O nervo do 25 de Abril

Urbano de Campos — 25 Abril 2024

O Apelo da Comissão Promotora das Comemorações Populares do 25 de Abril retoma sem surpresa as mesmas ideias vagas de todo os anos, resumidas na frase: “alegria e confiança no futuro”. Não se poderia pedir mais a uma comissão que visa chamar o maior número de manifestantes ao desfile comemorativo. Mas, sem intenção de estragar a festa – em que empenhadamente participamos – , tem lugar perguntar como se pode “avançar na concretização dos direitos” da maioria, “combater as desigualdades” que crescem, ou melhorar a vida “dos que têm cada vez menos” sem pôr em causa o regime consolidado neste meio século.

Olhar o estado actual do país e avaliar o que resta do 25 de Abril só pode ser conseguido à luz da evolução do capitalismo em Portugal e das lutas de classes que se travaram desde 74.

Os 50 anos decorridos são a história do fim do nacionalismo colonialista e da consolidação, no seu lugar, do capital moderno europeísta tal como ele é: incompatível com a afirmação dos interesses de classe operários e populares.

Nas novas condições criadas com a independência das colónias e a queda do regime fascista, derrotada a onda revolucionária de 74-75, a democracia representativa mostrou ser o regime mais adequado ao desenvolvimento e proliferação dos negócios. Toda a vida do país – economia, instituições, organização partidária, informação, cultura – foi submetida aos propósitos do capital. Os interesses operários e populares não têm margem para se imporem no quadro dum tal regime. A democracia é monopólio da burguesia.

As esperanças num renascimento do “espírito de Abril” ou num “novo 25 de Abril” são por isso uma completa ilusão. A ideia de que “concretizar os direitos garantidos pela Constituição” é a via para “corrigir” o que está mal, impede os operários e o povo pobre de se mobilizarem pelos seus interesses de classe. A capacidade para transformar o país só pode resultar de um renovado movimento de massas que encare a necessidade do combate anticapitalista.

O actual regime instaurou-se depois de destroçar as organizações operárias e populares. Durante ano e meio foram elas que reclamaram vida digna, assumiram posições políticas de confronto com o poder, e derrotaram com a sua própria iniciativa as tentativas de reanimação do fascismo. Foi este o nervo do 25 de Abril popular – que a burguesia novembrista se encarregou de cortar.

Hoje, a extrema-direita ergue cabeça, e goza de toda a tolerância das forças do poder, na ausência de um movimento de massas que lhe dê combate. A história recente mostra que para “combater os fenómenos (sic) de cariz racista, xenófobo, antidemocrático e fascista” não bastam apelos à decência democrática e à unidade do povo: será preciso refazer a organização popular de base que o novembrismo desmantelou.

Debilitados política, ideológica e organizativamente por quase 50 anos de retrocesso social e derrotas políticas, os trabalhadores não encontram ainda saída que os emancipe. Mas, para um número crescente, não é a confiança no capitalismo que os leva a aceitá-lo – é antes a noção real de que não há um programa político coerente que o substitua, e de que não há força organizada que o possa deitar abaixo.

A situação não é fácil. À medida, porém, que as injustiças e as desigualdades tornam num inferno a vida de milhões de assalariados impõe-se a conclusão de que a luta só será eficaz se ferir os interesses do capital. Não há outra via para o movimento de resistência acumular a força de que necessita para travar as ambições do patronato e do poder.

Reerguer a luta contra o capital não é, portanto, uma utopia, nem representa um estreitamento do campo da luta de massas. Pelo contrário, é a condição de fazer despertar o sentido de classe dos trabalhadores, de os colocar na dianteira da acção e de alargar a resistência da população pobre.

Justamente nas épocas de crise e decadência como a que estamos a viver, em que o antagonismo entre capital e trabalho se exacerba e fica mais claro – baixas condições de vida, pobreza crescente, perda de apoios sociais, aventuras militares –, torna-se não só necessário, mas obrigatório, atacar o próprio sistema de exploração.

As conquistas de Abril são as conquistas do movimento revolucionário de 74-75. A defesa do que delas resta soará como frase vazia se não for parte de uma acção apontada para o futuro que faça frente ao capitalismo, às suas instituições e ao seu cortejo de misérias actuais. Será nesta acção que podem ter sucesso as reivindicações colocadas por diferentes sectores sociais: mulheres, jovens, imigrantes, moradores, minorias, ecologistas…

Nada de novo se fará no país sem que os trabalhadores lutem pela sua independência política e ousem levantar as suas exigências de classe contra as ambições do capital. É esta a grande lição de 74-75.


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