Lajes, Nato e Pilatos

Urbano de Campos — 21 Dezembro 2023

Cimeira das Lajes, março 2003. Durão Barroso, Blair, Bush e Aznar selam a destruição do Iraque

O nosso país tem implicação directa nas duas guerras em curso, na Ucrânia e na Palestina, tanto pelo seu papel como membro da Nato como pela cedência da base das Lajes aos EUA. Todas as decisões tomadas no âmbito da Nato são decisões tomadas em nosso nome, e todo o uso que os EUA continuam a fazer das Lajes é por consentimento dos órgãos do Estado. Os crimes por essa via cometidos têm, portanto, cumplicidade nacional na pessoa do poder político e dos partidos e propagandistas que com ele alinham.

A responsabilidade portuguesa nos conflitos que já decorrem e nos que estejam na forja tem de ser abordada de frente – ela é fruto de decisão própria do Estado e não apenas um simples efeito decorrente de compromissos antes assumidos, como muitas vezes se ouve dizer. 

Lembremos que a base das Lajes foi absolutamente essencial para que Israel não fosse derrotado em 1973, na guerra do Yom Kippur. Uma ponte aérea a partir dos EUA, com escala nas Lajes, forneceu a Israel os meios militares para responder ao ataque desencadeado pelo Egipto e pela Síria. A ditadura portuguesa prestou-se então ao papel de anfitrião dos aviões norte-americanos. Trinta anos mais tarde, a democracia portuguesa, nas figuras de Durão Barroso e Paulo Portas, prestou-se ao mesmo serviço para efeitos de atacar o Iraque. E hoje o mesmo marfim continua a fazer o seu curso.

Se o caminho dos acontecimentos tivesse sido outro, se os EUA não tivessem beneficiado do servilismo e da colaboração portuguesa, não estaríamos hoje a lamentar os 20 mil mortos palestinos das últimas semanas, nem todos os outros milhares entretanto assassinados por Israel. Nem teríamos que lamentar o milhão e tal de mortos iraquianos produzidos pela democracia norte-americana à conta de armas de destruição maciça que nunca existiram.

Depois de ter perdido alguma da sua importância passada como escala, as Lajes voltaram a ter importância estratégica para os EUA – agora no âmbito da sua confrontação global com a Rússia e com a China, e verdadeiramente com todos os demais países que vão escapando à sua tutela. Neste ano, 23 milhões de dólares (a maior verba desde 2006) estão a ser investidos para alargar as capacidades e o pessoal militar estacionado na base – à mistura com anunciados bons propósitos que caem no goto da opinião pública distraída, como “acções de busca e salvamento”, promoção de “economia azul” ou apoio a “investigação oceânica”. 

As Lajes voltam a ter a ver com Israel e com a posição colonial que os EUA querem manter à força no Próximo e Médio Oriente. Têm a ver, portanto, com a carnificina que está a decorrer na Palestina. E têm a ver também com os planos bélicos dos EUA para o Extremo Oriente. Estamos assim, queiramos ou não, no centro dos conflitos mundiais da actualidade.

Fingir que Portugal não tem nada a decidir nestas matérias é servir os propósitos do imperialismo norte-americano e europeu à maneira de Pilatos.

Num debate-entrevista levado a cabo na RTP3 (Eurodeputados, 15 dezembro) com deputados portugueses ao Parlamento Europeu (PS, PSD, BE, PCP), nem uma palavra se ouviu sobre o papel da Nato ou da base das Lajes nos conflitos em curso, nem acerca da posição das autoridades portuguesas. Muitas e justas condenações horrorizadas foram dirigidas a Israel pelo morticínio que pratica há dois meses, mas nada de propostas concretas que contribuíssem para a condenação efectiva de Israel por parte das instituições portuguesas – ou que confrontassem as autoridades nacionais com o seu vergonhoso papel de colaboradores com o morticínio.

Todo o debate, de todas as bandas, assentou na ideia de que cabe aos EUA pôr travão a Israel, já que é o seu principal patrocinador – e que, sem isso, ninguém mais pode fazer nada. É esta, de resto, a posição dominante no jornalismo e no comentarismo condoído, que se aflige com as barbaridades de Israel (que acha “excessivas”), mas que não ousa levantar a voz por medidas concretas. 

Cartaz anónimo, Lisboa dezembro 2023

Outras vozes têm de se fazer ouvir nestas questões cruciais.

Por que não exigir o corte de relações diplomáticas com o estado sionista, como vários países fizeram? Por que não reconhecer o Estado da Palestina, unilateralmente se necessário for, como anunciou o governo espanhol? Por que não incentivar a campanha internacional de boicote, desinvestimento e sanções contra Israel? Por que não apoiar a iniciativa de juristas de todo o mundo para levar os dirigentes israelitas a tribunal por crimes de guerra e crimes contra a humanidade? Por que não promover o boicote activo aos produtos israelitas nos mercados portugueses? Por que não apelar aos trabalhadores dos portos, dos aeroportos e da logística que se neguem a transportar os produtos de e para Israel? Por que não exigir ao Governo que trave o uso da base das Lajes pelos EUA, principais apoiantes dos criminosos nazi-sionistas? Por que não fazer campanha pela recusa de pagar para a Nato, instrumento de guerra norte-americano?


Comentários dos leitores

MANUEL BAPTISTA 21/12/2023, 19:56

Porque Portugal é uma Neo colónia dos EUA, da OTAN e dos países dominantes da UE.
Há décadas que chamo a atenção da nossa esquerda, de que temos que encarar uma LUTA DE LIBERTAÇÃO NACIONAL, exatamente como as ex - colónias portuguesas fizeram. Principiemos por criar as condições para debate sério DENTRO dos grupos e ENTRE os grupos que se consideram de esquerda.

antonio alvao 23/12/2023, 18:37

"Nossa esquerda" (não minha) - "A diferença entre a esquerda e direita dentro do Estado burguês, é que a esquerda disfarça de esquerda mas é de direita também" (Rosangela G. Sousa); a esquerda institucional nada mais é que uma direita envergonhada" (Subcomandante Marcos).
Segundo politologia: a esquerda no Ocidente já há dezenas de anos que se encontra em decadência e tem tendência a desaparecer ideologicamente, colocando-se comodamente no centro-direita, na corrida ao poder, sozinha ou acompanhada.

Esta "esquerda" de socialistas/sociais-democratas e «comunistas» de várias tendências, durante as campanhas eleitorais, nem uma vez só prenunciam as palavras - socialismo e comunismo. Será que extraíram o conteúdo ideológico e fizeram disto um dogma, para atrair mais eleitorado? Os simpatizantes e eventuais eleitores não podem saber o que é o socialismo e o comunismo? Isto não tem nada de revolucionário e tornou-se numa salsicharia ideológica.
Por tudo isto e muito mais, deixei há muito de ser de esquerda, mas não fui para o centro nem para a direita; fui para os debaixo contra os de cima. É na base da pirâmide que é imposto o habitat do pobre e oprimido, escravos e precários. Nesta opção, não existe equívocos ideológicos! Todas as pirâmides estruturais de poder, são fascistas e defensoras da exploração do homem pelo homem; e também do governo do homem pelo homem, umas mais do que outras.

Se me permitem um poema dum político brasileiro: "Pus-me do lado dos índios/e me derrotaram/pus-me do lado dos negros/e me derrotaram/pus-me do lado dos camponeses/e me derrotaram/; mas nunca me pus do lado dos que me venceram/. Esta é a minha vitória". (Darcy Ribeiro).

Adilia Maia 3/1/2024, 18:55

Pois de facto como democracia e capitalismo não combinam tem de se recorrer a hipocrisia mais sabuja; a esquerda pelo menos devia denunciar esta situação mas faz de conta que a democracia, se for reformada, pode conviver com o capitalismo e de facto está mais que visto que não pode.
É preciso urgentemente denunciar que nao vivemos em democracia, vivemos em regimes fraudulentos que com o nosso silencio e a nossa conivência continuam uma existência vegetativa, ligada à maquina eleitoral, que também alimentamos, julgando que votar pode fazer a diferença, quando nao pode, porque a opinião publica é a publicada e nos sabemos quem a publica e quem a forma. Ao menos não nos façamos de tolos!!!


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