Gaza: os verdadeiros números do genocídio

Editor / Susan Abulhawa — 20 Julho 2024

Beit Lahia. norte de Gaza, 12 junho 2024. Até abril deste ano, tinham sido destruídos 360 mil edifícios

O número de mortos em Gaza em consequência directa ou indirecta do ataque militar de Israel pode situar-se entre 190 mil e 500 mil, muito acima dos perto de 39 mil até agora revelados. Estes números aterradores foram divulgados pela palestiniana Susan Abulhawa em 27 de junho na publicação The Electronic Intifada. O cálculo baseia-se em critérios absolutamente demonstráveis, decorrentes de valores comummente aceites para situações de guerra como a que Israel leva a cabo em Gaza.

A prestigiada revista científica The Lancet, divulgou dias depois, em 5 de julho, a sua própria estimativa (ver aqui e aqui), chegando ao valor de 186 mil mortos, cinco vezes mais que os números oficiais denunciados pelo Ministério da Saúde de Gaza, que se tem limitado a referir os mortos plenamente identificados.

The Lancet, lembremos, procedeu ao mesmo cálculo a respeito do bloqueio e posterior invasão do Iraque, promovidos pelos EUA e o Reino Unido em 1991 e 2003 – com a colaboração das autoridades portuguesas. Nos três anos subsequentes à invasão, mais de 650 mil mortes em excesso foram contabilizadas e nos anos seguintes o montante ultrapassaria largamente o milhão de mortos.

Israel tem, portanto, neste exemplo um precedente que se junta à sua prática terrorista de mais de setenta anos, provando que quem sai aos seus não degenera.

Como no caso do Iraque, o governo português está a ser cúmplice dos crimes cometidos em Gaza. Não apenas por omissão: em 13 de maio, em entrevista ao El País, o ministro dos Negócios Estrangeiros Paulo Rangel pôs a capa sobre o terror israelita, negando o genocídio em Gaza e afirmando que “Seria muito injusto dizer que Israel pretende eliminar o povo palestiniano”.

Não haverá um jornalista ou um deputado que tenha a ousadia de confrontar o Governo e o ministro Rangel com estes números, perguntando-lhes que bitola usam para avaliar um genocídio?

 

NÚMEROS PROVAM QUE OS PROPÓSITOS ANUNCIADOS POR ISRAEL SÃO UMA MENTIRA MONSTRUOSA

Susan Abulhawa / The Electronic Intifada

Quando se está em Gaza e se vê a destruição ao vivo, a conclusão mais clara é que os propósitos anunciados por Israel são uma mentira monstruosa, a par da propaganda de “um povo sem terra para uma terra sem povo”, empacotada e vendida ao mundo.

Os israelitas não têm como alvo apenas o Hamas, nem estão interessados em recuperar os reféns, o que representaria uma tremenda responsabilidade após sua libertação, pois muitas vezes eles têm coisas boas a dizer sobre os seus raptores.

A matemática é útil para provar o que estou a dizer. Aqui estão alguns números para começar.

Edifícios destruídos

Até abril de 2024, cerca de 360.000 edifícios foram destruídos, dos quais 405 são escolas e universidades, 700 hospitais e instalações de saúde, 290 mesquitas e três igrejas. Considerando a estimativa do grupo de monitorização das Nações Unidas OCHA [Gabinete de Coordenação de Assuntos Humanitários] de que 12 edifícios são destruídos a cada hora em Gaza, a contabilidade ajustada para maio e junho é de 377.280 edifícios.

Fogo directo causa morte e ferimentos

O número de mártires reportados na quarta-feira (26 de junho) foi de 37.718. É importante sublinhar que este número inclui apenas mártires que foram identificados através do nome e número de identificação civil pelo sitiado Ministério da Saúde em Gaza.

Dada a falência dos sistemas de informação devido à forte destruição de infraestruturas e pessoal, este número, com os seus parâmetros limitados, é uma subestimação grosseira.

Com base em números mais precisos de aproximadamente 370 pessoas mortas diariamente, multiplicadas por 264 dias de genocídio, o número real aproxima-se de 97.680 martirizados. (De acordo com a estimativa do OCHA de 15 mártires por hora, ao longo de 264 dias, o que equivale a 6.336 horas, esse número seria aproximadamente de 95.040).

A estimativa ajustada de mártires é 260% maior do que o número oficialmente relatado. É razoável ajustar o número de feridos (atualmente 86.377) pelo mesmo raciocínio, elevando esse valor para 224.580. (Pela estimativa do OCHA de 35 feridos por hora, esse número chega a 221.760.)

Morte por falta de medicamentos e doenças crónicas

É importante ressaltar que o número acima não inclui os milhares de mártires não identificados, alguns dos quais foram descobertos em valas comuns; os que chegaram sem cabeça ou em pedaços; os que foram sepultados por familiares sem passar pelo sistema hospitalar; os que morreram de fome; os que morreram por falta de acesso a medicamentos urgentes; aqueles que morreram de infecções ou doenças transmissíveis.

Levando em conta 1.100 pacientes em diálise, 2.000 pacientes com cancro e 341.000 indivíduos que dependem de medicamentos para controlar doenças crónicas (45.000 pessoas com doenças cardiovasculares, 71.000 com diabetes, 225.000 com hipertensão), a extrema escassez de medicamentos que salvam vidas levou e continuará a levar a mortes pela falta de suprimentos de Israel. Se, numa estimativa muito conservadora, cinco por cento desses pacientes morrerem (se ainda não morreram), são mais 17.050 pessoas mortas.

No entanto, uma taxa de mortalidade mais precisa para a diabetes não controlada é de 13,6% (colocando a mortalidade em 9.869 pessoas); 37% para hipertensão não controlada (traduzindo-se em 83.250 pessoas). Pacientes com diálise e cancro não tratados terão uma alta taxa de mortalidade; uma estimativa conservadora para esse grupo é de 30%, ou seja, 930 pacientes.

Ao todo, são 94.049 pessoas. (Não considerei isoladamente a doença cardiovascular, já que os pacientes tendem a ter comorbilidades e haveria sobreposição natural nesses números.)

Morto ou a morrer à fome

De acordo com um relatório recente do sistema de Classificação da Segurança Alimentar (IPC) apoiado pela ONU, aproximadamente 495.000 palestinianos em Gaza estão a enfrentar fome “catastrófica”, o que significa que sofrem extrema falta de alimentos, levando à desnutrição aguda em crianças pequenas e risco iminente de inanição e morte. Se fizermos uma estimativa conservadora de 5% de mortos por fome entre essa população, são 24.750 pessoas mortas ou a morrer à fome.

A mortalidade por desnutrição aguda, baseada em dados, é de aproximadamente 20%. No entanto, a classificação neste momento ainda não atingiu níveis de fome total, tornando a estimativa actual razoável.

Desaparecidos, presumíveis mortos ou raptados

Aproximadamente 21 mil crianças estão desaparecidas e não foram contabilizadas. Algumas estão presas sob os escombros, algumas foram sequestradas por soldados israelitas, enquanto outras estão simplesmente perdidas no caos. Dada a proporção relativamente igual de adultos e crianças em Gaza, é seguro assumir que o mesmo número de adultos também não está contabilizado, dobrando aquele número para 42.000 pessoas desaparecidas em geral.

Morte por doença

Devido à destruição das infraestrutura de água e saneamento, juntamente com as restrições à entrada de ajuda em Gaza, o ataque de Israel levou à propagação de doenças transmissíveis e transmitidas pela água, como icterícia aguda (devido principalmente à hepatite A), diarreia aguda (com fezes com sangue), sarna e piolhos, erupções cutâneas, varíola e infecções respiratórias agudas, que  totalizaram mais de 1,44 milhões de casos em 10 de junho.

Se apenas 1% desses pacientes sucumbirem a estas condições graves, são 14.408 pessoas igualmente mortas indirectamente pelos bombardeamentos e cerco de Israel a Gaza.

A mortalidade por icterícia aguda ou hepatite A é baixa (2,5% em adultos e menos de 1% em crianças; portanto, uma estimativa de mortalidade de 1% é apropriada para essa categoria, ou 817 pessoas). A mortalidade por diarreia varia de 4,27% a 12% (20.722-58.238 pessoas). A mortalidade por varíola é de 1% a 30%, dependendo da estirpe viral (854-2.561 pessoas). As taxas de mortalidade por doença respiratória aguda variam de 27% a 45%, dependendo da gravidade (ou 233.592-389.320 pessoas). Somados e ajustados os valores matematicamente por dados científicos, o intervalo para essa categoria de mártires é de 255.985-450.936 pessoas.

Resumos de estimativas

Com base nestas estimativas, tanto conservadoras como baseadas em dados, respectivamente, os números reais são provavelmente os seguintes:

  • 377.280 edifícios destruídos total ou parcialmente
  • 95.040 – 97.680 mortos
  • 221.760 feridos
  • 24.750 mortos ou a morrer por fome
  • 42.000 desaparecidos (presumivelmente mortos, sequestrados pelas forças de ocupação de Israel ou possivelmente traficados).

Os intervalos a seguir representam uma estimativa conservadora ou um valor inferior de estimativas populacionais orientadas por dados:

  • 17.050 – 94.049 com doenças crónicas mortos por falta de medicação
  • 14.408 – 255.985 mortos por epidemias resultantes do ataque de Israel

Isso significa que o número real de mortos está mais próximo de 194.768 – 511.824 pessoas, com 221.760 feridos. E continua a aumentar.

Isto não inclui os milhares que foram raptados e estão a ser torturados nas prisões de Israel, dos quais pelo menos três dezenas foram torturados até à morte ou morreram devido a condições severas.

Algumas vidas importam

As estimativas aqui apresentadas são uma aproximação razoável, mas os estudos no terreno têm de ser realizados imediatamente. As instituições internacionais devem determinar urgentemente as causas da mortandade resultante da invasão de Israel a Gaza.

Até agora, dos 240 prisioneiros israelitas em Gaza, Israel supostamente matou 50 deles, tanto directamente (disparando sobre eles) como indirectamente (bombardeando os edifícios em que se encontravam) e garantiu a libertação de 112 reféns, 105 por meio de acordos negociados com o Hamas e sete por meio de missões de “resgate”.

A mais recente missão de “resgate” directo resultou na libertação de quatro prisioneiros no campo de refugiados de Nuseirat, no centro de Gaza. Um total de 274 palestinianos e vários prisioneiros israelitas foram mortos na mesma operação! Pelo menos um parlamentar dos EUA acredita que sacrificar centenas de palestinianos por quatro israelitas vale a pena, porque, ao que parece, apenas algumas vidas importam.

Deixo aos leitores fazerem as contas para ver o nível de morte e destruição infligido a Gaza, por cada refém ou por cada combatente do Hamas.

Só pode haver uma de duas conclusões. Ou os militares israelitas são a força mais incompetente neste planeta – não tendo inteligência confiável na recolha de dados – ou Israel é uma nação sádica com o propósito de levar a cabo o genocídio da população autóctone, tal como   todos os projetos coloniais foram ao longo da História.

——

Susan Abulhawa é uma escritora e activista palestiniana. O artigo foi publicado originalmente em The Electronic Intifada (tinyurl.com/2a736esa), em 27 de junho. Tradução MV a partir da versão em inglês divulgada por Workers World em 13 de julho.

 


Comentários dos leitores

A Viagem dos ArgonautasEspuma dos dias — Gaza: os verdadeiros números do genocídio. Por Susan Abulhawa 21/7/2024, 5:30

[…] Publicado por  em 20 de Julho 2024 (original aqui) […]

leonel l. clérigo 21/7/2024, 13:07

ASPECTOS da CRISE PROFUNDA da VELHA ORDEM IMPERIALISTA

Se a srª Jornalista Carla Trafaria algum dia perguntar no seu programa "Bom Português" o "significado" de GENOCÍDIO, estou convencido que diria algo parecido com isto:
"GENOCÍDIO significa o extermínio deliberado de um POVO". Neste sentido, não anda muito longe o que ISRAEL do sr. Benjamin Netanyahu está fazendo em GAZA e a coberto da "conversa fiada" de "liquidar o HAMAS" até ao "último terrorista", como se isso fosse possível e pudesse ganhar sentido de verdade.

1 - Também acima nos diz MR que o Governo Português - pela voz do seu Ministro dos NEGÓCIOS Estrangeiros Paulo Rangel - referiu ao EL PAÍS que “Seria muito injusto dizer que Israel pretende eliminar o povo palestiniano”.
De facto, fiquei agora convencido que o sr. Ministro necessita urgentemente dum bom oftalmologista.
Apesar da IDEOLOGIA ser o que é - a expressão dos INTERESSES de cada um, grupo ou CLASSE - ela não permite tudo.

2 - Quanto ao "apelo" de MR aos jornalistas, estão eles presos pelo pescoço: é assim a sina de quem é assalariado do CAPITAL e precisa "ganhar a vida"... num PAÍS DEMOCRÁTICO.

3 - Já com os Políticos do Parlamento a coisa é bem diferente. Quem lá está é porque "QUER" e na sua grande maioria sabem bem "das linhas com que se cosem", "Linhas" que não "podem passar" quanto ao DESENVOLVIMENTO SOCIAL e ECONÓMICO do PAÍS: o Imperialismo USA e suas Leis, proíbe-o.
Por isso, todo o nosso PARLAMENTO olha para o DESENVOLVIMENTO do PAÍS como "um boi para um palácio": não sabem como é possível fazer isso. Se o soubessem, já o tinham feito em 50 anos em vez das sonantes "patacoadas" da "baixa dos IMPOSTOS" e do RENTISMO TURÍSTICO na linha do "primário-exportador".
Sem Produção capaz - como me pareceu ouvir dizer à srª. Paula Amorim - nada feito. E entretanto e como dizia José Mário Branco: "Entretem-te filho, entretem-te!..."
Até porque o mundo não vai acabar já. Vai-se o "velho" degradando e o "novo" vai surgindo à socapa. Chama-se a isto TRANSIÇÃO.


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