O longo lastro do colonialismo

Manuel Raposo — 10 Maio 2024

Samora Machel proclama a independência de Moçambique. 25 de junho de 1975

Para uma boa compreensão das iniciativas políticas de Marcelo Rebelo de Sousa, é sempre bom considerar a sua ansiedade megalómana de ser o foco das atenções mediáticas e de se colocar à frente de toda a gente. As “reparações” devidas pelo passado colonialista de Portugal, de que ele falou há dias, levantando um calculado burburinho na nossa cena política, terá de ver-se também a esta luz pessoal – mas ficar por aí seria diminuir o sentido da questão. Para lá de tudo isso, há uma realidade nova que mexe sobretudo com a África e que a atitude de Marcelo não ignora. 

Está em curso, com efeito, aquilo que já foi referido como uma nova vaga de descolonização que ganha forma sobretudo nos países do Sahel. A constituição recente de uma confederação de três países – Níger, Burkina Faso e Mali – mostra a determinação de superar as fronteiras coloniais e de varrer a dominação neocolonial, neste caso protagonizada pela França. As tropas francesas estacionadas nesses países foram intimadas a sair e a dependência económica e financeira face à ex-metrópole foi posta em causa. De caminho, as tropas norte-americanas que também ali tinham assentado arraiais foram igualmente convidadas a fazer as malas. (*)

Este movimento causou compreensível pânico nos meios imperialistas, ao mesmo tempo que, em contrapartida, provocava uma larga adesão popular não apenas nos referidos países do Sahel, mas também nos da vizinhança. O Senegal é dado como um dos casos que pode seguir pelo mesmo caminho. Se a ideia pega, muitos outros países de África podem sentir-se tentados a ver-se livres das dependências que hoje ainda os amarram aos antigos e novos colonizadores (agora travestidos de “países irmãos” e “amigos”). O quadro é ainda mais preocupante para o imperialismo europeu e norte-americano pelo facto de os BRICS, em processo de alargamento, exercerem forte atracção em países que vêem finalmente abrir-se um caminho prático para se libertarem das dependências a que têm estado longamente sujeitos. 

Os pedidos de desculpas pelo passado colonialista e as “reparações” aos colonizados, de que Marcelo agora se fez eco, procuram remediar perdas maiores. Visam assegurar, nas novas circunstâncias que tomam forma, os laços de tipo neocolonial de que as ex-metrópoles nunca abdicaram. A burguesia portuguesa alimenta o mesmo tipo de esperanças. Marcelo jogou por antecipação procurando criar um ambiente de “fraternidade” que caísse no goto das classes dirigentes pós-coloniais (sobretudo as africanas) e desarmasse possíveis reclamações das vítimas do colonialismo português.

As “reparações” faladas não podem, pois, ser levadas à letra. Como se pode “reparar” 500 anos de dominação colonial, de exploração de recursos, de empobrecimento, de maus tratos e de massacres a populações inteiras? Isto mesmo ficou visível no apoio que a iniciativa de Marcelo teve em certos meios políticos. A ex-ministra da Cultura Graça Fonseca (PS) evocou os exemplos da França e da Holanda para mostrar que o caso pode ser tratado sem grandes custos e até com grandes vantagens para Portugal. Por exemplo, a devolução de algumas obras de arte ou outras, que não fazem falta aos museus portugueses, pode ser motivo para a realização de eventos culturais conjuntos que beneficiem o prestígio de Portugal junto dos dirigentes e das populações das ex-colónias e até abram caminho a uma renovação de relações, nomeadamente no plano mais prosaico dos negócios.

A vozearia do dr. Ventura, agarrando o assunto pelos cabelos como de costume, passa ao lado de tudo isto. Aos gritos de traição à pátria, procurou tirar os dividendos fáceis que a situação lhe proporcionou junto de colonialistas ressabiados, ex-combatentes, militares aguerridos, forças de segurança, simples ingénuos temerosos de que as “reparações” lhes saiam do bolso. Com a  baixeza que lhe é própria, Ventura reduziu tudo imediatamente a “dinheiro”, fornecendo argumentos de agitação aos grupos racistas de que é mentor e à mentalidade colonialista de que o país padece.

Para não ficar atrás, a IL entrou na liça com um meneio mais fino. Em vez de atacar o presidente da República, no que se confundiria sem proveito com o Chega, interpelou o ministro dos Negócios Estrangeiros acerca da condição da Comunidade de Países de Língua Oficial Portuguesa. Que comunidade é essa, protesta a IL, em que o Brasil tem posição diferente da de Portugal a respeito da guerra na Ucrânia, ou em que São Tomé e Príncipe se permite estabelecer acordos de cooperação militar com a Rússia? O reflexo colonialista, obviamente, sobrepôs-se ao verniz “liberal” da IL. No seu conceito, a CPLP tem de ter Portugal como referente político para ser uma verdadeira comunidade. Dito de outro modo, a diplomacia portuguesa junto das ex-colónias tem de agenciar as posições políticas da UE e dos EUA, aquelas a que Portugal obedece e das quais se deve fazer emissário. Aqui se pode encontrar o fio de raciocínio que norteia a manobra aparentemente extemporânea de Marcelo Rebelo de Sousa.

Todos estes diversos actores – Marcelo, Ventura ou Rocha – se enganam, porque não se enxergam na sua dimensão. Os 10 milhões de portugueses, como é bom de ver, não podem pesar mais do que os 200 milhões de brasileiros, os 36 milhões de angolanos, ou os 34 milhões de moçambicanos. Mais do que isso, não será o débil poder político e diplomático de Portugal, dependente da moribunda UE e amarrado à falência dos EUA, que poderá fazer frente a um Brasil fundador dos BRICS, ou a quaisquer outros países lusófonos que queiram seguir pelo mesmo caminho. O exemplo de São Tomé e Príncipe e a possibilidade de a Guiné-Bissau fazer o mesmo são elucidativos.

A manobra de MRS visa um negócio entre as classes dominantes de cá e de lá, entre os poderes políticos instalados na ex-metrópole e nas ex-colónias, sob a capa de uma suposta afinidade entre povos. Para se avaliar da honestidade do gesto basta lembrar que o mesmo personagem que agora fala em “reparar” o passado colonial é o mesmo que, em segredo, condecorou o marechal Spínola, assassino de Amílcar Cabral e golpista relapso que tentou travar a independência das, ainda então, colónias africanas. 

A história comum invocada a cada passo só tem de comum o tempo em que decorreu. Quanto ao resto, na sua feição concreta, é uma história de conflito entre dominantes e dominados, entre exploradores e explorados, entre enriquecidos e empobrecidos, entre devastadores e devastados.

As reais questões que hoje se colocam entre os povos de Portugal e das ex-colónias não se resolvem com pedidos de desculpas ou com reparações por acontecimentos irreparáveis por natureza. Pensar que a questão colonial ficou encerrada com as independências de 1975 é tentar passar uma esponja sobre o muito que, ainda hoje, sobrevive na nossa sociedade da arrogância própria dos povos imperialistas.

Está por fazer uma segunda vaga de descolonização que terá por alvo o ranço racista, supremacista, que permanece nas classes dominantes portuguesas e na população comum. Este ranço persiste e é alimentado todos os dias com a discriminação praticada sobre os imigrantes – no trabalho, nos direitos sociais, nas condições de vida e de habitação.

(Atente-se neste sintoma: qualquer portuguesinho que se considere mais ou menos “branco” acha natural tratar por tu os negros, os brasileiros pobres, os indianos, os chineses, os árabes e todos os demais imigrantes que chegam para trabalhar, expondo assim uma marca indelével da mentalidade colonialista espontânea entranhada na maioria da população portuguesa.)

Só povos livres – libertos das classes dominantes que hoje os manietam e falam em seu nome –  podem pôr termo a este lastro de 600 anos. Essa será a verdadeira reparação.

(*) Uma resenha dos acontecimentos recentes no Sahel e na África Ocidental está no artigo A FRANÇA ÀS VOLTAS NO LABIRINTO AFRICANO, publicado pelo boletim Sahara Livre, número de maio, da Associação de Amizade Portugal Sahara Ocidental

 


Envie-nos o seu comentário

O seu email não será divulgado. Todos os campos são necessários.

< Voltar