Recensão
Crise ecológica, crise social, nova ordem mundial
Editor / O Comuneiro — 8 Maio 2024
Se o capitalismo é um resultado tão natural da evolução humana, porque foram necessárias violência sistemática e leis draconianas para o impor? A mesma questão pode estender-se aos acontecimentos do mundo de hoje, em que a decadência do capitalismo imperialista ameaça a vida das sociedades humanas, não apenas a prazo, com o desastre ambiental em curso, mas também no imediato, com os riscos latentes de guerra nuclear.
O número de março da revista O Comuneiro, de publicação semestral, divulga um conjunto de artigos de autores diversos que abordam a dupla crise do século XXI – crise ecológica e crise social – de um ponto de vista marxista. Socialismo, ecologia, natureza, desenvolvimento humano sustentável são temas debatidos no quadro da nova ordem mundial que ganha forma.
Desafios aliciantes são vários na dezena de títulos deste número 38. Por exemplo: a pergunta feita no início desta apresentação, tirada do artigo de Pete Dolack. Outro exemplo: O capitalismo está decadente e ainda assim dominante. O que fazer? (Helena Sheehan). Ou ainda: Como deve o marxismo encarar os movimentos de resistência no Médio Oriente? (Leila Ghanem). Finalmente: Por que razão intrigante a liderança política da Europa se tornou cúmplice dos esforços dos EUA para minar as economias europeias? (Prabhat Patnaik).
Ao que cabe acrescentar o repto dos editores de O Comuneiro: Tem a esquerda da esquerda um desafio credível a apresentar, capaz de fazer apear as classes dirigentes ocidentais que têm conduzido o mundo ao abismo que temos perante nós? Se tem, que o apresente muito rapidamente.
À ESQUERDA OCIDENTAL
Ângelo Novo, Ronaldo Fonseca / O Comuneiro
Há um pouco mais de um século, Oswald Spengler publicou o seu célebre ensaio intitulado O declínio do Ocidente. Hoje, Emmanuel Todd afirma que estamos a assistir em direto à sua derrocada final. Por vezes é proveitosa a leitura de autores não marxistas, que os há muito argutos e penetrantes, embora dentro de uma mundivisão histórica limitada ou distorcida. Um dos colaboradores deste número coloca mesmo em epígrafe Samuel P. Huntington. Como que por sinédoque, esta derrocada do Ocidente é hoje representada à cabeça pela queda da supremacista e mitomaníaca colónia de povoamento denominada Israel. Mas a parte e o todo representam-se mutuamente com grande fidelidade, num inolvidável espetáculo político, diplomático, mediático e, finalmente, militar, de arrogância, inépcia, cobardia e desumanidade. Tudo com a habitual cobertura gelatinosa de hipocrisia. Exterminem todas as bestas, ordena Tel Aviv aos seus. Da forma o mais humanitária possível, insistem publicamente Washington, Londres e Bruxelas, afanosamente municiando as munições. À medida que cresce o desespero, abrem-se de par em par as goelas do horror sem medida e sem sentido.
Auschwitz é um nome ocidental, como é bem sabido. Enquanto houver império racializado, oficiando livremente nas catedrais do desprezo humano, nunca mais é, na verdade, inevitavelmente, sempre mais. Todo o escândalo ocidental com o nazismo foi, afinal, por este ter virado esse desprezo (sobejamente conhecido alhures, há muito) contra o próprio homem branco. Exportar a culpa pelo holocausto judaico europeu, com desprezo acrescido por outros povos, serve apenas para reproduzir o crime, em repetição fractal infinita. Por esse vasto mundo afora. Esse mundo inesgotável, de uma profundidade estratégica para sempre inexpugnável. O problema é que, nos dias de hoje, qualquer ser humano neste planeta é potencialmente um cidadão consciente, bem capaz de ver, julgar e atuar. Ocidental, cuidado, estás a ser visto. E não só pelo mundo que achas que conta. Todo o mundo agora conta! E o teu pulso, tão fraco já, para toda a escalada de crimes que ainda projetas…
A civilização ocidental conduziu a humanidade ao limiar da sua extinção, por ganância e hubris das suas classes dirigentes. Não se trata apenas das alterações climáticas, que continuam a gerar ceticismo em certos espíritos, apesar das provas científicas esmagadoras, que extravasam cada vez mais flagrantemente para a experiência comum dos sentidos de toda a gente. Quanto a este problema, os atuais senhores do mundo já decidiram: nada será feito. Pelo menos por iniciativa pública. Para eles, esta questão ou é inexistente ou será remediada por uma qualquer solução que inevitavelmente aparecerá, por infalibilidade do mercado. Fim da humanidade? Todas as previsões até hoje feitas nesse sentido se revelaram falsas. Ergo, é uma impossibilidade. É preciso ter calma. As cimeiras COP foram desterradas para o Médio Oriente petrolífero e remetidas à insignificância. Ora, o que é impossível é pedir a um porco que se suicide para salvar o chiqueiro onde ele se habituou a refocilar completamente à sua vontade. Com a devida vénia à espécie porcina, que, pela sua parte, sempre deu mostras de honradez e responsabilidade.
A crise geral do Sistema Terrestre é evidenciada por muitos outros fenómenos, como a acidificação dos oceanos, a destruição recorrente da camada de ozono, a extinção maciça de espécies animais e vegetais (30% em perigo, com uma verdadeira dizimação em curso nos insetos e nos corais), a perturbação dos ciclos do azoto e do fósforo (ameaça direta para a agricultura), a perda de coberto vegetal (incluindo florestas), o esgotamento da água doce, a saturação de aerossóis, a proliferação de lixos químicos sintéticos, a radiação nuclear ou os organismos geneticamente modificados. A lista podia continuar. Cada um por si só ou em conjugação, todos estes fenómenos – e outros que se desencadeiam a partir deles por reação em cadeia -, a não serem, também eles, produto da nossa imaginação apocalíptica, são potencialmente devastadores para a habitabilidade humana do planeta, ainda no corrente século, a manterem a sua atual progressão.
Desafiadas no seu poder universal, as classes dirigentes ocidentais têm, porém, meios ao seu dispor capazes de antecipar o fim ao qual já nos destinaram inevitavelmente de qualquer forma. Este mundo tem de ser delas, ou não será. É inconcebível de outro modo. O imperialismo ocidental é uma ameaça terrível à paz mundial, porque vai insistir sempre em manter relações assimétricas, de supremacia e exploração, que nenhum povo já aceita nos dias de hoje. Na incerteza, no declive para a derrota, porque não acabar com tudo imediatamente, à bomba? As armas nucleares existem para ser usadas, de tática a estrategicamente. É precisamente no Ocidente, em exclusivo, que existe uma criminosa doutrina militar que prevê o seu emprego em primeira instância. Segundo os estudos mais credíveis, não é preciso um grande número de deflagrações para provocar um inverno nuclear catastrófico para toda a humanidade. Pode ser um psicopata fanático da Torá, como Benjamim
Netanyahu, a dar esse passo. Pode ser Trump. Mas pode também, perfeitamente, ser um político convencionalíssimo, como Joseph Biden ou Emmanuel Macron. Todos eles, juntamente com a sua envolvente decisória, têm a (de)formação moral, o treino de caráter e a motivação ideológica para o fazer, em determinadas circunstâncias, que não são de todo inconcebíveis. Podem até estar bem próximas.
Tudo isto são boas razões para fazer meditar um pouco mais aqueles que, inclusive à esquerda da esquerda, insistem em apostar o futuro da humanidade na carta civilizacional do Ocidente. Tem essa esquerda um desafio credível a apresentar, capaz de fazer apear as classes dirigentes ocidentais que têm conduzido o mundo ao abismo que temos perante nós? Se tem, que o apresente muito rapidamente.