Hezbollah prepara guerra popular de longa duração

Editor / Leila Ghanem — 16 Outubro 2024

“Líbano e Palestina estão a passar pelo período mais sério e decisivo de nossa história”

A brutalidade dos ataques na Palestina e no Líbano, a extensão dos actos de guerra, o desplante terrorista de quem não olha a regras, a impunidade diante das condenações internacionais, tudo isto somado à fanfarronice dos dirigentes de Israel, se for tomado pela aparência e pelo efeito imediato, corre o risco de convencer muita gente de que este novo nazismo encarnado por Israel e patrocinado pelos EUA é imbatível. Olhado o assunto pela base, contudo, é nossa opinião que Israel empreendeu uma fuga em frente na tentativa de evitar o afundamento de um Estado, de natureza colonial, tornado insustentável pelas alterações de forças que o mundo e o Médio Oriente têm presenciado.

Os comentadores basbaques que, diante dos ataques terroristas de Netanyahu, se apressaram a exaltar o “sucesso” de Israel – apagando a barbárie posta à solta e desprezando a revolta que isso causa em todo o mundo – não medem o dia de amanhã.

A decisão do Hezbollah de empreender uma guerra popular prolongada aponta no sentido de desgastar Israel, e com ele o imperialismo ocidental que concentra grande parte das suas forças nesta batalha pelo Médio Oriente. Por outro lado, a capacidade militar demonstrada pelo Irão em atingir alvos militares no interior de Israel (facto sistematicamente escondido da opinião pública ocidental) mostra que o nazismo sionista não enfrenta adversários de pé descalço ou intifadas apenas com pedras e fisgas. Por outro lado, ainda, a assinatura em dias próximos de um pacto de defesa russo-iraniano, que acresce ao auxílio militar já prestado a Teerão, dá conta do empenhamento da Rússia em defender a parceria triangular que tem com o Irão e a China.

Em suma, quer o extremismo sionista, quer os EUA têm de deitar sérias contas à vida antes de darem um próximo passo na tentativa de recuperarem o terreno perdido, digamos, na última década. É verdade o que sublinha Leila Ghanem na entrevista que publicamos quando diz que em Gaza e em Beirute se trava uma batalha por toda a humanidade – porque do outro lado está a barbárie imperialista.

 

TRÊS QUESTÕES A LEILA GHANEM SOBRE O ASSASSINATO DE HASSAN NASRALLAH

Entrevista de Robin Delobel da Investigaction.net a Leila Ghanem.

Israel bombardeava o Líbano há mais de uma semana quando, na noite de sexta-feira 27 de setembro, matou Hassan Nasrallah, secretário-geral do Hezbollah. Como está a população a reagir? União ou divisão diante dos bombardeios de Israel? Quais são as possíveis consequências? Entrevistámos Leila Ghanem, uma antropóloga que mora em Beirute. Ela é editora-chefe da revista Bada’el, fundadora do Tribunal de Consciência para julgar crimes de guerra israelitas em 2008 e coordenadora do Fórum Social para Alternativas no Médio Oriente.

Robin Delobel: Qual é o sentimento entre a população libanesa após o assassinato de Hassan Nasrallah?

Leila Ghanem: O assassinato do líder histórico Hassan Nasrallah “Al-Sayyed” ocorreu no meio de um incrível tumulto de eventos catastróficos que se abateram sobre a população do Hezbollah, com ataques aéreos intensos e simultâneos no sul do Líbano, no Vale do Bekaa e nos subúrbios do sul. Centenas de milhares de refugiados inundaram a capital numa atmosfera apocalíptica, 250.000 nos primeiros quatro dias.

Esse número triplicou no momento em que lhe respondo. É difícil manter a serenidade, sob as bombas que caem a poucos quilómetros de minha casa nos subúrbios do sul, com os sons ensurdecedores de drones sobrevoando a capital libanesa dia e noite. Consigo ouvir também os ecos de orações e recitações do Alcorão, em todo o oeste de Beirute para repouso da alma de Al-Sayyed.

A população ainda não reagiu, encontrando-se a recuperar do terrível choque causado pela série de ataques que se seguiram: a operação de beepers que feriu 4.000 pessoas, os walkie-talkies, o assassinato da liderança do Al-Radwan [forças de operações especiais do Hezbollah] e o fatídico dia 23 de setembro, em que morreram 600 pessoas num único dia. A estupefacção e a impotência estão na ordem do dia, há quebras entre os admiradores do líder, implorando que volte, alguns pedindo que ele volte e os leve consigo.

Uma mulher idosa, que se queixava de dormir na calçada por falta de abrigo, disse-nos que o Sayyed “certamente regressará com o Mahdi (o esperado profeta dos xiitas) para continuar a libertação da Palestina”. Perguntamos: “E a sua situação, minha senhora?” E ela respondeu que a sua condição “continua melhor em comparação com a dos habitantes de Gaza”. Os seus comentários foram transmitidos nas redes sociais.

É um momento de tristeza e reflexão, mas a reacção virá e, de qualquer forma, nada apagará o líder carismático das mentes de milhões de pessoas no Líbano e no mundo árabe-muçulmano, na verdade de todo o mundo.

Para a população xiita, Nasrallah é uma figura sagrada comparável a Husayn Ibn Ali, filho do dignitário Ali Bin-Abi-Taleb, filósofo e quarto Califa, assassinado em Karbala (680 dC) como seu pai Ali, assassinado porque se recusou a permitir que a classe ascendente de príncipes legislasse sobre “propriedade privada” e controle do dinheiro público.

Nasrallah proveio de uma família pobre do sul e cresceu num bairro da classe trabalhadora do leste de Beirute, onde era amigo dos desprotegidos e defensor de causas justas. Dedicou a sua vida à Palestina. Agora que foi martirizado, as suas palavras ressoam ainda mais poderosamente. Será mais do que um ícone; será uma identidade ancorada na mente das pessoas.

Para a esquerda radical que permaneceu fiel às posições bolcheviques expressas no Congresso de Baku para os Povos do Oriente [setembro de 1920], Nasrallah assume-se como um lutador anticolonialista e anti-imperialista, um Libertador, o equivalente a um Vo Nguyen Giap, um Che Guevara ou um Ho Chi Minh. Ele é uma das últimas armas levantadas contra o imperialismo. Espero que ele não seja o último.

RD: Os políticos libaneses estão unidos contra Israel?

LG: Não, a classe política não está unida contra Israel. A guerra civil que eclodiu no Líbano em 1975 e durou quase duas décadas teve como objectivo desarmar os palestinianos e expulsá-los do Líbano. Isso levou, após uma intervenção israelita-americana em 1982, à derrota das forças progressistas e à deportação dos combatentes palestinianos e do seu líder Yasser Arafat para Túnis.

Como em todas as derrotas, seguiu-se o massacre da população civil. Foi o famoso genocídio de Sabra e Shatila, cometido pelos falangistas libaneses sob proteção israelita. Béchir Gemayel, eleito presidente sob ocupação israelita, foi assassinado por assinar um tratado de paz com o inimigo sionista. O seu irmão Amin foi deposto pelo mesmo motivo.

A divisão na classe política do Líbano está profundamente enraizada na história. É bastante estrutural, deixado como legado pelos acordos Sikes-Picot que dividiram a região árabe entre o imperialismo francês e britânico no final da Primeira Guerra Mundial. Pela carta de 1947 elaborada pela França, que assumiu o mandato do Líbano após a Segunda Guerra Mundial, foram lançadas as bases para um sistema confessional [dividido por seita religiosa] baseado na supremacia económica.

A actual divisão no Líbano deve-se à pressão económica e social sem precedentes exercida pelos países ocidentais através das instituições financeiras. É inegável que o Líbano está no centro da batalha estratégica travada entre os EUA e o Irão, que inclui vários países, como Síria, Iémen e Líbano.

Os doadores internacionais condicionam a sua ajuda ao Líbano ao desaparecimento ou enfraquecimento considerável do Hezbollah. O Líbano enfrenta abertamente duas alternativas: ou desarmar o Hezbollah ou mergulhar na escuridão da falência económica acompanhada de guerra civil (as fascistas Forças Libanesas têm uma milícia de 30.000 homens armados e financiados pela embaixada dos EUA). Este é um dilema para um país (pelo menos para uma boa maioria dos cidadãos libaneses) que experimentou seis guerras israelitas em 25 anos (1978, 1982, 1993, 1996, 2000, 2006).

Presentemente, na nossa sétima guerra, a grande maioria dos libaneses vê o Hezbollah como uma resistência que libertou o país após 22 anos de ocupação israelita, enquanto uma grande proporção da população acredita que o armamento de dissuasão do Hezbollah impediu os repetidos ataques assassinos de Israel por 18 anos. (As últimas eleições legislativas no Líbano foram baseadas em dois temas: 1. Você apoia ou opõe-se ao armamento do Hezbollah? e 2. a questão social. Dados os resultados [próximos], é seguro dizer que a população está dividida.)

Essas diferenças não são confessionais, já que o Hezbollah tem dois grandes aliados nos círculos cristãos, o partido do ex-presidente Michel Aoun e o campo de Frangieh [Suleiman Frangieh foi presidente do Líbano, 1970-76]. Esses partidos políticos, além do chefe dos drusos do Monte Líbano, anunciaram o seu luto [por Nasrallah].

Deve-se ressaltar que toda a população libanesa acolheu os refugiados do sul de braços abertos, a solidariedade estava em toda parte e comités de bairro foram formados em todos os lugares para ajudar e abrigar os deslocados. Note-se que no Líbano é proibido por lei referir-se a Israel sem mencionar o inimigo israelita e visitar Israel é considerado traição punível com prisão.

RD: Quais são as reacções planeadas a esses ataques?

LG: O Líbano e a Palestina estão a passar pelo período mais sério e decisivo de nossa história. Esta é uma guerra de sobrevivência que opõe a nossa resistência e os nossos povos ao inimigo mais bárbaro da história, apoiado, dirigido, armado, financiado, propagandeado e protegido (legal e diplomaticamente) pelo Ocidente imperialista, particularmente os EUA.

Desde 8 de outubro, Washington estabeleceu uma ponte aérea com Telaviv e entregou as armas mais sofisticadas, incluindo os F35 e as bombas de duas toneladas usadas para assassinar os membros e o líder do Hezbollah. Os EUA acabam de anunciar esta semana que concederam 9 mil milhões de dólares a Israel de apoio contra a resistência libanesa. Os libaneses e palestinos estão a ser mortos por armas e munições dos EUA e da Europa. Cerca de 45 mil milhões de dólares é o montante de ajuda dos EUA enviada a Israel desde 8 de outubro para massacrar os habitantes de Gaza, o que significa um milhão de dólares, pagos pelos contribuintes americanos, por cada cidadão de Gaza [oficialmente] morto.

O que está atualmente em jogo no Médio Oriente é o futuro da humanidade. Será a ordem internacional do século XXI baseada no genocídio e na limpeza étnica dos palestinos? Ou na sua protecção? Em síntese, barbárie ou civilização?

De um lado, a lógica dos Acordos de Abraão; do outro, o do Eixo da Resistência. Na verdade, a estratégia EUA-Israel não era apenas aniquilar Gaza ou completar a guerra de 1948 na Palestina. Netanyahu e os seus aliados dos EUA acreditam que eliminar a resistência na região abre caminho para a submissão dos povos da região à supremacia dos EUA.

O objetivo dos EUA era estender a guerra

Ficou claro que o objetivo dos EUA, disfarçado por conversas sobre um caminho diplomático ou uma “solução de dois Estados”, foi apenas um engodo para estender a guerra de Gaza à Cisjordânia e desencadear uma guerra contra a resistência libanesa quando as condições no terreno estivessem maduras.

Em seis meses, o equivalente a cinco bombas atómicas de Hiroxima foi lançado em Gaza e 85 bombas dos EUA (MARK 84, anti-reforços pesando 1 tonelada cada) e BLU-109, pesando 2 toneladas cada, para matar o líder da resistência Hassan Nasrallah. Antes dele, o major Ibrahim Akil, cujo assassinato foi dedicado por Netanyahu aos seus patronos norte-americanos, que o procuravam desde 1983 por dois actos militares: a explosão na embaixada americana em Beirute durante uma reunião de espiões americanos no Médio Oriente e o ataque à base da Marinha que matou 246 soldados.

Para além dos objectivos anunciados por Israel e pelos seus aliados ocidentais, esta guerra declarada contra a resistência libanesa visa não só devolver os 300.000 colonos do norte de Israel às suas colónias na fronteira libanesa, e deter as operações de apoio a Gaza: o objetivo é liquidar o Hezbollah, que atualmente é o maior movimento de libertação nacional em escala internacional.

O movimento do Hezbollah provou o seu valor em 2000, quando expulsou o exército israelita do sul do Líbano após 22 anos de ocupação, e em 2006, quando infligiu uma derrota esmagadora ao Estado sionista. Foi a primeira vez depois do Vietname que os simples comandos de um exército de libertação nacional venceram uma guerra contra um exército regular armado até os dentes e auxiliado pelos Estados Unidos.

Uma batalha por toda a humanidade

A batalha que se trava em Beirute e Gaza é uma batalha por toda a humanidade. As apostas são semelhantes às da Guerra Civil Espanhola [1936-39]. Netanyahu anunciou nas Nações Unidas que está a liderar a luta em nome do Ocidente civilizado contra a barbárie e o terrorismo.

A questão hoje é: podemos manter-nos firmes e erguer-nos novamente? A resposta para nós e para o povo de Gaza é que temos de o fazer, pois esta é uma batalha de vida ou morte.

No meio do tumulto da morte do seu líder, o Hezbollah reiterou a intenção de continuar a guerra contra Israel em apoio a Gaza. Desde ontem, trechos de vários discursos de Nasrallah foram transmitidos, nos quais ele insiste no significado de morrer como mártir. Ele explica que “morrer pela pátria, ou pela causa, pela justiça, pela liberdade, pela Palestina, é um caminho voluntário para os militantes do Hezbollah”.

A resistência tem objetivos que continua a seguir. O exército de 100.000 homens de comandos não foi abalado. Os comandos do Hezbollah são homens de terreno experientes e corajosos que treinam há 30 anos e já lutaram contra o exército colonial israelita e os mercenários do Daesh [ISIS] na Síria e no Iraque. De acordo com o analista militar da Al-Jazeera, Fayez Al-Dwairi e outros, o Hezbollah ainda não usou mais de 10% das suas armas.

O mesmo pode ser dito do novo líder do Hezbollah, Hisham Saffieddine, um colaborador próximo de Nasrallah, que tem actuado nas arenas militar, organizacional e política. Por enquanto, o partido está a reorganizar-se e tem que lidar com questões de segurança. Decidiu passar à clandestinidade e acaba de publicar um texto sobre a adopção da linha de uma guerra popular de libertação de longa duração.

Um provérbio árabe diz: “O golpe que não te mata fortalece-te”. Estamos decididos a lutar, conscientes de que a batalha que estamos a travar aqui no Líbano é a batalha de toda a humanidade, pois é aqui que se concentram os predadores capitalistas, com sua ciência e suas armas mais sofisticadas e mortais.

 

Tradução MV a partir da versão publicada por Workers World, 3 outubro 2024.


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