Luta da Palestina desperta povos árabes e muçulmanos

Editor / Associação de Amizade Portugal Sahara Ocidental — 8 Dezembro 2023

Manifestação de solidariedade com a Palestina. Rabat, Marrocos, 18 de outubro

A carnificina que Israel leva a cabo na Palestina, em Gaza mas também na Cisjordânia, só é possível pelo apoio político e militar que lhe é dado pelas potências ocidentais – EUA e UE à cabeça. Mas a impunidade de Israel é igualmente facilitada pelo comportamento dúplice dos regimes árabes que o Ocidente, convenientemente, designa de “moderados”.  Marrocos é um destes casos, como denuncia um artigo publicado pela Associação de Amizade Portugal Sahara Ocidental no seu boletim de dezembro.

 

SOPRAM VENTOS DE GUERRA EM MARROCOS

Se no último mês se assistiu a um escalar do conflito militar entre Marrocos e a Frente POLISARIO, correndo em paralelo um processo de rearmamento por parte de Rabat, por outro, forças marroquinas estão envolvidas na faixa de Gaza no conflito entre Israel e a Palestina, com a conivência do poder político de Marrocos. 

Exército saharaui ataca aeroportos militares marroquinos

Quatro décadas após o último ataque, a 5 de Novembro passado, as forças do Exército de Libertação Saharaui (ELS) voltaram a atacar o aeroporto militar situado na região de Smara (no norte do território ocupado), tendo este sido atingido por sete mísseis que causaram relevantes danos estruturais. Por sua vez, a 9 de Novembro, o ELS atacou pela primeira vez outro aeroporto, situado na região vizinha de Mahbes, concretamente na zona de Grair Labouhi.

Estes aeroportos são locais de onde partem os veículos aéreos não tripulados (drones) marroquinos que flagelam regularmente o Sahara Ocidental, tornando-se assim um óbvio alvo de contra-ataque. A operação desenvolvida pelo ELS destinou-se a incapacitar o exército marroquino de atacar e a ganhar liberdade de movimento. Marrocos, por seu lado, manteve-se em silêncio e impediu o acesso às zonas próximas dos ataques, de forma a evitar a divulgação de imagens.

Em paralelo, o Estado-Maior Saharaui, dirigido pelo Presidente da República Árabe Saharaui Democrática (RASD), Brahim Ghali, reuniu-se para discutir os recentes desenvolvimentos, declarando que «o ELS passou do assédio com artilharia, para operações de ataque directo e incursão a posições inimigas». Renovou ainda a advertência de que «todo o Sahara Ocidental, no seu espaço aéreo, terrestre e marítimo, é uma zona de guerra», sublinhando várias operações de incursão, como o raide de Uarkziz no sector de Agha.

Estes ataques representam assim uma escalada na guerra que se desenrola desde Novembro de 2020 (quando Marrocos rompeu o acordo de cessar-fogo), aparentando terem sido realizados com mísseis de grande precisão, lançados a partir de uma zona não identificada.

Alguns analistas, aliás, consideram que a chegada deste novo arsenal obrigará Marrocos a uma resposta ainda mais agressiva no conflito no Sahara Ocidental, que o Secretário-geral da ONU, António Guterres, durante os últimos anos qualificou de «baixa intensidade».

Estas investidas revelam a fragilidade do aparelho militar marroquino, tendo em conta que possuem um muro defensivo de mais de 2.500 km, protegido por campos de minas com largura de 2 km, separando o Sahara Ocidental ocupado da zona livre, e dotado de radares que alegadamente detectam movimentos a 60 km de distância. É também de salientar que os ataques ocorreram em zonas onde os marroquinos seriam aparentemente mais fortes.

Num desenvolvimento posterior, a 16 de Novembro, «pelo menos quatro mísseis atingiram a base militar de Tamegroute, no sul de Marrocos, local onde estão estacionadas tropas do seu exército, junto à fronteira com o Sahara Ocidental». A região de Tamegroute situa-se junto à estância balnear de Irqi, conhecida pela presença permanente de membros da família real do Qatar, o que provocou um impacto acrescido. Refira-se ainda que esta cidade se encontra a mais de 100 km a norte da fronteira entre Marrocos e o Sahara Ocidental e a cerca de 60 km da fronteira com a Argélia. É, por conseguinte, a primeira vez que o ELS visa um alvo tão distante em território marroquino.

Numa aparente resposta, a 18 de Novembro, Marrocos bombardeou dois veículos civis utilizando drones, tendo os ataques ocorrido na aldeia de Z’gula, local onde centenas de saharauis e mauritanos extraem ouro numa mina tradicional. Um dos veículos era privado, de matrícula mauritana e nele viajavam três indivíduos que morreram no ataque. E no dia 19 a Frente POLISARIO reconheceu que um drone marroquino tinha morto 5 dos seus combatentes.

Mercenários marroquinos no cerco à faixa de Gaza

Segundo o relatado pelo jornalista marroquino Ali Lmrabet, «dezenas de mercenários marroquinos já foram mortos ou feitos prisioneiros pela resistência palestiniana», sendo que o jornal espanhol El-Mundo, confirma a presença de fuzileiros espanhóis, albaneses, franceses, indianos, árabes e africanos, recrutados por Telavive, para apoiar as suas tropas na operação terrestre no enclave palestiniano sitiado.

Certamente com o pleno consentimento do Rei de Marrocos, quiçá até com o seu empenho, o alistamento de mercenários marroquinos é confirmado pelo escritor Jacob Cohen, em entrevista ao Algerie patriotique, ao afirmar que «a monarquia marroquina não tem mais nada a recusar ao seu protector e aliado israelita». O mesmo é dito por Mohamed Salem Ould-Salek, antigo ministro dos Negócios Estrangeiros saharaui, que acrescenta existirem desde há muito, «dezenas de conselheiros israelitas nos serviços de informação e no exército marroquino», os quais «determinam a política interna e externa de Marrocos».

«É por isso, aliás, que Marrocos retomou rapidamente as suas relações com Israel. Basta ler a imprensa marroquina, que fala da factura de cerca de 400 milhões de dólares de importações provenientes do Estado judaico. Há uma política (…) de aproximação entre os dois países», observou o actual conselheiro diplomático do presidente Brahim Ghali, acrescentando que «os soldados mais extremistas ao serviço do exército israelita são sefarditas marroquinos».

Segundo o El-Mundo, estes mercenários são recrutados e enviados para o terreno de operações pela Black Shield, uma empresa especializada em segurança privada e vigilância que forma e emprega «agentes de segurança, tratadores de cães e outros perfis.»

Em Junho de 2020, o Algerie patriotique já tinha publicado declarações de quatro antigos altos funcionários da Mossad (serviços secretos israelitas) que revelaram o carácter secreto das relações entre os dois Estados. Estas relações, «muito íntimas», remontam à década de 1960. «Penso que fui o primeiro israelita a sentar-se ao lado do rei de Marrocos [Hassan II], fui eu que iniciei os contactos entre Israel e Marrocos», afirmou Rafi Eitan, chefe de operações da Mossad entre 1950 e 1960. Yossi Alpher, oficial da Mossad entre 1969 e 1981, sublinhou que «foi a Mossad que forjou as relações políticas estratégicas» com o regime de Rabat, confirmando o papel central desempenhado pela agência israelita.

Porém, segundo Driss Ghali, escritor marroquino licenciado em Ciências Políticas, «o ataque do Hamas pôs fim à normalização das relações entre Israel e Marrocos», uma vez que «a população marroquina escolheu o seu lado, sem apoiar o terrorismo». Por outro lado, afirma, «a classe política sabe que Israel é um aliado necessário na estratégia de afirmação do poder do Reino no Magrebe». Para Ghali, a operação levada a cabo pelo Hamas a 7 de Outubro, «virou o tabuleiro de xadrez do Médio Oriente e desferiu um golpe numa das políticas mais valiosas para o reino alauíta: a normalização com Israel. Esta política de aproximação, promissora mas frágil (…) foi varrida pela onda de choque (…) do Hamas», com efeitos colaterais nefastos uma vez que revelou uma «espécie de intoxicação» nos círculos do Makhzen, o qual se considerava «finalmente libertado da sua relação tradicional com a França e a Europa Ocidental». Com um aliado como Israel, Marrocos «já não iria precisar de aceitar a arrogância de Paris».

«O ‘parêntesis encantado’ (…) da normalização com Telavive ‘explodiu’ a 7 de Outubro com a ofensiva do Hamas (…), o qual pôs a nu os seus pontos cegos da [referida] normalização, a começar pelo relegar da causa palestiniana para segundo plano».

Para retomar o rumo com Israel, Rabat precisa que o diferendo palestiniano seja resolvido de forma a pôr em prática «a tese da ‘simultaneidade’ segundo a qual Marrocos pode ser, ao mesmo tempo, o melhor amigo dos palestinianos e o parceiro estratégico dos israelitas. Desde 7 de Outubro, a ilusão da equidistância dissipou-se na poeira das bombas e dos mísseis.»

Não tendo sido convidado a participar no debate sobre a normalização desde o início, o povo marroquino recorreu às «redes sociais para apoiar o Hamas e exprimir a sua rejeição da normalização» e esta «revela-se um objecto frágil (…) tal como o sonho de um dia controlar todo o território do Sahara Ocidental, razão principal da normalização com o Estado hebreu».

Corrida às armas

O rearmamento acelera em Marrocos, enumerando Alonso Palacios [El Debate – Defensa Española] vários factores fundamentais para esse desiderato: «o primeiro é o apoio decisivo dos Estados Unidos e de Israel (…) que deu um impulso a uma política de aquisição de armas à qual, de outro modo, teria sido difícil de aceder. O segundo factor é, evidentemente, a tensão com a Argélia (…) que se agravou nos últimos meses em consequência do conflito do Sahara Ocidental, (…) as hostilidades também se intensificaram com a Frente POLISARIO.

«Em terceiro lugar, o ambicioso programa de armamento tem como objectivo transformar Marrocos na principal potência militar do Magrebe. Um objectivo que afecta directamente a Espanha (…), voltando a pairar a reivindicação perpétua de Marrocos sobre Ceuta e Melilla».

Marrocos aumentou em 4,1% a dotação orçamental de Defesa para 2024, atingindo os 11,3 mil milhões de euros (9,6% do PIB do país), tendo como objectivo «adquirir e manter o equipamento das forças armadas e apoiar o desenvolvimento da indústria da defesa».

Em contraponto, o orçamento geral de Espanha para 2023 inclui «uma dotação para o Ministério da Defesa de 12,8 mil milhões de euros», mais 1,5 milhões de euros do que Marrocos. A comparação não é equivalente, uma vez que, no caso de Espanha, estamos a falar de 2023 em comparação com a previsão de Marrocos para 2024. «Mas é, sem dúvida, ilustrativa do elevado montante que Marrocos está a injectar no sector da defesa. O facto dos dois orçamentos serem similares é algo a ter em conta pelos estrategas militares espanhóis. (…).»

«O projecto de orçamento prevê ainda a criação, em 2024, de 7.000 novos postos de trabalho para funcionários públicos na administração da defesa, o mesmo número dos criados em 2023, sendo já o segundo maior empregador depois do Ministério do Interior (mais 7.944 lugares).»

Note-se também que Marrocos aprovou em 2021, «a lei 10-20 relativa aos materiais e equipamentos de defesa e segurança, que visa desenvolver uma indústria de armamento com a instalação de unidades industriais e o fabrico de armas por operadores marroquinos e com a participação de operadores estrangeiros».

 

Nota do editor

Regimes como o de Marrocos, mas também o do Egipto ou o da Jordânia, claramente alinhados pelas potências ocidentais, enfrentam hoje uma opinião pública hostil que tem manifestado o seu apoio inequívoco à causa palestina. É este confronto que explica a duplicidade destes regimes diante dos crimes de Israel: não podem deixar de condenar em palavras a barbaridade que choca as populações do mundo árabe, que vêem nos palestinos um povo irmão, mas não querem tomar posição prática que faça frente a Israel e aos seus mentores ocidentais. E isso seria possível se, por exemplo, apoiassem as propostas no sentido de cortar os abastecimentos de petróleo a Israel e aos seus apoiantes.

O caso de Marrocos é típico desta duplicidade. A monarquia encabeçada por Mohamed VI (o sétimo monarca mais rico do mundo, segundo a revista Forbes, com uma fortuna de 1.900 milhões de euros, em 2009) estabeleceu, com patrocínio dos EUA, laços políticos estreitos com Israel – que vão até à colaboração militar e de espionagem – mas enfrenta uma população abertamente favorável à Palestina e à sua independência. 

Envolvido na sua própria ocupação colonial (do Sahara Ocidental, desde 1975) o regime marroquino não pode, por isso mesmo, levantar a voz contra a colonização da Palestina pelos sionistas. A ligação entre estes dois factos, que o texto da AAPSO evidencia, ilustra bem a contradição em que o regime se move: uma ditadura que faz da exploração colonial uma forma de enriquecimento das suas elites e de sobrevivência política; e uma população que vê nos direitos dos palestinos a imagem dos seus próprios direitos à liberdade e a uma vida condigna.

O facto de a luta da Palestina contra o sionismo ter saltado para primeiro plano mundial contribui, assim, para despertar nos povos dos demais países árabes e muçulmanos sentimentos de libertação e disposição para lutar que pareciam adormecidos.


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