A missão que o imperialismo exige de Israel
Manuel Raposo — 7 Outubro 2024

“Direito de defesa” é a frase obrigatória que precede o discurso de qualquer dirigente do mundo ocidental acerca de Israel, reproduzida como um eco interminável por todos os jornalistas e comentadores de serviço. Na verdade, trata-se de uma palavra de código para significar o direito de ataque e a impunidade conferidos pelos EUA e pela a União Europeia aos dirigentes sionistas para exercerem o seu mandato terrorista no Médio Oriente. Decorrido um ano de guerra genocida na Palestina, seguido da aplicação do mesmo método ao Líbano e de ameaças de estender a guerra ao Irão, cabe perguntar que articulação existe entre as palavras vãs dos dirigentes ocidentais e os actos concretos de Israel.
Os esforços diplomáticos dos EUA são uma mascarada
Os supostos esforços diplomáticos desenvolvidos pelos EUA para “moderar” Israel ou obter consensos de cessar-fogo têm de ser denunciados como uma mascarada. Quer em Gaza, quer agora no Líbano, toda a manobra dos EUA tem ido no sentido de dar a entender que não aprova os actos do governo israelita e que o governo de Biden tudo faz para travar os ímpetos belicistas de Netanyahu. Comentadores zelosos acrescentam a fábula de que a origem da violência sionista está no esforço pessoal de Netanyahu em safar-se dos processos sobre corrupção que sobre ele impendem, e no papel de dois ou três extremistas sionistas que empurram Israel para uma guerra bíblica.
É claro que na teia complexa da realidade todos estes e muitos outros factores podem ter lugar, mas fazer deles a origem e o motor dos acontecimentos seria pôr o mundo de pernas para o ar.
A verdade é que não houve um só dia no último ano em que a equipa de Biden não enviasse as armas de que Israel precisa para concretizar os massacres de civis, em que não procedesse ao financiamento do Estado israelita com o fim de aliviar o descalabro económico em que o país caiu, e em que não desenvolvesse toda a coreografia diplomática para salvar a sua própria face diante do resto do mundo – legitimamente horrorizado com a barbárie de Israel. A aliança de ferro que estes actos demonstram foi, aliás, confirmada pelo gáudio, sem disfarce e sem vergonha, com que o Congresso dos EUA aplaudiu o discurso bélico de Netanyahu apresentando-se como defensor de todo o mundo ocidental. Como não ver em tudo isto senão uma fundamental convergência de interesses?
De resto, qualquer comentador de qualquer quadrante reconhece que os EUA poderiam travar Israel de um dia para o outro se assim quisessem. A boa pergunta a colocar, portanto, não é saber por que razão “não conseguem” os EUA travar o poder terrorista de Israel – é sim saber que proveito contam os EUA tirar da acção, por mais suja que seja, do seu aliado sionista, na circunstância liderado pelo delinquente Netanyahu.
A missão imperialista de Israel no Médio Oriente
Aquilo a que se convencionou chamar o “conflito israelo-palestino” revela apenas uma parte da missão que o imperialismo (primeiro britânico, depois norte-americano) conferiu ao estado sionista. As guerras de extermínio dos palestinos conduzidas desde 1948 pelos sionistas destinam-se obviamente a consolidar o estado colonial que Israel na verdade é. Foram, e ainda são os palestinos as primeiras e as mais directas vítimas da implantação e do alargamento territorial contínuo levado a cabo pelo estado sionista. São eles igualmente quem mais persistentemente tem oferecido resistência a essa colonização e, portanto, resistência aos propósitos imperialistas de manterem na região uma testa de ponte. Por isso, a atenção e a solidariedade das populações árabes e muçulmanas (não assim com as lideranças dos países vizinhos) se viram para os palestinos e fazem deles, justamente, símbolo de resistência contra injustiças e misérias de que elas próprias também são vítimas.
Mas a actuação histórica de Israel e as guerras que agora desenvolve mostram que, muito para além do “conflito” com os palestinos, a missão de Israel como agente do imperialismo contemporâneo procura abranger uma área geográfica muito mais ampla – na realidade, toda a Ásia Ocidental, como mostra a fúria israelita (que os EUA acompanham) contra o Irão.
Aquilo que os EUA fazem com sanções económicas, ameaças militares, isolamento diplomático e campanhas de propaganda é completado pelos israelitas com acção militar-terrorista directa – que os porta-aviões norte-americanos colocados no Mediterrâneo e no Golfo Pérsico protegem. As recentes ameaças de Netanyahu nas Nações Unidas (diante de uma plateia vazia, diga-se, ao contrário do Congresso norte-americano) de que o longo braço de Israel chegaria a qualquer parte são a confirmação dessa mesma missão alargada, à mão armada, agora proclamada sem pudor.
A tarefa de Israel complica-se, contra o que parece
Deixemos, pois, de lado a ideia meramente propagandística de que a actuação de Israel visa “criar um ambiente de segurança” à sua volta que o proteja de “ameaças”. É Israel que, desde a sua criação há 76 anos, constitui uma ameaça para todos os países do Médio Oriente que queiram seguir uma política própria, independente dos interesses do imperialismo norte-americano, e também europeu. Foi sempre sua função impedir a unidade do mundo árabe, subverter regimes, comprar líderes ou executá-los, e, quando necessário, desencadear punições armadas.
Contrariamente ao que possa parecer pelos acontecimentos do último ano, esta missão não está mais fácil para Israel. Apresenta-se sim mais difícil porque, precisamente, a situação no Médio Oriente e arredores se afigura mais difícil para os EUA. Daí advém, também, a particular brutalidade das intervenções militares e de terror israelitas, sinal de um desespero crescente diante das forças que se lhe opõem, na região e não só.
Se os EUA, como se vê, “poderiam”, mas não querem, travar Israel – mesmo com risco de desmascaramento completo da sua política face ao mundo árabe e muçulmano, e mesmo face à opinião pública mundial – é porque necessitam da mão armada de Israel.
Israel e o imperialismo defrontam um mundo diferente
Compreende-se isto se atentarmos na mudança que se deu na relação de forças regional e mundial. O Médio Oriente não é hoje o que foi desde criação de Israel em 1948 até ao final dos anos 1970: a revolução republicana de 1979 mudou o Irão e veio a permitir a criação de forças nacionalistas com capacidade política e militar no Líbano, no Iémen ou em Gaza. Não é o mesmo depois da derrota dos norte-americanos na guerra da Síria, com vantagem para a influência política e a presença militar russa. Não é o mesmo depois de os EUA terem sido forçados a sair do Afeganistão e de terem perdido capacidade de determinar a política no Iraque.
O xadrez da região mudou também com a aproximação entre o Irão e a Arábia Saudita, por intervenção diplomática da China, o que bloqueou os propósitos norte-americanos de aliar estados árabes a Israel. Mudou com o facto de a Arábia Saudita e a Rússia se entenderem sobre a política petrolífera da OPEP, corroendo a hegemonia que os EUA tradicionalmente tiveram na questão. Está também em mudança pela adesão ao plano chinês da Nova Rota da Seda que conta com a participação de países da Ásia Central e do Médio Oriente, secundarizando os investimentos e a influência política dos EUA e do Ocidente. A inclusão da Arábia Saudita, do Egipto e dos Emirados Árabes Unidos no BRICS e a atração que o novo bloco económico exerce sobre a Turquia, membro da NATO e adversário de Israel, contribui igualmente para minar o poder norte-americano na região e complicar o papel dos israelitas como ferro-de-lança do imperialismo.
Plena convergência de interesses Israel-EUA
É contra esta mudança com implicações regionais (e planetárias, se considerarmos o pano de fundo da competição do Ocidente imperialista com a Rússia, a China e o chamado Sul Global) que Israel é chamado a agir se quiser manter o seu estatuto de agente útil ao imperialismo norte-americano.
A tentativa anunciada por Israel de subverter o “equilíbrio político na região”, como Netanyahu disse, inflamadamente, na assembleia geral da ONU, corresponde à tarefa que os EUA esperam do seu agente. Não são, portanto, as ambições de Netanyahu e dos sionistas extremistas (por muito que isso também conte no particular) que, ao contrário do que se ouve dizer, determinam a política imperial norte-americana. Induzir a ideia de que os EUA vão a reboque das veleidades pessoais de Netanyahu ou dos propósitos do extremismo sionista significa inocentar o primeiro responsável, o sustentáculo do papel mercenário de Israel.
As ambições próprias de Israel (manter-se como Estado, usurpar território, eliminar as ameaças externas, impedir a unidade de árabes e muçulmanos) convergem e articulam-se plenamente com os interesses norte-americanos. Os EUA, incapacitados eles próprios para uma intervenção directa por circunstâncias várias, aproveitam o balanço da guerra desencadeada por Israel há um ano para tentarem reverter a situação desfavorável que os últimos tempos lhe criaram.
Enfraquecer o Eixo da Resistência significaria diminuir a influência do Irão na região; é o que Israel procura com os ataques ao Hamas, ao Hezbollah e aos Houthis. Pôr a Síria de novo a ferro e fogo prejudicaria os ganhos militares e políticos da Rússia; é o que Israel tenta ao bombardear território sírio. Colocar o Médio Oriente em estado de caos comprometeria os investimentos chineses da Nova Rota da Seda; é o que Israel faz ao ameaçar toda a região com o seu “longo braço” armado. Instalar, se para tal houvesse capacidade, regimes submissos no Líbano, na Síria ou no Iraque daria peso ao plano norte-americano, negociado por Trump em 2020, de envolver os regimes árabes reaccionários (Emirados, Barém, Egipto, Arábia Saudita, Jordânia…) numa aliança com Israel; é o que Israel ambiciona ao anunciar propósitos de alterar o balanço de forças no Médio Oriente.
A realidade contraria as ambições
As ambições são grandiosas, mas as lições do passado apontam noutro sentido. Todos aqueles que exultaram com os atentados terroristas e os assassinatos cometidos por Israel nas últimas semanas – glorificando “o génio militar” de Israel, ou “o golpe de mestre” contra o Hezbollah – satisfazem-se com a espuma dos acontecimentos. Mostram não ter aprendido o trajecto da História: todos os povos que se empenharam em libertar-se do colonialismo e do imperialismo, cedo ou tarde o conseguiram, por muitos sacrifícios que tivessem de padecer.
Esta verdade geral tem, no caso dos povos do Médio Oriente, razões de sobra para se repetir. O quadro de forças e de capacidades políticas hoje presentes na região, e também o quadro mundial que se desenha, favorecem-nos. O seu sacrifício e a sua resistência ganham a simpatia e a solidariedade de povos em todo o mundo. As lideranças políticas e as capacidades de combate reconstituir-se-ão inevitavelmente porque assentam em vastos movimentos populares, radicados nas suas próprias terras, que não desarmam na vontade de independência e se apoiam mutuamente. As derrotas que sofreram são por isso temporárias.
Ao contrário, Israel padece de uma desvantagem estratégica. Subsiste por financiamento, armamento e protecção política do seu principal patrono, os EUA. O terror que exerce sem disfarce, a vanglória e a brutalidade dos seus políticos causam repulsa nos povos do resto do mundo. A sua formação como colónia em terra alheia não lhe permitiu em 76 anos formar-se como nação propriamente dita – mais de meio milhão de israelitas abandonaram o território desde 7 de outubro do ano passado, possivelmente para sempre, beneficiando de dupla nacionalidade, receosos do presente e descrentes do futuro. E, acima de tudo, o declínio irreversível dos EUA e do Ocidente no panorama mundial aponta ao sionismo um futuro sombrio – lembrando-lhe certamente o destino trágico dos mercenários abandonados por quem um dia os contratou com promessas de fortuna e vida folgada. Desde Cartago que esta realidade é conhecida.
Comentários dos leitores
•leonel l. clérigo 9/10/2024, 13:39
Este texto acima de MR tem, em minha fraca opinião, uma enorme virtude: CHAMAR os BOIS pelos NOMES, coisa rara em tempos de ABRILISMO já meio apodrecido de 50 anos.
1 - Quando se procura na COMUNICAÇÃO SOCIAL "DEMOCRÁTICA" as "RAZÕES" das guerras que recentemente despontaram na EUROPA e MÉDIO ORIENTE, "fica-se na mesma, como a lesma...". Ou dito de outro modo mais popular: " Estúpido que nem um pneu".
Comentadores encartados relatam-nos os "acontecimentos" como um filme de "cowboys" à velha maneira de Hollywood: os "Índios" MAUS contra os BONS e CIVILIZADOS "Colonos".
2 - É "claro como água" - como revela o texto de MR - que não se trata nada disso. O IMPÉRIO OCIDENTAL - comandado pelos USA - encontra-se já hoje "acossado por vários lados" parecendo indicar que os POVOS SUBDESENVOLVIDOS do MUNDO - que são a grande maioria, como nós... - começam já a não aceitar a MISERÁVEL situação em que foram colocados por uma minoria de PRIVILEGIADOS que se especializaram no saque das suas RIQUEZAS.
3 - Não deixa de ser curioso olhar hoje a EVOLUÇÃO Histórica do POVO de Israel. Pelas mãos do SIONISMO passou da velha LUTA ANTI-IMPERIALISTA contra ROMA em MASSADA a "Peão-de-Brega" do IMPERIALISMO OCIDENTAL (USA/EUROPA).
Oxalá que não se dê MAL com a "escolha": é "difícil" esquecer aos EXPLORADOS, quem se põe do lado dos EXPLORADORES dos POVOS. E o que poderá acontecer no futuro, só a JEOVÁ pertence...
•Maria Silva 17/10/2024, 8:28
Subscrevo inteiramente tudo o que é dito no texto e nos comentários.