Quem com ferros mata

Urbano de Campos — 11 Setembro 2023

50 anos depois, os familiares continuam à procura dos mortos. Esta foto é de 1989, no deserto de Atacama, onde há inúmeras valas comuns

11 de setembro de 1973, Chile. O general Pinochet chefia um golpe de Estado que derruba o regime democrático presidido por Salvador Allende, líder da Unidade Popular. O Chile vivia desde 1970 um movimento de massas que ameaçava os poderes da burguesia doméstica e os interesses dos monopólios imperialistas, com os EUA à cabeça. Como homem de mão dos serviços secretos norte-americanos, Pinochet implantou uma das ditaduras mais sanguinárias dos tempos modernos e ensaiou uma das primeiras experiências do que viria a chamar-se o neoliberalismo económico.

Milhares de oposicionistas (comunistas, socialistas, democratas) foram presos, torturados e assassinados pelos processos mais bárbaros. Quanto à economia, o ensaio consistiu numa coisa simples: cortar as pernas ao movimento operário e popular, nenhum direito concedido ao Trabalho, livre curso aos desmandos do Capital. O Chile padece ainda hoje da pobreza e do descalabro económico e social desta “experiência” de capital à solta. 

O imperialismo norte-americano repetiu o processo na Argentina em 1976 pela mão do general Videla. O Brasil estava sob ditadura militar desde 1964. As três ditaduras combinadas tentaram levar a cabo uma verdadeira limpeza política e social, não longe dos métodos do nazismo: eliminar de vez toda a esquerda, toda a oposição, todos os suspeitos de qualquer coisa. Henry Kissinger, então secretário de Estado de Nixon e de Ford, aconselhou os golpistas argentinos a eliminar rapidamente os opositores antes que se levantassem clamores sobre violação de direitos humanos.

A Operação Condor, iniciada em 1975, conduzida pelas forças militares e policiais dos três países sob orientação dos EUA, prendeu, fez desaparecer e assassinou milhares de pessoas: opositores políticos, sindicalistas, activistas do movimento popular. Os números, embora incertos, são brutais: possivelmente 50 mil mortos, 30 mil desaparecidos, 400 mil presos. Muitos deles, metidos em aviões e atirados ao mar.

Apesar dos anos negros, de 1973 a 1990, o festim fascista foi curto à escala da história. Hoje, os povos da América do Sul levantam a cabeça. As lutas de classes internas intensificam-se, os direitos operários e populares vão sendo reerguidos e, muitas vezes, defendidos nas ruas. Os regimes políticos vão reflectindo ou vão sofrendo os embates da acção de milhões de trabalhadores. O alvo clarifica-se: o imperialismo norte-americano e as burguesias internas que o servem.

11 de setembro de 2001, EUA. Pela primeira vez, o território norte-americano é atacado num acto de retaliação de grande envergadura. Uma conspiração ainda hoje obscura na sua origem atingiu o centro de Nova Iorque e o Pentágono: quase 3 mil mortos. Os EUA não são inexpugnáveis, como se julgaria. 

A resposta, pode hoje ver-se, foi desesperada. A campanha contra o “terrorismo” e os “estados pária” constituiu uma cobertura de curto alcance para a última tentativa do imperialismo norte-americano de manietar o mundo à mão armada. O Afeganistão, o Iraque, depois a Líbia e a Síria são hoje claramente vistos como derrotas. A guerra promovida através da Nato no território da Ucrânia está perdida. Nem pelas armas, nem pelas sanções, muito menos pela diplomacia, pela política ou pelo poder económico, os EUA conseguem impor a sua lei como antes impunham. Os aliados que ainda se submetem às suas pressões, como a UE, não se sabe por quanto tempo o poderão fazer, mas sabe-se que pagam esta derradeira aventura com a ruína.

O ataque de 11 de setembro de 2001 deu uma imagem da vulnerabilidade norte-americana, do tigre de papel de que, muito antes, falava Mao Tsetung. Mas a verdadeira desforra do 11 de setembro de 1973 e de todos os golpes, massacres e espoliações praticados pelo imperialismo está a ser conseguida pelos povos que encaram as suas lutas, com as suas forças próprias, como o único caminho a seguir. Aos poucos, vai-se abrindo, por todos os continentes, uma via política: o poder norte-americano é a primeira barreira que separa os trabalhadores e os povos da liberdade e do progresso — é preciso derrubá-lo. Os escombros das Twin Towers são apenas um sinal premonitório.


Comentários dos leitores

leonel l. clérigo 17/9/2023, 13:04

O CHILE e a "DEMOCRACIA" OCIDENTAL

Quem lê, uma vez por outras, a nossa "gloriosa" imprensa de "massas", poderá ter tido a sorte de encontrar algumas referências a um acontecimento que Urbano Campos dedicou acima no seu "Quem com ferros mata": o Golpe de Estado de 11 de Setembro de 1973 no CHILE, uma "obra-prima" do "democrata-ocidental" general Augusto PINOCHET.

As intenções do nosso general - "intenções" que bem conhecemos pela nossa larga experiência - eram óptimas: "DESENVOLVER o PAÍS" - o CHILE - "modernizando-o". Mas é preciso que se diga que as ambições de PINOCHET não se circunscreviam apenas ao seu PAÍS apesar, talvez, de ele nem o saber: eram PLANETÁRIAS ou seja, ele ambicionava ser um "PIONEIRO do desenvolvimentismo", fazer de todo o PLANETA uma espécie de CHILE MODERNO. E como seria isso possível? Não era coisa tão difícil como se pode supor à primeira vista: haviam razões de peso para isso que vale recordar.

1 - Recuemos no tempo para melhor se poder entender a coisa.
Logo a seguir ao final da Guerra de 39/45, o "peso" da conversa DEMOCRÁTICA levou a ONU a criar COMISSÕES para o DESENVOLVIMENTO dos Países "atrasados". E assim, foi criada na América Latina - precisamente com sede em SANTIAGO do CHILE - a CEPAL - Comissão Económica para América Latina e Caribe.
À frente dela ficou um homem que acabou por incomodar muita "boa" e "democrática" gente: o intelectual argentino RAÚL PREBISCH. E que disse ele?
Baseado numa evidência - dos que tinham há muito os olhos abertos para os DRAMAS passados em toda a AMÉRICA LATINA - avançou com um conjunto de IDEIAS que saíam fora da LENGALENGA da "ANÁLISE" que era comum na ECONOMIA BEM-PENSANTE do CAPITALISMO UNIVERSITÁRIO dos PAÍSES CENTRAIS e que se pode resumir popularmente e sem anglicismos opacos: ANDAM a EXPLORAR-NOS ATÉ ao TUTANO...e a GENTE CALADINHOS a VER.
Não é difícil imaginar que a partir de PREBISCH e como se costuma dizer, irá surgir e desenvolver-se um novo PARADIGMA que irá contar com um conjunto de INTELECTUAIS de CUMEADA LATINO-AMERICANOS e centrar-se sobretudo no DESENVOLVIMENTO DESIGUAL, SUBDESENVOLVIMENTO, DEPENDÊNCIA/INDEPENDÊNCIA NACIONAL, DETERIORAÇÃO dos TERMOS de TROCA/TROCA DESIGUAL, EXPLORAÇÃO dos PAÍSES POBRES pelos RICOS...construindo um "arcaboiço" TEÓRICO para se poder decifrar e combater não só a lengalenga inútil do PIB do ECONOMÊS como e principalmente, as ORIGENS do famoso e persistente "ATRASO", assim como a maneira de o ELIMINAR. (1)
Escusado será dizer que estas ideias depressa se difundiram representando um "PERIGO" para os poucos que se beneficiam da EXPLORAÇÃO dos SUBDESENVOLVIDOS. Mas não nos devemos admirar disso: há já uns séculos atrás que o nosso Padre ANTÓNIO VIEIRA - e antes dele BARTOLOMEU de LAS CASAS - apontavam o dedo a coisas "semelhantes" com origem na "EXPLORAÇÃO ESCRAVA do TRABALHO". Quem se diz CATÓLICO e de BONS SENTIMENTOS não deixará isto de o incomodar. Sobretudo porque já não pode invocar "desconhecimento", tal como no pós-VIEIRA. Os dados estão lançados como os das "alterações climáticas".

2 - Continuando...
Há cerca de meio século atrás, a Universidade de Chicago era, mundialmente, uma ilustre desconhecida. Sabia-se que ficava na "Região dos Grandes Lagos" e dispunha, para alguns, de um bom conjunto de peças de Arquitectura como a célebre Johnson's Wax do grande Mestre da Arquitectura Estadunidense Frank Lloyd Wrigth.
Mas no início dos últimos anos 70 - quando se torna claro que o Estado do Bem-Estar Keynesiano "pifara" com o fim do "dinamismo" trazido pela "reconstrução dos desastres de guerra" de 39/45 e o "tocar das campainhas" do Maio de 68 - a coisa vai mudar: uma plêiade de ECONOMISTAS de inspiração LIBERAL tipo Austríaca/Salamanca - tendo à frente os notáveis George Stigler e Milton Friedman, cada um deles detentor do prémio Nobel da Economia - entra em cena e oferece de mão-beijada ao CAPITALISMO uma "Visão" de cariz RENTISTA e OCIOSA - da conveniência do IMPÉRIO - que já estava presente na crítica de BUKHARIN a Böhm-Bawerk na década de 10 do século passado: " A ECONOMIA POLÍTICA do RENTISTA".
De facto a partir daí tudo parece indicar que, no CAPITALISMO, o "FAZER COISAS" irá encontrar um substituto na "EMISSÃO de PAPEL". A fracção do CAPITAL INDUSTRIAL perde assim peso e seu velho Poder de "quem faz COISAS" irá ser ocupado pela FRACÇÃO FINANCEIRA de quem faz "PAPEL". Pode-se assim confirmar que uma desgraça nunca vem só.

3 - Não custa então entender a Movimentação NEOLIBERAL que se dá - a ferro e fogo - nos anos 70. E será precisamente no CHILE de PINOCHET que ela irá ter o seu primeiro TESTE de VIDA.
É claro que uma MOVIMENTAÇÃO deste calibre que "mexe" com todo um IMPÉRIO MUNDIAL é OBRA de ENVERGADURA. E pedindo de empréstimo a Churchill de modo a caracterizá-lo, há que falar em "SANGUE, SUOR e LÁGRIMAS".
O CHILE ainda vai ter muito que revelar. E os "Democratas ocidentais" carpirem muitas lágrimas de crocodilo.

(1) - Nascida Portuguesa da Anadia, a ilustre autora e professora de Economia Política MARIA da CONCEIÇÃO TAVARES, naturalizada Brasileira e perseguida pelo fascismo de Salazar, faz parte deste conjunto de intelectuais de vanguarda Latino-Americanos. Contudo, ela própria e sua obra ainda não tiveram, entre nós, as honras que lhe são devidas enquanto por aí andam borra-botas a massacrar a cabeça ao Tuga. Talvez isto ajude a perceber a pobreza intelectual e sectária de quem vem governando este pobre e analfabeto País.


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