Deixem falar o Marcelo…

Terão sido os gregos os primeiros a dizer que a palavra foi dada ao homem para ele poder esconder o pensamento. No caso de Marcelo Rebelo de Sousa sucede o contrário: a sua verborreia e ânsia de palco são um insubstituível e precioso revelador do que lhe vai na alma.

Na esclarecedora conversa que teve com o representante diplomático da Palestina em Portugal, Marcelo desprezou soberanamente os argumentos do interlocutor. Fez tábua rasa de todo o antecedente de repressão, espoliação de território, apartheid, etc. a que a operação de 7 de outubro deu resposta militar. Mostrou que o pretexto da “legítima resposta” de Israel prevalece no seu espírito sobre a acção genocidária que está em curso. 

Para ele, a ocupação e os milhares de mortos palestinos são “outra coisa” que não belisca os “direitos” de Israel, mesmo se Israel é um estado pária à luz do direito internacional. A Palestina, acha ele, só merece a independência se os palestinos, massacrados por Israel, forem, ainda assim, “exemplo de moderação”.

Tudo isto junto faz um programa político.

Seria, talvez, de esperar que o presidente da República fosse mais contido nas palavras por mera conveniência diplomática, assim dando razão ao aforismo dos gregos. Mas, sabendo nós o que a casa gasta, não seria de esperar que o cidadão MRS – filho do regime fascista-colonialista, reconvertido em democrata da noite para o dia por imperiosa urgência – viesse de boa mente defender o direito dos palestinos a serem livres e independentes, da mesma maneira que não reconheceu na altura própria o direito dos povos colonizados pelo regime de que ele foi beneficiário até à vigésima quinta hora.

No espírito de MRS, o velho reflexo colonialista sobrepôs-se, como um tique irreprimível, à contenção que o protocolo exige ao chefe do Estado. Marcelo achou-se no direito de falar ao representante de um povo que está a ser trucidado à bomba como um mestre-escola que, do cimo do estrado, dá lições de bom comportamento a um aluno irreverente. Ou como um cantineiro que resolve admoestar um contratado.

Em situações críticas, a incontinência revela Marcelo. Quando veio a público a denúncia dos abusos sexuais na Igreja, MRS fez coro com a hierarquia católica a tentar desvalorizar o assunto para o abafar, usando os argumentos mais indecorosos. Meteu depois os pés pelas mãos a dar o dito por não dito, mas todos percebemos o que lhe ia no propósito quando resolveu abrir a boca na pressa de travar o escândalo. O mesmo se deu agora.

No significativo episódio do Bazar Diplomático, MRS mostrou-se como verdadeiro mentor da direita portuguesa. No fundo, pormenores à parte, revê-se na atitude do Chega e da Iniciativa Liberal quando se insurgiram contra as declarações (de mínima justiça) proferidas por António Guterres na ONU e fizeram coro com Israel.

Não, as palavras de MRS não “envergonham Portugal”, como pretende Mariana Mortágua. Não, as palavras de MRS não foram “infelizes”, como brandamente disse Paulo Raimundo. Ao contrário, elas retratam a direita portuguesa e mostram a distância que separa as instituições do sentimento popular de espontânea solidariedade com a Palestina que se tem manifestado nas ruas.

Em vez de tentarem moderar MRS, ou chamá-lo à razão, ou confiná-lo ao protocolo – deixem-no falar à vontade para que se perceba quem está no trono de Belém e o que há a esperar do poder a que ele dá corpo e voz.