Israel: a veia genocida do imperialismo, hoje

Manuel Raposo — 15 Janeiro 2024

Biden com Netanyahu em Telaviv em dezembro de 2023. Apoio incondicional

O que se tem visto desde outubro em Gaza e na Cisjordânia é a execução do plano de há muito alimentado pelo ideário sionista de liquidar ou expulsar toda a população árabe e tomar conta de toda a Palestina como território de Israel. Estes propósitos estão expostos à luz do dia e sem reservas. Os métodos brutais, aplicados sem qualquer restrição, também. Ninguém pode dizer que não sabe, não vê ou não acredita. Os actos de Israel, contudo, não são apenas de Israel e de uma clique sionista, extremada e ocasional: eles espelham o cariz do imperialismo de hoje e dos métodos a que deita mãos sem hesitar.

Um agente imprescindível

Os dirigentes ocidentais sabem quais são as ideias que norteiam os líderes israelitas, conhecem os seus fins políticos, ouvem as suas declarações terroristas, vêem as suas acções práticas. As condenações morais que lhes fazem só podem ser vistas como maneiras de lavarem a própria face diante da barbárie, porque têm os meios para pôr fim ao morticínio e não os usam. 

É a esses criminosos sem rebuço que os EUA e a UE, seguidos por um séquito de Estados de fraca vontade própria como o nosso, reconhecem o “direito de defesa”, a pretexto do ataque militar de 7 de outubro – invertendo a lógica das coisas: são os palestinos que, à luz de todos os critérios, têm direito de defesa, por todos os meios, contra Israel. 

Este comportamento do Ocidente dá-nos um sinal sobre os métodos que o imperialismo na sua decadência não hesitará em aplicar: a guerra genocida, a eliminação ou deslocação de pessoas aos milhões, a destruição cataclísmica de regiões inteiras, seja por subcontratação, seja por acção directa se assim for preciso.

O comportamento dos EUA, da UE e da Europa em geral mostra sem margem para dúvidas que a guerra de Israel contra os palestinos é parte de uma guerra geral do Ocidente imperialista contra os povos do Médio Oriente.

O facto que conta acima de tudo é sabido: os EUA e o Ocidente têm necessidade absoluta de manter a testa de ponte que Israel sempre foi no Médio Oriente a fim de eternizar o seu domínio numa região crucial do mundo para os negócios capitalistas. Para que este domínio persista é preciso que os povos árabes e muçulmanos não possam unir-se e que as classes que os dirigem não sonhem defender interesses nacionais. É esse o papel do estado sionista.

Por saber disto perfeitamente, Israel pode dar-se ao luxo de tomar o freio nos dentes e levar a cabo todos os actos de violência quotidiana, de genocídio e de limpeza étnica que julgue úteis ao seu papel de guardião do imperialismo ocidental. Esse papel tem-lhe rendido protecção, benefícios e impunidade nos 75 anos que leva de vida. Agora, é como se o assassino contratado exibisse interesses próprios e decidisse cobrar preço mais elevado pelos seus serviços.

O espectro da decadência dos EUA assombra Israel

Este aparente virar do feitiço contra o feiticeiro tem uma razão própria nos tempos que correm. A decadência dos EUA põe de sobreaviso as classes dominantes de Israel, e mesmo toda a sociedade israelita, que sabem só poderem subsistir debaixo da asa protectora de Washington. Qual vai ser o seu destino quando o apoio militar norte-americano não se mostrar suficiente e os generosos financiamentos correrem o risco de secar? Que lugar vai ter num Médio Oriente inclinado para os BRICS, que procura usar os seus recursos segundo critérios de interesse nacional e não já a mando dos EUA ou da Europa?

Também neste sentido mais próximo, para além de toda a questão histórica conhecida, não há um problema palestino por resolver, há sim um problema israelita que não tem solução.

Com a guerra de extermínio que desencadeou, Israel tenta, em desespero, acautelar o seu futuro. O sionismo mais extremista alimenta a ilusão de fazer de Israel uma potência regional capaz de desempenhar por si própria o papel de patrão do Médio Oriente, mesmo (ou sobretudo) diante de um imperialismo norte-americano enfraquecido. 

Eliminar a coriácea resistência palestina importaria não apenas para que Israel deixasse de ter um problema “interno”, mas também para convencer os regimes árabes vizinhos a uma convivência pacífica com o estado sionista. 

Neste sonho, Israel seria não apenas o mandatário do imperialismo norte-americano, mas um seu sócio com larga quota, uma espécie de subimperialismo regional. A sua missão seria, para além da divisão que sempre causou no mundo árabe, a de congregar à sua volta os chamados “moderados”, amarrando-os aos interesses dos EUA – isolando o Irão e desforrando-se das derrotas sofridas na Síria e no Iraque.

O espectro da guerra popular assombra o imperialismo

Este objectivo parecia estar a cumprir-se com o longo cerco de Gaza, a anulação da Autoridade Palestina na Cisjordânia, o avanço dos colonatos, a liquidação da ideia de dois Estados e, por fim, com os acordos, ditos de Abraão, quase estabelecidos com Marrocos, Arábia Saudita, Egipto, etc. Também no plano simbólico esta manobra estava a ser empreendida com a conivência dos EUA e o silêncio da UE: Jerusalém foi declarada capital de Israel, com pleno apoio de Trump e o deixa-estar de Biden; e a mesquita de Al-Aqsa, uma das referências maiores do islamismo, foi objecto de uma campanha visando nada menos que a sua demolição.

O 7 de outubro virou o jogo. A resistência popular fez renascer a determinação, que parecia morta, da libertação da Palestina, não já com pedras e facas, mas com meios militares a doer. Só um sobressalto popular poderia produzir tal efeito.

Subsiste um aparente mistério. Sabe-se como a resposta de Israel está a desacreditar o próprio Ocidente aos olhos do resto do mundo. Vê-se a duplicidade dos EUA e da UE quando abordam a guerra na Ucrânia e a guerra em Gaza. Porquê, então, os EUA, como principais mentores de Israel – e subsidiariamente a UE – não põem cobro aos desmandos da quadrilha de Netanyahu?

O Ocidente imperialista sabe que o ataque de 7 de outubro aos quartéis e colonatos israelitas foi um acto de guerra popular – e é isso que quer eliminar, matando a ousadia à nascença.

O apoio incondicional (como fazem questão de sublinhar os dirigentes norte-americanos) a Israel é o eixo da diplomacia dos EUA, não os votos piedosos de “poupar os civis” ditos em àparte. Aquele apoio destina-se a evitar que a guerra popular alastre e ganhe adeptos; os àpartes destinam-se a neutralizar as opiniões públicas.

Sinais de que a guerra popular pode mesmo alastrar vêm da Cisjordânia, onde a popularidade do Hamas subiu em flecha, demonstrando que os palestinos estão fartos da capitulação da Autoridade Palestina. E vêm também da solidariedade activa, numa lição de internacionalismo prático, que se manifesta no Líbano (Hezbollah), no Iémen (Houthis), bem como no Iraque e na Síria por via de vários grupos de resistência anti-imperialista que têm colocado as bases norte-americanas debaixo de fogo. 

“Terroristas” com largo apoio popular

O imperialismo insiste em desqualificar o Hamas, o Hezbollah, ou os Houthis como “terroristas”, procurando equipará-los a grupelhos de malfeitores. A finalidade óbvia é levar as opiniões públicas ocidentais a aceitarem os actos de guerra de Israel ou dos EUA. 

Mas o que o Ocidente enfrenta é uma resistência popular que tende a alargar a base de apoio nas massas – passando por cima das fronteiras nacionais, ganhando confiança nas capacidades próprias, desfazendo gradualmente as ilusões sobre a moderação política. Tudo isto aponta para a forma que nos dias de hoje tende a tomar a luta anti-imperialista. 

Argumentar que todos estes protagonistas são agentes incitados pelo Irão (o Ocidente vê tudo à sua imagem) é fechar os olhos à base popular que qualquer deles tem nos respectivos países, e ignorar a força da solidariedade árabe e muçulmana dirigida contra o imperialismo.

Boas razões, portanto, tem o Ocidente para apoiar Israel incondicionalmente na sua investida terrorista, ao mesmo tempo que faz esforços para manter na sua órbita os chamados regimes moderados, que têm sido um complemento do seu seguro de vida na região.

Nada será como dantes

A tolerância do Ocidente para com o nazi-sionismo pode conseguir no imediato (e, até ver, consegue) manter no poder os torcionários de Netanyahu, e com isso suster a queda de influência dos EUA e da UE no Médio Oriente. Mas não são os cálculos do Ocidente que determinam a evolução dos acontecimentos. Os olhos do resto do mundo vêem as coisas por outro prisma. É isso que conta para os anos mais próximos.

O paralelo entre a opressão extrema dos palestinos e a opressão a que são sujeitos os demais povos árabes e muçulmanos, e todos os que o imperialismo tem submetido – esse paralelo é gritante. 

Para esses povos, o domínio do imperialismo europeu e norte-americano não é uma figura de retórica política – é um dado palpável das suas vidas desde há décadas, evidenciado na falta de liberdades, na exploração, na miséria, na violência, na imposição de regimes tirânicos. Não admira que um legítimo ódio ao Ocidente alimente as acções políticas de largos sectores dessas populações e os mobilize para a luta. O espelho disso mesmo está nas gigantescas manifestações de apoio à Palestina que saem à rua por todo o mundo, com saliência para o mundo dependente.

A prazo mais ou menos curto, o ocidente imperialista sofrerá as consequências das suas escolhas políticas. Por mais que arvore as suas democracias como exemplos de liberdade e progresso (coisa que hoje nem sequer é argumento), os factos provam, para os povos oprimidos, que tais regimes estão na origem e são os veículos da opressão que sofrem. Que lhes importa que os eleitores norte-americanos ou europeus escolham “livremente” os seus regimes se estes regimes são os agentes das guerras e das espoliações praticadas fora da Europa e dos EUA? Que “liberdade” é essa que serve para legitimar toda a espécie de ditaduras convenientes ao Ocidente?

O martírio dos palestinos vai seguramente provocar outras ondas de choque. Os regimes árabes chamados “moderados” tenderão a ser vistos pelas respectivas populações, de modo mais claro e definitivo, como cúmplices dos crimes de Israel e do Ocidente e como causa óbvia das suas misérias. 

As divisões étnicas e confessionais fomentadas pelo Ocidente poderão ser ultrapassadas em nome de uma unidade política que defenda os interesses maioritários das populações. Uma tal unidade política tenderá a construir-se a partir da base, a partir das massas populares, assente na solidariedade de classe e não em critérios confessionais ou étnicos. 

As revoltas de massas da chamada Primavera Árabe de 2011, independentemente dos resultados práticos que restaram, deram o sinal de que essa unidade política é viável e pode dar frutos. As manifestações de apoio à Palestina, desde Marrocos ao Paquistão ou à Indonésia, são o sinal, hoje, não apenas de uma solidariedade moral, mas, acima de tudo, de uma identidade de interesses que radica numa situação material comum.

 


Comentários dos leitores

MANUEL BAPTISTA 15/1/2024, 7:19

A veia genocida do imperialismo US já se manifestará no passado e repetidas vezes:
As bombas atómicas lançadas sobre cidades japonesas sem serem sequer objetivos militares, destinadas a avisar a URSS, que devia parar a sua campanha no norte do Japão, o carpet bombing de muitas partes da Coreia do Norte e a quase decisão de bombardeamento nuclear da mesma; na Indochina (Vietnam, Cambodja e Laos) o carpet bombing, destruição do habitat com desfoliantes, as aldeias estratégicas, os massacres, em Palestina o apoio a primeira Naqba (1948) , o bombardeamento de Belgrado e outras cidades Sérvias, o apoio incondicional a ditaduras impiedosas e levando a cabo genocídios (Chile de Pinochet, Indonésia de Suharto, Iraque de Saddam, etc).
Os EUA estão baseados no genocídio das nações primeiras, que acolheram os colonos no séc. XVII e foram massacradas e seus sobreviventes parados em "reservas" como animais...
Alguns historiadores como Howard ZINN, fizeram relatos honestos sobre o imperialismo dos EUA. Nos países vassalos da OTAN, não se menciona sequer isso!

Adilia Maia 15/1/2024, 9:56

Texto muito lúcido, esclarecedor e que resulta de uma analise correta da situação que se está a viver, analise essa que o ultimo período do texto sintetiza:

" As manifestações de apoio à Palestina, desde Marrocos ao Paquistão ou à Indonésia, são o sinal, hoje, não apenas de uma solidariedade moral, mas, acima de tudo, de uma identidade de interesses que radica numa situação material comum. "

Obrigada por partilhar as suas reflexos .

Carlos Caixas 16/1/2024, 6:48

Muito obrigado e parabéns .Pela clareza da análise. Pela verdade factual implícita e pela liberdade assumida. E, claro, pelo prazer da sua (minha) leitura que é idêntica. Afinal não estamos sós.

CarlosM 12/2/2024, 21:07

A estratégia de Netanyahu tem sido descrita, pelos OCS, como sendo meramente de sobrevivência pessoal. A sua popularidade e a do seu governo em Israel está em queda acelerada. Todavia, a dimensão referida por este artigo é muito importante. Israel já compreendeu que o "chapéu-de-chuva" americano não dura para sempre e que o Médio Oriente atual não é mais o da segunda metade do século passado, onde Israel e os EUA ditavam as regras. Ao mesmo tempo que Netanyahu amarra o seu destino à administração norte-americana, esta, mais uma vez, fornece um apoio incondicional a Israel, apenas pontuado por alguns remoques hipócritas. Mesmo no insuspeito NYT surgem vozes preocupadas com o facto de o P-M israelita estar a arrastar consigo os "democratas" para o abismo.
De qualquer modo, esperam-se tempos bastante conturbados no Médio Oriente. Que a autodeterminação do povo palestiniano, prometida desde 1947 e sempre negada, seja de facto uma realidade é o mínimo que a consciência mundial pode exigir.


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