Imperialismo, questão central do nosso tempo

Editor / Prabhat Patnaik — 11 Fevereiro 2024

A quebra da hegemonia do bloco imperialista é sinal de que se abre uma nova época de revoluções sociais

O centésimo aniversário da morte de Lenine, completado a 21 de Janeiro deste ano, foi ocasião para recordar, entre outros assuntos, a importância teórica e política do tema Imperialismo. Tanto mais quanto o estado de guerra permanente em que o mundo se vê envolvido se acentua a olhos vistos – na Ucrânia, na Palestina, no Próximo ou no Extremo Oriente. O marxista indiano Prabhat Patnaik trata do assunto, a nosso ver, com duplo mérito: recorda de forma concisa o inovador contributo de Lenine e, do mesmo passo, não deixa de alertar para as mudanças entretanto ocorridas no mundo, exortando-nos a desbravar terrenos que são cruciais para a afirmação do socialismo no nosso tempo.

 

A IMPORTÂNCIA TEÓRICA DE O IMPERIALISMO DE LENINE

Prabhat Patnaik, People’s Democracy, 21 janeiro 2024

A importância de O Imperialismo de Lenine está no facto de ter revolucionado a percepção da revolução. Marx e Engels já haviam admitido a possibilidade de países coloniais e dependentes terem revoluções próprias antes mesmo da revolução proletária nas metrópoles, mas esses dois conjuntos de revoluções eram vistos como desarticulados; e tanto a trajetória da revolução na periferia como a sua relação com a revolução socialista nas metrópoles permaneceram obscuras. 

O Imperialismo de Lenine não apenas ligou os dois conjuntos de revoluções, mas também considerou a revolução nos países periféricos como parte do processo de transição da humanidade para o socialismo.

Ele via, portanto, o processo revolucionário como um todo integrado. Visualizou um único processo revolucionário mundial que, a partir de uma ruptura no elo mais fraco da cadeia, não importando onde esse elo estivesse localizado, derrubaria todo o sistema.

E afirmava também que chegara o tempo de tal revolução mundial, pois o capitalismo atingira um estágio em que enredara a humanidade em guerras catastróficas: tinha “coberto” o mundo inteiro sem deixar “espaços vazios”, dividindo-o completamente em esferas de influência de diferentes potências metropolitanas, de modo que só poderia agora ocorrer uma nova repartição; e essa redivisão só poderia ocorrer por meio de guerras interimperialistas, das quais a Primeira Guerra Mundial foi um clássico.

A posição teórica que informa O Imperialismo ampliou o marxismo em pelo menos cinco direcções principais. 

Primeiro, trouxe as “regiões periféricas” do mundo, países que Hegel havia descartado como não tendo história, para o âmbito da revolução mundial. De facto, com o passar do tempo e com o desaparecimento das esperanças de uma revolução na Europa após a Revolução Bolchevique, esses países passaram para o centro da revolução mundial.

Num dos seus últimos escritos, Lenine não apenas depositou as suas esperanças numa revolução na China e na Índia para suceder à Revolução Russa, mas sublinhou mesmo o facto de a Rússia, a China e a Índia em conjunto representarem quase metade da humanidade, de modo que as revoluções nesses três países mudariam decisivamente a balança em favor do socialismo. Não por acaso, a Internacional Comunista que ele ajudou a criar era diferente de tudo o que o mundo já tinha visto até então, onde delegados da Índia, China, México e Indochina ombreavam com os da França, Alemanha e Estados Unidos.

Em segundo lugar, e paralelamente, ampliou o escopo do marxismo de uma teoria da revolução proletária nos países capitalistas avançados para uma teoria da revolução mundial. É claro que reconhecer o alcance muito mais amplo do marxismo – uma reflexão acerca da dominação mundial do capital que O Imperialismo enfatizou – ainda exigia que a tarefa específica de analisar a história das sociedades não europeias com base na teoria marxista tivesse que ser realizada. 

Mas a extensão e o florescimento do marxismo no terceiro mundo forneceram a base para tais análises, estimuladas pelo Comintern mesmo quando as leituras políticas específicas deste último se mostravam erradas. O Imperialismo deu, assim, ao marxismo uma vitalidade sem precedentes.

Na verdade, Lenine não foi o primeiro a falar de imperialismo. Antes dele, Rosa Luxemburgo havia feito uma análise extremamente aguda e perspicaz explicando por que razão o capitalismo precisava de usurpar os mercados pré-capitalistas. Mas a análise de Luxemburgo sofreu com o facto de considerar que tal usurpação resultaria numa assimilação do segmento pré-capitalista pelo capitalismo. O segmento pré-capitalista não permaneceria como uma entidade devastada: passaria a fazer parte do segmento capitalista. 

O foco da análise de Luxemburgo continuou, portanto, a ser a revolução proletária europeia. Apesar de observações dispersas em contrário, não via um mundo permanentemente segmentado a ser criado pelo capitalismo metropolitano. O Imperialismo de Lenine, no entanto, visualizou um mundo permanentemente segmentado e é aí que reside a sua força.

Em terceiro lugar, a teoria de Lenine proporcionou uma interpretação radicalmente nova do conceito de “obsolescência histórica” do capitalismo. Até então, com base nas breves observações de Marx no prefácio de Contribuição para a Crítica da Economia Política, o entendimento era que um modo de produção se tornava historicamente obsoleto e, portanto, maduro para ser derrubado, apenas quando o espaço para qualquer desenvolvimento adicional das forças produtivas dentro dele se esgotasse; e tal esgotamento deveria manifestar-se tipicamente na forma de uma crise. 

A ausência de qualquer crise desse tipo, de facto, levou à exigência de Bernstein de “rever” o marxismo, colocando como desiderato do proletariado não o derrube, mas uma reforma do sistema capitalista. Aqueles que aderiram à tradição revolucionária, contra Bernstein, procuraram provar que uma tal crise terminal, que talvez ainda não tivesse surgido, era, no entanto, inevitável.

A teoria do imperialismo de Lenine abriu aqui caminhos completamente novos. A manifestação da obsolescência histórica do capitalismo, a sua maturidade para ser derrubado, não estava em qualquer crise económica, mas no facto de ter entrado numa fase em que envolveu a humanidade em guerras devastadoras, guerras em que os trabalhadores de um país foram obrigados a lutar contra os trabalhadores de outro país, de trincheira para trincheira.  Quando isto se verificou, chegou o momento de converter a guerra imperialista em guerras civis, de desviar as armas dos camaradas de trabalho e apontá-las aos capitalistas de cada país.

Quarto, o socialismo seria agora o objectivo de todas as revoluções, independentemente do local onde ocorressem. A ideia de a revolução democrática não ser levada avante pela burguesia (que historicamente desempenhou o papel de seu arauto) nos países que chegaram tarde ao capitalismo tinha já aparecido na obra de Lenine Duas táticas da socialdemocracia. Em tais sociedades, a tarefa de levar adiante a revolução democrática cabia ao proletariado, que entraria em aliança com o campesinato e, tendo liderado a revolução democrática, não pararia por aí, mas continuaria no sentido de construir o socialismo. 

Mas agora esta perspectiva de uma revolução numa sociedade periférica – inicialmente contra o imperialismo e baseada numa ampla aliança de classe de operários e camponeses no seu núcleo, e depois passando para a fase socialista – tornou-se generalizada. Em suma, a tarefa de construir o socialismo já não era uma preocupação apenas dos trabalhadores dos países avançados: era uma tarefa a ser alcançada através de etapas que tinham entrado na agenda de todas as sociedades.

Finalmente, surgiu uma questão fundamental: porque é que houve um tal crescimento do “reformismo” no movimento da classe operária europeia a ponto de tantos líderes da Segunda Internacional adoptarem posições oportunistas ou completamente social-chauvinistas durante a guerra? Lenine forneceu uma resposta a esta questão, com base numa sugestão anterior de Engels, ao desenvolver o conceito de uma “aristocracia operária” que tinha sido “subornada” pelos superlucros imperiais.

O Imperialismo foi uma grande conquista teórica. Lenine observou certa vez que a força do marxismo reside em ser verdadeiro. Pode-se fazer uma afirmação semelhante também sobre a teoria do imperialismo de Lenine. Constituindo um notável avanço, forneceu respostas, com extraordinário brilhantismo, a toda uma série de questões que tinham surgido na nova conjuntura e clamavam por respostas. Poder-se-á discordar deste ou daquele detalhe da argumentação de Lenine, mas a sua orientação geral foi quase esmagadoramente correcta. E um indício da sua correcção é a forma quase estranha como antecipou os desenvolvimentos no mundo no período entre 1914 e 1939.

O mundo de hoje, porém, afastou-se daquilo que Lenine tinha escrito em O Imperialismo

Uma característica importante desta diferença é que a centralização do capital avançou muito mais do que no tempo de Lenine, dando origem a um capital financeiro internacional, no lugar dos capitais financeiros nacionais que então dominavam. Consequentemente, as rivalidades inter-imperialistas foram abafadas, uma vez que o capital financeiro internacional não quer que o mundo seja dividido em diferentes esferas de influência. Quer, em vez disso, um mundo não dividido para o seu movimento irrestrito. A questão das guerras causadas pela rivalidade interimperialista já não se coloca.

Isto, porém, não significa o início de uma era de paz. A ofensiva implacável do capital financeiro internacional contra todos os esforços nacionais no terceiro mundo que vão no sentido da independência económica e da auto-suficiência económica (incluindo a alimentação) deu origem a uma onda de conflitos locais, opondo um imperialismo unido a determinados países

Ao mesmo tempo, a exploração dos trabalhadores do terceiro mundo intensificou-se enormemente, assim como a oligarquia empresarial-financeira dentro dele se integrou com o capital financeiro internacional. O resultado é um crescimento maciço da desigualdade no terceiro mundo, a tal ponto que grandes sectores da população testemunharam um aumento da pobreza absoluta em termos nutricionais. 

Ao mesmo tempo, a maior disponibilidade do capital metropolitano para deslocalizar actividades para o sul global enfraqueceu os sindicatos nas metrópoles e levou a um aumento da desigualdade dentro das próprias metrópoles. A hegemonia do capital financeiro internacional, expressa numa ordem neoliberal, implicou, portanto, um agravamento significativo em termos relativos, e mesmo absolutos, nas condições dos trabalhadores do mundo.

Isto deu origem a uma crise de superprodução para a qual não há solução dentro da ordem global neoliberal. E esta crise deu origem a um recrudescimento do fascismo e do neofascismo em todo o mundo, com as oligarquias corporativas-financeiras em vários países a entrarem em alianças com grupos fascistas para manter a sua hegemonia. 

A luta pelos direitos democráticos, a luta contra o desemprego e a luta pelas liberdades civis passaram assim para a linha da frente, e esta luta está ligada à luta pelo socialismo. O revolucionamento trazido por  Lenine à perspectiva da revolução mundial continua válido, embora o foco imediato da revolução tenha mudado com o tempo.

Tradução MV

Notas do editor

1. Prabhat Patnaik é um economista indiano, marxista, membro do Partido Comunista da Índia (Marxista). Escreve regularmente no jornal do partido Peoples Democracy.

2. O título da obra de Lenine em português teve, pelo menos, duas versões mais divulgadas: “O imperialismo, estádio supremo do capitalismo” e “O imperialismo, fase superior do capitalismo”. Numa tradução literal, o título original russo corresponderia em português a “O imperialismo como estádio mais elevado do capitalismo”.

3. Como o texto de Prabhat Patnaik bem regista, para a compreensão do imperialismo, ou seja, do capitalismo de hoje, foi crucial a obra de Lenine publicada em 1916, em plena guerra mundial. A ligação estabelecida por Lenine entre a prevalência do capital monopolista, o domínio da finança, a repartição colonial do mundo e o papel dos Estados burgueses na condução de guerras destruidoras foi absolutamente inovadora. 

A abordagem leninista mostrou que o capitalismo tinha atingido um estádio de desenvolvimento para além do qual só o socialismo – entendido como um movimento geral das sociedades humanas que juntava as massas trabalhadoras do mundo capitalista desenvolvido e os povos oprimidos pelo capital imperialista – poderia dar resposta às ambições de progresso da humanidade. 

Isto permitiu perceber o papel central que os povos oprimidos pelo imperialismo passaram a ter no combate ao capitalismo como sistema global, e no abrir dos caminhos do socialismo à escala mundial na nova época que se iniciava. E, consequentemente, deu ao internacionalismo proletário uma dimensão actualizada, verdadeiramente planetária, que ficou expressa, em 1919, na consigna da Internacional Comunista que incluía os povos oprimidos na exortação que o Manifesto do Partido Comunista, em 1848, lançara aos proletários de todo o mundo para que se unissem por cima das fronteiras e das diferenças de desenvolvimento que os separavam. Daí a frase “Proletários de todo o mundo e povos oprimidos, uni-vos!”

O imperialismo permanece como a questão central do nosso tempo. Mas passaram entretanto mais de cem anos desde 1916. Tal como Lenine ousou fazer na sua época, impõe-se hoje saber que transformações se deram de então para cá e que condições enfrentam as forças revolucionárias no mundo actual. 

O leque das perguntas que hoje se colocam é vasto: Que feição concreta tem o imperialismo de hoje? O que resulta do facto de o imperialismo ter atenuado os seus conflitos internos e actuar como um bloco contra os povos do resto do mundo? Como podem os trabalhadores do mundo desenvolvido fazer convergir as suas lutas com as lutas dos povos do mundo dependente? Que afinidades têm as lutas de classes num e noutro destes mundos que possam traduzir-se em actos de solidariedade e de aliança efectivos? A quebra da hegemonia do bloco imperialista, a crise em que se afunda, é ou não sinal de que se abre um novo ciclo de revoluções sociais, à semelhança da época de revoluções que respondeu à gestação do imperialismo, revoluções sociais essas agora de feição marcadamente socialista?


Comentários dos leitores

leonel l. clérigo 13/2/2024, 14:40

No final do texto, o Editor coloca no PONTO 3 das "NOTAS do EDITOR", um conjunto de questões que julgo de grande importância para o Futuro.
Contudo, parece-me claro que estas questões estão ainda longe do "Horizonte" dos denominados "OCIDENTAIS" dos nossos dias, habituados aos "benefícios" que o poder da REVOLUÇÃO INDUSTRIAL - mesmo como assalariados - lhes trouxe sobre o resto do Mundo e fez entrar nas suas cabeças as "taras" ancestrais dos diferentes "EUROCENTRISMOS".
Mas era de esperar que, "com as voltas que o mundo dá", seria isso" sol de pouca dura". A PÓLVORA, foi a China que a inventou mas, hoje, todo o mundo a utiliza, tal como os telemóveis. Por isso, estamos perante duas opções: IMPERIALISMO OCIDENTAL - já hoje em queda - ou (para começar) CONCERTAÇÃO INTERNACIONAL onde a ONU pode ocupar papel relevante.
Não há opção B, julgo, a não ser o "regresso às cavernas". E seria razoável e de bom-senso que as "visões" dos Benjamin Netanyahu e dos generais de bancada, desaparecessem do mapa. Com a ajuda da imensa máquina produtiva mundial, dos "computadores", e duma ONU a sério, "isto dá para todos". É questão de planificação onde não cabem já as tontices dos LIBERAIS à sr. Rui Rocha.

A importância teórica de O imperialismo de Lenine - Vereda Popular 14/2/2024, 20:37

[…] O original encontra-se em peoplesdemocracy.in/2024/0121_pd/theoretical-significance-lenin’s-imperialism e a tradução de MV em www.jornalmudardevida.net/2024/02/11/imperialismo-questao-central-do-nosso-tempo/ […]


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