impor como o único e irrecusável modo de vida dos portugueses de todas as classes.
Porque razão está o PS na mira da direita? A recuperação do poder do capitalismo português depois do abalo de 74-75 foi obra política do PS, na altura a única força partidária burguesa apta a consegui-lo. Só o PS estava estreitamente vinculado ao grande capital e, simultaneamente, próximo da pequena burguesia e das camadas populares menos radicalizadas para poder exercer um papel que permitisse isolar e desarticular o movimento operário e popular mais radical.
A consolidação do poder do capital desde então para cá mostra à burguesia portuguesa, hoje bem escorada no capital europeu, que já não tem de caminhar na sombra do reformismo do PS. A novidade de o PS e o seu suposto socialismo serem o alvo visível da restante direita não ilude acerca do alvo real: as classes trabalhadoras e os parcos direitos sociais de que ainda gozam.
O 25 de Novembro “repôs” o “espírito democrático” do 25 de Abril? O golpe militar que fez cair a ditadura, deu campo a dois movimentos opostos. Um, o da burguesia liberal que, para se ver livre das peias de um fascismo caduco, derrotado em África e abominado no país, só tinha como saída modernizar o seu poder na forma de uma democracia parlamentar legitimada pelo voto popular – ao jeito, claro, do conselho de Flaubert.
Outro, o da classe operária e dos trabalhadores mais pobres que tiveram a ousadia de tomar a liberdade e a democracia à letra e decidiram impor a sua vontade em termos práticos – organizando-se, decidindo e fazendo. Foi um esboço de democracia popular que pôs em causa os planos da burguesia liberal, abalou o poder do Estado, levou a reboque seis governos provisórios e ameaçou virar o país do avesso durante ano e meio.
A contradição entre estes dois 25 de Abril é flagrante e por isso a burguesia lhe dedicou e dedica o seu ódio. Pretender que Abril e Novembro se “completam” é pura hipocrisia, ainda ditada pela memória viva que, apesar de tudo, os trabalhadores têm dos acontecimentos.
O golpe de novembro instaurou uma democracia “para todos”? Os novembristas vendem a ideia de que os meses revolucionários equivaleram a uma ditadura imposta por uma minoria de extremistas, e que o golpe de novembro trouxe uma democracia sem discriminações, para bem de todos.
A verdade é que, nunca como naqueles dezanove meses, as classes trabalhadoras gozaram de tanta liberdade e foram capazes de fazer valer de modo tão determinado as suas exigências, materiais e políticas. A minoria que se sentia coagida era o patronato, os banqueiros e monopolistas fugidos no Brasil, os fascistas e colonialistas nostálgicos, os latifundiários expropriados pelos “levantados do chão” , os especuladores imobiliários, mais o séquito de servidores que vivia à sua sombra.
O primeiro objectivo do golpe de novembro foi retirar às classes trabalhadoras – às suas organizações democráticas de base – a capacidade de intervenção política que lhes permitira, nos meses do processo revolucionário, disputar a autoridade do Estado e dos governos.
A prova está no regime que hoje temos: um monopólio da burguesia, uma “democracia” da, e para a, minoria. A “normalização democrática” de 75 proscreveu a massa popular de qualquer papel na definição do regime político.
Não está à vista que, por via eleitoral ou parlamentar, os interesses da população trabalhadora possam ser atendidos. A maioria dos cidadãos habituou-se a identificar democracia com o mero exercício regular do voto, a ponto de não ver que a natureza de um regime político é determinada pelo poder de decidir e de agir. E esse poder está hoje, sem partilha, nas mãos da elite do capital.
O 25 de Novembro foi um acto “pacífico”? O golpe militar culminou uma conspiração preparada desde o verão de 1975. A par da intervenção que, no plano social e político, coube destacadamente ao PS e a Mário Soares, a direita, associada a diversos agrupamentos fascistas, levou a cabo, de forma concertada, acções terroristas, atentados bombistas, assassinatos, assaltos a sedes de partidos da esquerda durante todo o verão e outono daquele ano. Uma prefiguração do que hoje vemos suceder no plano partidário e parlamentar, agora a coberto da decência institucional.
Vários dos protagonistas de toda esta vasta manobra tinham sido os autores dos golpes – então derrotados pela resposta popular – de 28 de setembro de 74 e de 11 de março de 1975, este com vítimas mortais tal como o de novembro.
Em declarações à Agência Brasil (25.4.2013) e outros meios de comunicação, Mário Soares, recordando o golpe de novembro, disse sem rebuço: “se os comunistas tivessem tomado a comuna de Lisboa, nós bombardeávamos Lisboa”. E descreveu como um ponto alto do seu currículo os apoios (inclusive militares e logísticos) que foram prestados ao golpe pelos EUA, o Reino Unido, a Alemanha.
Como é fácil de ver, os “comunistas” e a “comuna de Lisboa” eram os sectores populares e operários mais activos, os que queriam levar mais longe a transformação do país. Isto desmente qualquer propósito pacífico e revela bem o extremo que a direita “democrática” esteve disposta a atingir para esmagar (à bomba, se preciso fosse) as ambições da população mais lúcida e radical.
Quem ganhou e quem perdeu com o golpe de novembro? As classes trabalhadoras mostraram, mesmo por breve período, ser o único agente capaz de proporcionar ao país um verdadeiro estado de liberdade e democracia, em resultado da sua actuação própria em defesa de direitos próprios.
O país transformou-se e progrediu, as liberdades políticas foram efectivas, a vida diária do povo melhorou enquanto a iniciativa política pertenceu às massas populares, enquanto a acção colectiva acossava o patronato e o regime político, enquanto a autonomia face ao poder instalado dava passos. Não pode haver mudança no rumo do país sem que o proletariado se assuma como força política independente e actuante.
A “normalização democrática” (a expensas de dinheiros públicos) recompôs os grandes grupos económicos do abalo sofrido. Um outro regime, dito representativo (representativo de quem, se não das classes dominantes?), tomou o lugar do que fora um tímido esboço de poder popular.
Não foi preciso esperar muitos anos para ver os frutos da mudança: primazia absoluta aos negócios e à propriedade privada, corrupção e fortunas fulgurantes, diferenças colossais sempre crescentes entre riqueza e pobreza, degradação dos serviços sociais e das condições de trabalho, os pobres de novo empurrados para baixo, os imigrantes vilipendiados além de explorados.
Um neo-novembrismo em tom de farsa. Nos dias que correm, é a direita-da-direita (Chega, Liberais, CDS) que assume papel de ponta de lança do novembrismo, retirando a bandeira aos agentes históricos do golpe. Quer empurrar o regime mais para a direita, chamando frouxos aos que em 1975 assumiram a cabeça da contra-revolução. Quer recuperar – não tanto na forma exacta, mas nas vantagens práticas – a liberdade de que o capital e as elites burguesas gozavam antes de a ditadura ter colapsado.
Mas, todo este rebotalho com propósitos extremados, ao afirmar-se como o herdeiro mais consequente do novembrismo – fazendo do golpe o acto, por excelência, fundador do regime actual (no que tem toda a razão!) – terá de arcar com as desgraças que o mesmo regime destila. Pela razão simples de que tais desgraças, à distância de 50 anos, não podem ser assacadas ao tímido esboço de democracia popular de 74-75 – mas sim à “normalização” burguesa, à recuperação do poder económico do capital, à rédea solta dada às classes dominantes para explorarem, enriquecerem e corromperem. É essa a origem do fosso entre as classes e do apodrecimento social e político de que somos testemunhas.
Comentários dos leitores
•João Coelho 24/11/2024, 19:06
Excecional
Como tem sido hábito
•Adilia Mesquita Maia 25/11/2024, 14:55
Muito bom. Extremamente lúcido, corajoso e sem papas na lingua, chamando os bois pelos nomes.
'Liberdade sem poder' é piada que infeliuzmente o capitalismo conseguiu vender como coisa séria pois domina o porcesso de formaçao das subjetividades, atraves da in formaçao, da publidicade, do entretenimento, etc. atraves de um processo que alguem tambem muito lucido designou de 'idiossubjetivaçao, isto é , de formaçao de sujeitos idiotas. Penso que é na denuncia e no possivel desmantelamento deste processo que nos devemos focar, se quisermos ir a algum lado onde valha a pena ir.
Será que agora com a internet tao disseminada podemnos fazer alguma coisa para o contrariar tal processo - podemos tirar força à idiossubjetivaçao? ?
Claro que textos como este sao impactantes, mas quem os lê? que divulgaçao tem? Porque nao resumir em frases pregnantes de forte efeito retorico as ideias aqui explanadas com tanta inteligencia e sabedoria?
Já se reparou que a maior parte das pessoas nomeadamente mais jovens tem um vocabulario cada vez mais reduzido?!
Nao deveremos tentar tambem outras estrategias para chegar a um publico mais vasto e consciencializar um maior numero de pessoas para a postura de autenticos idiotas em que nos querem moldar?
É que pessoas inteligentes, progressistas e que sabem articular as suas ideias sao cada vez mais raras, algumas poucas bem intencionadas muitras vezes so conseguem salivar de raiva e isso tambem nao leva a parte nehuma. Eu apostava na retorica e inspirada n a expressao retorica do Flaubert: 'deem-lhes liberdade mas nao poder" desafiava humoristas, cartonistas e mesmo pessoas mais classicas a glosarem a expressao, denunciando o sofima que ela esconde: porque o que é liberdade sem poder? Se é liberdade para dormir num banco de jardim, ou numa tenda no passeio de uma avenuida qualquer, muito obrigada, nao quero!!! Que lhes faça bom proveito.
•Francisco Balr 25/11/2024, 22:45
Este texto é um pedaço de história que retrata fielmente o que se passou em 1974 e 1975, assim como o que se passa hoje. Em 1974 houve um golpe de estado que derrubou a ditadura fascista e é verdade que o campo revolucionário, através das lutas nas fábricas e nos campos, alcançou conquistas importantes, algumas das quais ainda hoje estão de pé, contudo, nunca alcançou o poder e o exercício do poder é a questão central de qualquer revolução. Nós governos provisórios que vão do segundo ao quinto governo, os trabalhadores tiveram um primeiro-ministro que transformava em lei o que os trabalhadores e as massas populares iam conquistando, mas dentro desses governos havia forças reacionarias que manobravam na sombra, gente que se dizia socialista e tinha como aliados a cia e a social-democracia europeia, por outro lado, do meu ponto de vista, havia também a questão da vanguarda política revolucionária dos trabalhadores que, pura e simplesmente, não existia. O PCP ia atrás do movimento proletário e popular em vez de o dirigir rumo a essa tomada do poder e as forças á sua esquerda, apesar da retórica que apresentavam não tinham a expressão que era necessária para dirigir os trabalhadores, os jovens e todas as camadas da população que se assumiam como anti-capitalistas. A somar a tudo isto, havia fortes contradições no seio das forças armadas, foi por isso que uma parte dos militares revoltosos em Abril de 1974, por falta de consciência política e de percepção do momento histórico que o país atravessava, foi o porta estandarte da direita mais reacionarias e do grande capital, falo do chamado Grupo dos Nove que, instrumentalizados pelo maior traidor português á classe trabalhadora, Mário Soares e sob direção da cia e da social-democracia europeia, levaram a cabo o golpe contra revolucionário de 25 de Abril de 1975. Nesse dia, como cantava José Mário Branco, "foi um sonho lindo que acabou".
Infelizmente, passados 49 anos, a verdadeira vanguarda dos trabalhadores continua a não existir, o grande capital nacional e estrangeiro manda em Portugal e a esmagadora maioria do Povo, anestesiada pelas centrais de informação americanas, nem sabe o que é uma revolução e alinha em tudo o que a propaganda oficial destila diariamente.
Façamos a nossa parte, cada um dentro das suas possibilidades, agitando a consciência do maior número de pessoas possível, desmascarando os planos da burguesia, porque, neste momento, não temos espaço político para mais.
•leonel l. clérigo 26/11/2024, 9:06
UMA SUGESTÃO AO NOSSO DINÂMICO BURGUÊS SEMI-CAPITALISTA
Agora que acabou a brincadeira inútil do 25 de Novembro contra o 25 de Abril, que tal dedicarem-se a DESENVOLVER o País e tirá-lo do SUBDESENVOLVIMENTO?
•Manuela Vasconcelos 27/11/2024, 12:23
Muito bom. Divulgarei pelos meus amigos e camaradas. 25 DE ABRIL SEMPRE!