O currículo escondido do dr. Ventura

Editor / Redes Sociais — 4 Março 2024

CMTV, programa “Pé em riste”, 2019. Um tirocínio político feito em discussões de tasca à roda do futebol

Nem tudo o que circula nas redes sociais é de desprezar. A denúncia a que damos publicidade ganha em ser conhecida precisamente porque não assenta em afirmações gratuitas. As fontes que cita, e que o leitor pode consultar, permitem avaliar o fundamento do que é dito – justamente o contrário do tipo de arrazoado próprio de chefe de claque que caracteriza o dr. Ventura. O personagem, que se apresenta como o mais impoluto dos políticos e braço armado de uma “limpeza” na vida pública do país, tem afinal um passado e um presente, no mínimo, duvidosos. Merece por isso ser conhecido naquilo que tenta esconder. 

Não será esta denúncia que vai derrotar a campanha política do Chega – o fenómeno de atracção que exerce numa população politicamente desorientada tem raízes mais fundas do que os efeitos da simples propaganda. Mas, para quem tenha a razão como guia, vale a pena conhecer em que águas se move o líder da extrema-direita. 

Proximamente, a partir das mesmas fontes, divulgaremos também uma esclarecedora lista de apoiantes do partido de Ventura, os quais têm em comum a sintomática particularidade de não quererem ser conhecidos. 

 

O CV DO VENTURA

Origem: redes sociais

É um dos segredos mais arrasadores para a credibilidade que o líder do Chega ainda vai tendo entre os seus apoiantes. Contraria tudo o que ele diz sobre o seu suposto combate contra a corrupção e as injustiças no país. E está mais do que na hora de ser revelado este segredo: André Ventura trabalha para algumas das pessoas apanhadas no escândalo dos Panamá Papers.

O vigarista, que se apresenta como defensor dos interesses do cidadão comum, tem, na verdade, um dos casos mais explícitos e escandalosos de que temos memória da velha prática das portas giratórias. Ele saiu do seu cargo público como jurista na Autoridade Tributária e Aduaneira e, mais tarde, aproveitou a experiência que adquiriu ao serviço do Estado para usá-la no cargo privado de consultor fiscal numa empresa cujos fundadores, os irmãos Caiado Guerreiro, foram denunciados pelo Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (ICIJ), no âmbito da investigação a negócios em que políticos e empresários desviam fortunas para paraísos fiscais, os famosos Panamá Papers.

Ventura apresenta-se como “anti-sistema”, mas ele está lá, no centro nevrálgico do sistema que ele diz querer combater, a lutar ao lado daqueles que são os verdadeiros “donos disto tudo”, as pessoas com dinheiro e poder para usarem serviços profissionais de planeamento fiscal que, sob o manto fornecido pelos offshores, conseguem desviar milhões de euros do país. O “sistema” são essas pessoas, e Ventura trabalha para elas.

Importa salientar que as denúncias que constituem matéria de facto que incluiremos nesta publicação estarão corroboradas com as devidas fontes e referências, que serão numeradas e poderão ser consultadas no final do texto.

Eis os factos: apesar de ter defendido o trabalho em regime de exclusividade dos deputados da Assembleia da República [1], André Ventura já sabia, quando entrou no Parlamento, que estaria a acumular as funções de deputado com as funções desempenhadas na Finpartner, S.A., empresa dos irmãos Caiado Guerreiro. Segundo a sua declaração de interesses no site da Assembleia da República [2], Ventura começou a trabalhar na empresa Caiado Guerreiro, Soc. de Advogados em 2018. Por algum motivo, mudou depois, em 2019, para a Finpartner, S.A., empresa especializada em imobiliário, planeamento fiscal e apoio a negócios com vistos gold [3].

Ora, a Finpartner também é dos irmãos Caiado Guerreiro, apesar de ser bem mais discreta do que a Caiado Guerreiro, Soc. de Advogados. Aliás, a Finpartner é tão discreta que nunca identifica no respectivo site os seus proprietários nem os membros da direcção. Mas é sabido que a empresa pertence aos irmãos Tiago Caiado Guerreiro e João Caiado Guerreiro, os patrões de Ventura.

O nome Caiado Guerreiro poderá ser-lhe familiar. Tiago e João Guerreiro têm presença assídua na Comunicação Social portuguesa, sendo das pessoas mais solicitadas para comentarem temas de natureza fiscal. Por exemplo, ao longo dos cerca de 15 anos do programa Negócios da Semana, de José Gomes Ferreira, os irmãos Caiado Guerreiro terão sido dos convidados que mais vezes estiveram presentes para analisar temas de natureza política e, sobretudo, de política fiscal.

É aqui que a história se torna especialmente interessante, logo à partida, porque os irmãos Guerreiro não são propriamente analistas imparciais no que toca a fiscalidade. Com interesse próprio na produção de legislação de natureza fiscal, devido à actividade das suas empresas, a perspectiva dos irmãos Guerreiro dificilmente poderia ser considerada isenta ou objectiva.

Não obstante, desde os jornais até aos canais televisivos, Tiago e João Guerreiro já passaram por quase todas as plataformas e continuam a passar, mesmo depois de terem sido assinalados pelo ICIJ como participantes num esquema que envolve uma holding sediada em Malta, um dos offshores investigados nos Panamá Papers [4] [5].

Devemos referir que não temos informação que nos permita determinar se alguma das actividades levadas a cabo pelas entidades referidas é ilegal. Só uma investigação judicial e/ou jornalística séria e determinada poderia averiguar isso e, até prova em contrário, as actividades de Ventura e dos irmãos Guerreiro referidas neste texto são legais.

Mas é estranho notar que estes dados são públicos desde 2016 e, por algum motivo, a ligação dos irmãos Guerreiro aos Panamá Papers, assim como o papel que Ventura tem nesta história, não são do conhecimento geral.

Quanto às investigações de que temos conhecimento, segundo informações conhecidas em 2018, e que decorreram da investigação aos Panamá Papers, o fisco estaria a investigar 256 portugueses suspeitos de ocultação de fundos, num universo de mais de 1350 portugueses apanhados nesta teia [6].

O estado destas investigações por parte do fisco não nos é claro, mas a investigação jornalística parece ter chocado contra obstáculos inesperados.

Em 2019, soube-se que o Sindicato dos Jornalistas pedia, pela segunda vez (a primeira foi em 2016) que o Expresso revelasse o nome de jornalistas portugueses alegadamente envolvidos num esquema de pagamentos do Grupo Espírito Santo, o esquema que ficou conhecido como o “saco azul” do GES [7].

O “Expresso” alegou que estaria a cruzar duas investigações distintas, a da ES Enterprises e a dos Panamá Papers, informando ainda que o Ministério Público teria em sua posse uma lista de nomes alegadamente envolvidos em pagamentos da ES Enterprises. Também não temos conhecimento do estado dessas investigações. 

Entretanto, aquilo que sabemos é que Ventura trabalhou durante anos na Autoridade Tributária – e, aliás, ainda tem pendente o seu vínculo à AT, pois está de licença deste organismo e admite um dia regressar ao seu cargo [8] – e, algum tempo mais tarde, levou a experiência que adquiriu ao serviço do fisco para os escritórios dos irmãos Guerreiro, identificados na investigação aos Panamá Papers pelo seu recurso a offshores.

Para perceberem o quão lesivo para o país é o recurso a offshores, recordamos que há um relatório da Oxfam, de 2013, que conclui que Portugal perde cerca de 12 mil milhões de euros por ano para os paraísos fiscais [9]. É uma fortuna monstruosa, e Ventura está num dos escritórios portugueses onde este tipo de prática é levada a cabo.

Para pôr as coisas em perspectiva, pensemos no grande inimigo de Ventura, os ciganos. Apesar de serem frequentemente acusadas de custarem ao Estado uma fortuna através do RSI, calcula-se que as pessoas ciganas representam apenas entre 3% a 6% do universo total de beneficiários do RSI [10.1] [10.2].

A despesa do país com o RSI nos anos de 2016 e 2017 foi de €334.677.000 e €344.098.000 (*), respectivamente [11]. Ou seja, perto de 340 milhões de euros por ano, em média. Fazendo médias simples destes valores, e representando entre 3% a 6% dos beneficiários do RSI, as pessoas ciganas terão assim custado entre €10.200.000 e €20.400.000 por ano ao Estado português. Entre cerca de dez e vinte milhões de euros, portanto.

[P]eguemos nos valores perdidos com offshores, €12 mil milhões/ano, e comparemo-los com a despesa com o RSI de pessoas ciganas, cerca de €20 milhões/ano (na pior das hipóteses). [ A relação é de 600 para 1.]

Percebe agora a diferença entre o que custa ao país o RSI dos ciganos e os offshores? Pois bem, recorde que o proto-fascista do Chega anda em guerra com os ciganos desde que procurou protagonismo na política. No entanto, está desde 2018 a trabalhar com pessoas envolvidas nos negócios dos offshores, utilizando precisamente a sua formação em Direito Fiscal e a sua experiência como inspector do Fisco para beneficiar os clientes da Finpartner.

Terminamos o texto reforçando três pontos fundamentais:

1 – Para o comum Chegófilo, estes factos são irrelevantes. Para os outros, é importante que conheçam estes dados e que percebam o que está em causa.

2 – Ventura é um vigarista. Ele não está a combater “o sistema”, ele está a ajudar os privilegiados do sistema a fugirem aos impostos.

3 – O Chega é uma fraude política.

 

Fontes e referências.

[1] https://poligrafo.sapo.pt/…/andre-ventura-defende…

[2] https://www.parlamento.pt/…/RegInteresses_v3.aspx…

[3] Revista “Visão”, 21 de Maio de 2020, página 37.

[4] https://offshoreleaks.icij.org/nodes/56097603

[5] https://offshoreleaks.icij.org/nodes/56098384

[6] https://expresso.pt/…/2018-11-09-Offshores.-Fisco…

[7] https://www.sabado.pt/…/papeis-do-panama-sj-volta-a…

[8] https://www.youtube.com/watch?v=EHqErVyT-CA, minuto 2:36

[9] https://www.publico.pt/…/offshores-mundiais-escondem-14…

[10.1] https://poligrafo.sapo.pt/…/apenas-38-dos-beneficiarios…

[10.2] https://poligrafo.sapo.pt/…/valor-medio-da-prestacao-de…

[11] https://www.pordata.pt/…/Despesa+da+Seguran%C3%A7a…

 

(*) Valores corrigidos em 5.3.24. Por lapso, tinham sido indicados milhares em vez de milhões


Comentários dos leitores

Teresa Alves da Silva 4/3/2024, 20:58

Obrigada pela divulgação desta informação.
É muito oportuna, mesmo não tendo efeito imediato..
Seria de grande importância que o jornalismo de investigação pudesse "agarrar" esta matéria com sobriedade e rigor.

Adilia Maia 4/3/2024, 23:46

Devo confessar que pouca atenção tenho dado a campanha política para as próximas eleições: o assunto tem-se revelado desinteressante, chato mesmo. Assim, posso ter estado distraída, mas não vi nenhum dos grilos falantes explorar o filão que, como aqui se evidencia, o Ventura proporciona.
Encostar às cordas a extrema direita prenunciadora do fascismo, mostrar que os fascistas convivem muito bem com o capitalismo - só o querem mais musculado- foi uma oportunidade única que a esquerda mais uma vez não soube aproveitar.
É preciso perceber que a retórica, embora por vezes justamente vilipendiada quando ao serviço da demagogia, é uma arma e uma arma que não podemos dispensar sobretudo numa era em que o recurso à violência pura e dura é substituída pelo soft power da comunicação social.
A esquerda, ao limitar-se a repetir slogans estafados, ao não evidenciar uma perceção lúcida do processo que nos está a conduzir para o fascismo, perde as poucas oportunidades que o sistema lhe dá de ser ouvida no espaço publico e de suscitar perplexidade nas pessoas, sendo esta que as pode despertar para a reflexão.
Dai que mais uma vez insisto, a preparação teórica; o conhecimento dos factos, como os que, a título de exemplo, este texto transmite; o saber veicular numa forma pregnante a informação, são aspetos essenciais, se quiserem fazer a diferença. E já agora, não menosprezem a retórica a que as pessoas continuam extremamente sensíveis, procurem as expressões dotadas de boa forma porque são estas que ficam e que revelam força persuasiva.
Por ultimo, mas nao menos importante, um político de esquerda que se preze tem de saber historia, nomeadamente a do século XIX e XX, e não pode ignorar o contributo que Marx deu para a compreensão dos fenómenos históricos porque, com todas as limitações que lhe podemos encontrar, ainda não apareceu outro pensador que o tenha ultrapassado.

chico 5/3/2024, 9:54

Permite-me uma pequena correcção que não altera em nada o sentido do texto.
"A despesa do país com o RSI nos anos de 2016 e 2017 foi de €334.677 e €344.098, respectivamente " Não são 334.677 e 344.098 mas sim 334.677.000 e 344.098.000.

Editor 5/3/2024, 17:09

Obrigado pelo reparo. Já está corrigido.


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