Santos Silva passa facturas falsas

Urbano de Campos — 3 Dezembro 2023

Lisboa. Pintura mural de apoio à Resistência Palestina

Como se não tivessem bastado as indecorosas declarações do presidente da República ao embaixador da Palestina, veio agora o presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva, segunda figura do Estado, justificar o massacre que Israel leva a cabo em Gaza. Depois de o Governo ter reconhecido a Israel o “direito de defesa” (frase de código para encobrir a tolerância com a ocupação, com o genocídio e com a limpeza étnica), fica completo o quadro da cumplicidade do Estado português com os crimes dos dirigentes sionistas. 

Em entrevista à TSF a 25 de novembro, Santos Silva parecia ter começado bem ao prestar homenagem a Aristides de Sousa Mendes “por salvar pessoas da barbárie nazi”. Quando lhe perguntaram como via as manifestações crescentes de anti-semitismo e de islamofobia, dissertou igualmente dentro da norma: preocupa-o, disse, “todas as concepções e atitudes que negam a dignidade humana”. Moralizou, mesmo: “Nós não podemos negar a dignidade humana a nenhum ser humano. E devemos revoltar-nos sempre que isso acontece”. 

Mas, no concreto, preocupa-se Santos Silva com as palavras dos dirigentes israelitas que classificam os palestinos como “animais”? Vê ele no massacre de Gaza uma negação da dignidade humana? Revolta-se por saber que vinte mil seres humanos palestinos tiveram as vidas ceifadas e dois milhões vagueiam sem rumo? 

Quando a entrevista passou para a situação presente na Palestina, a “nossa” segunda figura não quis reconhecer nas actuais acções dos sionistas de Israel nem a herança da barbárie que um minuto antes condenara, em geral, nem os atentados à dignidade humana que, em geral, o preocupam. O diabo está na descida do geral ao concreto.

Enfatuado, Santos Silva quis mostrar originalidade. Disse ele: “Eu tenho uma posição muito própria neste domínio”. Qual é ela? “Eu acho mesmo que a responsabilidade primeira por tudo o que está a suceder é de uma organização terrorista chamada Hamas”. E, para que não restassem dúvidas nos ouvintes: “Incluindo os mortos em Gaza pelos bombardeamentos israelitas devem ser colocados na factura que devemos passar ao Hamas”. 

Tamanhas declarações, que nenhum outro órgão do Estado tinha proferido, são de uma indignidade absoluta, mas sem qualquer originalidade. Santos Silva prestou-se apenas a repetir o lixo oratório dos dirigentes israelitas, igualando-os, e fez disso a posição de um representante cimeiro do Estado português. Na lógica do que foi dito, é lícito presumir que, na opinião “muito própria” de Santos Silva, Israel pode matar à vontade, que a factura dos crimes que cometer nunca lhe será apresentada.

Talvez espantado, o entrevistador lembrou a ocupação da Palestina por Israel: “Tudo isso não poderia ser diferente se não houvesse uma ocupação?”. A resposta, igual à de Marcelo e à do Governo, adivinhava-se: “Esse facto em nada justifica o terrorismo”. Ou seja, uma ocupação com 75 anos não conta, matar 1.200 israelitas é terrorismo, matar 20 mil palestinos não é terrorismo.

Quanto mais não fosse pela posição que ocupa, o presidente da AR devia ter em conta que as Nações Unidas não classificam o Hamas como organização terrorista, porque a maioria dos países do mundo assim não o considera. Quem o faz, além de Israel, são os suspeitos do costume: EUA, UE, Nato e apêndices.

Santos Silva devia ter em conta que a Carta das Nações Unidas, a que Portugal deve obediência, reconhece o direito das nações oprimidas a revoltarem-se, incluindo pela força armada. Mas, como isso não agrada aos seus mandantes, é pela voz destes, e não por princípios políticos, que o Estado português se rege, como fazem os lacaios diligentes.

Será que os “compromissos internacionais” do Estado (argumento-muleta a que sempre recorrem os fracos de espírito) obriga os dirigentes portugueses a fazer fila atrás dos EUA, da UE ou da Nato? A prática tem sido essa, desde a invasão do Iraque à guerra na Ucrânia. Mas há exemplos em sentido contrário que os dirigentes portugueses poderiam seguir se para isso tivessem coragem. 

A Turquia, membro da Nato, opôs-se à invasão do Iraque, não afina pelo diapasão ocidental a respeito da Ucrânia e denuncia os crimes de Israel com palavras fortes. A Espanha, membro da Nato e da UE, condenou recentemente Israel pelos massacres que está a cometer e ameaçou reconhecer o Estado da Palestina, unilateralmente se necessário for. Não é preciso ir muito longe para evidenciar o que falta dentro das calças dos dirigentes portugueses.

São estes os “personagens do assombro” – saídos dos versos de Natália Correia para a realidade – que nos governam. Bastaria eles verem o que as pessoas comuns vêem. Verem nos corpos dos palestinos massacrados em Gaza e na Cisjordânia, as figuras dos judeus insurrectos do gueto de Varsóvia. Verem na população palestina cercada em Gaza, os prisioneiros dos campos de concentração nazis. Verem nas abjectas declarações de vingança dos dirigentes israelitas, o desprezo e a sanha de sangue que os apaniguados de Hitler alimentaram na população alemã contra os povos (todos os outros) que consideravam “inferiores” e por isso indignos de existirem. Verem nos planos israelitas de expulsar da Palestina a população árabe, o sonho nazi de uma raça pura e exclusiva.

Bastaria Santos Silva, que gosta de exibir erudição, dar ouvidos à canção de José Mário Branco “Shalom Palestina” e atentar só nestes versos amargos que se repetem como marteladas: “Shalom Palestina / Verga a tua espinha / Agora é a nossa vez / Tem paciência, mas agora é a tua vez”. 

Aqui deixamos a letra e a canção na voz de José Mário Branco para quem as saiba apreciar.

 

Shalom Palestina

(Carta a Hannah Arendt)

Letra e música de José Mário Branco

 

Viva a Terra Santa

Viva a Terra Prometida

Chão sagrado

Chão amado

Chão perdido e depois reconquistado

Foi o êxodo final que se acabou

Foi a solução final, que afinal já se encontrou

E está aqui p’rò que der e vier

Eis a nova diáspora de quem já pagou

Já pagou e tornou a pagar todo o mal que ficou por fazer

 

Shalom Palestina

Verga a tua espinha

Agora é a nossa vez

Agora é a tua vez

Shalom Palestina

 

Viva a Terra Santa

Viva a Terra Prometida

Chão amado

Chão pequeno

Chão estreito, mas que vai sendo alargado

Cada povo tem o seu tempo e o seu espaço marcado

O seu espaço vital, o seu anschluss fatal

E é à força, p’la força que ele há-de passar

Povo eleito há só um, não estava aqui nenhum

E aqui há-de ficar, quem foi o brincalhão que chegou a pensar

Em Madagascar

 

Shalom Palestina

Verga a tua espinha

Agora é a nossa vez

Desculpa, mas agora é a tua vez

Shalom Palestina

 

Viva a Terra Santa

Viva a Terra Prometida

Prometida

Se nos foi prometida

É porque era devida

Está no livro, está tudo no livro, nem sequer sabes ler

Mas vais ter que aprender, mas vais ter que saber

Porque a gente também aprendeu a esquecer

Desde Gaza a Beirute, do Jordão ao Sinai

Já está tudo esquecido, já está tudo aprendido,

E ficamos aqui,

E tu morres aqui,

E daqui ninguém sai

 

Shalom Palestina

Verga a tua espinha

Agora é a nossa vez

Tem paciência, mas agora é a tua vez

 

Shalom Palestina

Shalom Palestina

Shalom Palestina

 


Comentários dos leitores

MANUEL BAPTISTA 6/12/2023, 11:37

A criminalidade do governo e sionistas de Israel estão for de dúvida, a sua responsabilidade no genocídio da população civil de Gaza.
Mas, isto não significa que ponhamos vendas nos olhos em relação ao papel do Hamas:

O Qatar, mais que protetor do Hamas, leia o artigo esclarecedor de Thierry Meyssan

https://www.voltairenet.org/article220094.html

Adilia Maia 8/12/2023, 9:26

Ótimo texto e obrigada por nos lembrar uma voz lúcida que há muito muito tempo percebeu a questão, sem colocar adversativas. O que se está a passar é crime pavoroso, devia ser condenado por todas as pessoas de bem, sem adversativas como as colocadas por esses dois acima referidos que para mim nao merecem qualquer desculpa.
Para começo de conversa, o Hamas nem sequer é reconhecido como organização terrorista pela ONU, mas claro que esta nao apita nada, é apenas uma voz incomoda. Nas antigas colónias portuguesas os revoltosos também eram apelidados de terroristas mas parece que muitas pessoas já esqueceram essa realidade e acham correto lembrar que o estado de Israel tem justificação para fazer o que esta a fazer e passar incólume pelos pingos bem grossos da chuva.
Obrigada mais uma vez pelo seu precioso texto e canções que fui revisitar.


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