França, uma vitória de curto fôlego

Manuel Raposo — 11 Julho 2024

A questão é saber se a travagem da extrema-direita conseguida a 7 de julho pode passar de episódica a definitiva. Manifestação reclamando uma frente popular, 10 de junho 2024

O “alívio” e a “surpresa” com que os resultados das eleições em França foram recebidos tanto na esquerda como nos meios do poder são a expressão mesma da fragilidade da vitória conseguida contra a extrema-direita e os fascistas. Se madame Le Pen e o seu manequim Bardella não tivessem colocado a fasquia demasiado alta, e tivessem apostado apenas em ganhar mais votos e deputados, poderiam muito bem estar a cantar vitória em vez de terem de justificar a tentativa frustrada de formar governo.

Na verdade, considerando apenas os resultados da segunda volta, o maior partido, singularmente considerado, é a União Nacional (RN) fascista, com mais de 8,7 milhões de votos, apesar do número de deputados desproporcionalmente baixo (88). Juntando os votos da facção dos Republicanos que se aliou ao RN (mais de 1,3 milhões), o campo fascista obteve mais de 10,1 milhões de votos, o que lhe dá 37,2% dos sufrágios expressos. Em resultado final das duas voltas, o RN subiu em número de votos e praticamente duplicou o número de deputados (125) face às eleições anteriores. 

A vitoriosa Nova Frente Popular (NFP) ficou pelos 7 milhões de votos (igualmente na segunda volta), apesar de ter conseguido, também desproporcionalmente, mais deputados (146) graças às particularidades do sistema eleitoral. E o semi-vitorioso Ensemble do presidente Macron, não indo além de 6,3 milhões de votos, arrecadou no entanto 148 deputados. 

Para além do estrito somatório das urnas, é facto comprovado que o RN colhe adeptos, largamente, nos meios pequeno-burgueses e proletários empobrecidos e revoltados com a política social e económica de Macron. Menos falado, mas de importância para entender o caminho que a França segue, é esse outro facto igualmente comprovado que consiste no apoio político e financeiro que o RN obtém junto da grande burguesia e do capital franceses. 

Vale a pena sublinhar este último aspecto, para atirar à cara dos que falam dos reais ou supostos financiamentos de bancos russos ao partido de Le Pen – atribuídos, claro está, à mão invisível de Putin – no propósito de apresentar o fascismo francês como induzido de fora e salvar a face das próprias classes dominantes. O fascismo europeu teve o seu berço também na França do final do século XIX – lembremos a Action Française, Charles Maurras (que influenciou muitos dos fascistas europeus, incluindo Salazar), ou o general Pétain.

Os dados da votação querem dizer também que a NFP (mais a direita de Macron) conseguiu pôr limites, para já, ao ascenso dos fascistas, mas não conseguiu inverter a tendência de crescimento destes. Por isso, Le Pen pôde dizer com alguma razão (a ver vamos) que a sua ansiada vitória foi apenas adiada.

A questão que se coloca agora é saber se a travagem conseguida no dia 7 de julho pode passar de episódica a definitiva. Ou seja, como inverter a tendência de crescimento da extrema-direita. Quem pode conseguir tal feito político?

Seguramente, não será a direita de Macron e aliados que apenas se debatem para conservar o monopólio do poder contra os arrivistas da extrema-direita. Nada os distingue quando se observa o núcleo da política de uns e de outros e nada indica que vão mudar de rumo. A vantagem da extrema-direita sobre a direita está no facto de ter encontrado no nacionalismo fascista a fórmula para conquistar adeptos nos meios populares que a direita no poder alienou com a sua política de empobrecimento, de terror policial e de violência social.

Também não será, com toda a probabilidade, a NFP – anunciada em 10 de junho com o propósito de travar o RN – a consegui-lo. Não se vislumbra a possibilidade de a amálgama da NFP encabeçar um movimento popular capaz de atrair os votantes do RN. Para isso seria necessário que tivesse um programa político de completa demarcação com Macron e com Le Pen e o decidisse levar consequentemente para a frente.

Não é isso que acontece. O compromisso estabelecido entre as principais forças que compõem a NFP (França Insubmissa, Partido Comunista, Partido Socialista e Ecologistas) anuncia, é certo, medidas económicas que contrariam a política chamada neo-liberal de Macron: propõe-se revogar o aumento da idade da reforma; taxar as fortunas, os superlucros do capital e as heranças; aumentar o salário mínimo e limitar os preços de bens essenciais; investir nos serviços públicos, aumentar a ajuda ao alojamento.

No entanto, não sai do quadro geral que delimita a política francesa – e isso é que determina o sucesso ou insucesso de tudo o mais. Por exemplo, para poder albergar os socialistas, a NFP teve de se declarar conforme à via seguida pela União Europeia e pela NATO na guerra da Ucrânia e teve de moderar as posições da França Insubmissa (LFI) sobre o genocídio em Gaza.

Estabelecer um outro quadro político implicaria enfrentar as questões quentes da actualidade que estão a determinar a vida dos povos europeus. Nomeadamente, romper com a NATO e cortar despesas militares, recusar prosseguir a guerra na Ucrânia, isolar Israel e apoiar sem reservas a Palestina, inverter as políticas sociais e económicas da União Europeia, instituir a igualdade salarial entre homens e mulheres e entre nacionais e imigrantes, rejeitar o ostracismo comercial e económico promovido pelos EUA, pôr fim às sanções e restabelecer relações comerciais com a Rússia, normalizar o relacionamento com a China, apoiar os BRICS, e por aí adiante. Só medidas deste teor permitiriam combater simultaneamente a direita de Macron e a extrema-direita fascista.

As tentativas de divisão do campo da NFP começaram mal se conheceu o resultado das eleições. Macron manobra no sentido de chamar a si os sectores centristas e direitistas da NFP (o ex-presidente Hollande, socialista, de má memória, candidatou-se a deputado para ter papel activo no assunto) tentando forjar uma nova base governativa, de fabrico presidencial. A jogada visa pôr de lado a LFI, classificada para o efeito de “extremista”, apesar de ter sido a força mais votada das que compõem a NFP. Útil para ajudar a fazer frente à cavalgada da extrema-direita e segurar o poder macronista, a LFI é agora tratada como um parceiro indesejado.

Os cidadãos franceses, na sua qualidade de eleitores, fizeram o que podiam: travaram o acesso do RN ao poder. Como eleitores, não se podia pedir-lhes mais. Mas todos os problemas que os atingem ficam por resolver enquanto, na sua qualidade de membros das classes trabalhadoras, estiverem na dependência de partidos e programas políticos que não são os seus. Este é um dos momentos em que se torna gritante a falta de uma organização partidária destinada a servir, de forma independente, os interesses políticos do Trabalho. 

Repete-se a evidência de que, sem esse elemento aglutinador e orientador, o empenho das massas populares nas acções mais diversas – Coletes Amarelos, manifestações contra a lei da reforma, greves, revolta das periferias urbanas pobres e discriminadas, actos eleitorais – se esgota sem progresso político. E, no entanto, o resultado de 7 de julho mostra que existe nas massas populares francesas quem queira inverter a situação, e força para o conseguir.

 


Comentários dos leitores

Adilia Mesquita Maia 20/7/2024, 20:56

Vivemos numa época em que o capitalismo, na sua faceta neoliberal, supõe a financeirização da economia que por sua vez supõe um sistema financeiro global; ora a pergunta que a esquerda, se seguisse o ensinamento de Marx, se deveria fazer é simples e de fácil resposta: Como é que o governo de um país, seja ele qual for, pode governar sem se curvar às decisões do sistema financeiro? Que independência, de facto, não de direito, tem? Qual a sua margem de manobra?

Como a resposta a estas perguntas me parece demasiado óbvia, penso que o que se passou em França não vai impactar o curso dos acontecimentos já traçado, e que, mais cedo que tarde, o fascismo vai sair vitorioso pois é este o regime que o capitalismo precisa de apoiar, fingindo que não apoia, para subsistir. De resto, acreditar ainda em democracias liberais é acreditar em historias da carochinha.

O que me parece urgente é começar a pensar-se a sério na construção de alternativas ao capitalismo, ideias força que possam ser exploradas e que comecem a germinar nas mentes das pessoas. É, entre outras coisas, desmascarar a democracia de pacotilha que nos estão a vender, desmascarar a esquerda que ainda pensa que o problema é o neoliberalismo e que o importante é restaurar na sua ‘autenticidade’ a democracia liberal e os direitos humanos, a importância do voto e outras falacias do género. Desmascarar ainda os partidos socialistas que há muito meteram o socialismo na gaveta e ainda por cima perderam a chave.


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