A esquerda perante os BRICS

Manuel Raposo — 4 Setembro 2023

Milhões de trabalhadores serão trazidos para o terreno da luta de classes na sua feição mais moderna, a do confronto pleno com o capitalismo

Não tendo podido travar a expansão dos BRICS e o crescente prestígio que a organização ganhou no mundo dependente e periférico, o Ocidente tem tentado diminuí-la através de propaganda negativa, de omissões, ou do habitual anedotário noticioso. A denúncia destas jogadas importa para clarificar o que está em jogo, como faz o artigo de Rui Lourido que antes publicámos. Mas é também indispensável que a esquerda reflicta sobre as responsabilidades políticas que sobre ela recaem numa época em que o mundo se transforma de forma evidente. Que tarefas cabem à esquerda anti-imperialista e anti-capitalista nestas circunstâncias?

Uma espinha na garganta

A cimeira de Joanesburgo incomodou vivamente os centros de decisão ocidentais que viram nela uma confirmação do isolamento a que vão sendo votados pelo resto do mundo. Não admira que o encontro tenha mesmo sido alvo de tentativas de sabotagem, é esse o nome a dar às manobras postas em marcha. 

Primeiro, foi a “condenação” de Putin, encomendada pelos países ocidentais ao manipulável Tribunal Penal Internacional, de forma a comprometer a sua presença na África do Sul, como de facto aconteceu. Depois, foi a tentativa canhestra do presidente francês Emmanuel Macron de se fazer convidado da cimeira, na ideia de meter um cavalo de Tróia em Joanesburgo, jogada claramente recusada pelos organizadores. Finalmente, o Ocidente silenciou os aspectos mais relevantes da reunião e o seu inegável êxito e procurou intrigar sobre supostas disputas de liderança entre a Rússia, a China e a Índia.

Tudo isto mostra que o ocidente imperialista não consegue jogar (nunca o fez!) no mesmo tabuleiro em que hoje jogam as potências emergentes: o do relacionamento económico baseado em vantagens mútuas e o do relacionamento político assente nas respectivas soberanias. 

Reflexos colonialistas de sempre têm oposição geral

As tentativas do Ocidente de se impor pela força, pela intriga ou pela sabotagem (de que a arma das sanções é o exemplo mais acabado), insistindo nas relações de natureza colonialista e imperialista, até recentemente mantidas sem obstáculos — essas tentativas vão hoje fracassando porque defrontam potências com larga capacidade económica, capazes de se defenderem por todos os meios e dispostas a garantirem defesa aos aliados. 

Para além do confronto económico e da criação de novas instituições internacionais, as manobras militares conjuntas de diversos países na África do Sul, no Pacífico, no Golfo Pérsico ou na Ásia Central dão sinal da determinação daqueles países de não se deixarem intimidar pelo potentado americano-europeu-japonês, seja na forma Nato, seja na de outras designações recentes.

A importância do actual BRICS alargado pode medir-se por vários aspectos que se afiguram decisivos: 1) um amplo intercâmbio comercial, cultural e militar entre os seus membros; 2) o estabelecimento de regras de colaboração na base de ganhos comuns entre países de todos os continentes; 3) uma aposta no desenvolvimento próprio de cada país, nomeadamente na criação de infraestruturas (o que permitirá encarar um crescimento fundamentado e de longo curso, quebrando o ciclo de dependência centrado na exploração de matérias primas e produtos de baixo valor); 4) a criação de meios próprios de pagamento nas trocas comerciais entre os países membros e de meios de financiamento que prescindam do dólar e das instituições imperialistas em que os EUA assentaram a sua dominação (ameaçando corroer a renda colossal que a hegemonia do dólar proporciona ao imperialismo norte-americano). 

Neste último aspecto, é bom lembrar, como fez recentemente o economista Michael Hudson, a ligação directa entre o dólar e o militarismo ianque. O orçamento militar dos EUA, astronómico e sempre crescente, é a parte de leão da gigantesca dívida norte-americana ao resto do mundo, e esta dívida, por sua vez, é sustentada pela dominação do dólar. As mais de 800 bases militares dos EUA espalhadas pelo mundo são assim pagas pelos Títulos do Tesouro comprados com dólares pelos países que os EUA ameaçam! E acrescentava Michael Hudson: retirem ao dólar a sua preponderância mundial e estarão a reduzir drasticamente o orçamento militar dos EUA. (Entrevista à Sputnik News, “De-dollarization is remedy against US militarism”, 9 junho 2023)

Há mais entre o céu e a terra

A evolução do mundo de que os BRICS são exemplo reveste-se de extrema importância porque aponta para o enfraquecimento em bloco do imperialismo ocidental, dominante nos últimos 80 anos, para não ir mais atrás. 

É este aspecto que suscita, com razão, o apoio e até a esperança das forças de esquerda, anti-imperialistas e anti-capitalistas, também nos países ocidentais. Esboça-se, de facto, uma mudança nos pratos da balança mundial como não se via (guardadas as devidas distâncias) desde a vitória da revolução chinesa em 1949. Mas isto não é tudo.

Só por si, este movimento não altera as relações de classes em cada país envolvido na transformação, ou no mundo como um todo. Para já, as mesmas classes dominantes continuam no poder; os processos capitalistas de desenvolvimento permanecem nos seus aspectos básicos; o reaccionarismo de diversos regimes políticos não se apaga. Umas e outros podem até ficar, no imediato, mais “legitimados” aos olhos das populações, na medida em que se verifiquem progressos significativos nos países em causa (até agora travados pela hegemonia dos monopólios e instituições imperialistas) e na medida em que os povos sintam melhorias nas suas condições de vida. 

Há, contudo, um factor revolucionário objectivo neste processo: milhões de trabalhadores, proletarizados, serão trazidos para o terreno da luta de classes na sua feição mais moderna — a do confronto pleno com o capitalismo, proporcionando uma clarificação dos distintos interesses de classe em presença. Essas massas tenderão a ser mais instruídas, reclamarão novos direitos, perceberão o valor da solidariedade de classe.

Por isso mesmo, o progresso maior que esta evolução pode proporcionar será o que venha a resultar de uma tomada de consciência por parte das classes trabalhadoras dos seus interesses próprios — não ao arrasto e em consonância com as ambições próprias das burguesias nacionais que tentam afirmar-se ou ganhar mais poder neste processo, mas sim de forma independente e em disputa com os interesses de classe dessas burguesias.

Como enfrentar o mundo em mudança?

Neste sentido, o caminho que se pode abrir em resultado do declínio do imperialismo ocidental exige das massas trabalhadoras do designado Sul Global uma organização e uma tomada de consciência dos seus direitos como classes proletárias que as dote de meios (ideologia, programa político, organização) para fazer frente às suas próprias burguesias, nas condições concretas das respectivas lutas sociais, internas e internacionais. 

Do mesmo modo, o momento exige da massa trabalhadora dos países desenvolvidos e imperialistas uma solidariedade prática, de igual para igual, com os trabalhadores do resto do mundo que procuram libertar-se e progredir. Ao contrário, é preciso que se diga, do que até agora se passa com a posição colaborante com os desígnios das burguesias imperialistas (mesmo que seja por indiferença) por parte das populações do mundo desenvolvido, nomeadamente da Europa — como se pode ver a respeito da guerra na Ucrânia, das sanções à Rússia, à Venezuela ou a Cuba, das ameaças à China, ao Irão ou à Coreia do Norte, e das tentativas de desacreditar o progresso dos BRICS ou qualquer iniciativa de independência vinda da parte dos países que o imperialismo tem submetido. 

Mas, como mostra a experiência portuguesa das guerras coloniais, longas de treze anos, o tempo joga a favor de quem, contando com as próprias forças, aposta em libertar-se e progredir.

Do nosso ponto de vista, levar por diante tal tarefa exige reerguer o movimento comunista (que hoje não existe enquanto movimento), em cada país e internacionalmente, apontando-o para os objectivos revolucionários que o momento reclama: afundar o imperialismo da tríade EUA-UE-Japão, apoiar os movimentos dos países dependentes e periféricos no sentido de se libertarem da tutela imperialista, contribuir para diferenciar os interesses de classe em confronto no curso desses movimentos, estimular e organizar a independência política dos proletários no processo de luta contra o capitalismo. 


Comentários dos leitores

Mário Tomé 4/9/2023, 17:54

Bom artigo na sequência do artigo esclarecedor do Rui Lorido.
Mas mantém-se uma questão, uma pecha ou mesmo um fetiche: a ideologia. O movimento socialista foi liquidado pela ideologia "comunista". A ideologia tem uma essência totalizante e sectária. Tens a resposta antes da pergunta, A base do pensamento e da acção revolucionários do proletariado é a ciência que enquanto ciência social e na fase do capitalismo e do imperialismo foi fixada nas suas bases estruturantes pela crítica da economia política de Marx e pela obra fundamental e central que é «O Capital» e que no desenvolvimento histórico dialéctico só pode ter como base o método científico que Marx seguiu.
O proletariado precisa de conhecimento teórico, empírico e histórico, baseado no seu desenvolvimento intelectual e na unidade na luta, como apontava Marx citado por Engels que gostava de sublinhar " não há princípios, o que há é conclusões". O proletariado precisa de um programa, sempre questionável e criticável a partir da realidade concreta, A ideologia é a grande arma do capitalismo porque esconde a realidade e proclama verdades fundamentadas na existência que ele próprio impõe com carácter definitivo. A ideologia é o contrário da revolução .
A história mostrou implacavelmente que a(s) ideologia(s) estiveram na base da derrota da Revolução. Como é natural dado que em última análise são um produto do idealismo e da metafísica.
Abraço meu caro Manuel Raposo

adilia mesquita 6/9/2023, 9:24

O texto é Bom e o comentário do Mário Tomé muito interessante até porque os tópicos que levanta não costumam fazer parte atualmente do debate político, provavelmente por motivo da ignorância dos líderes políticos, nomeadamente de esquerda, o que é gravíssimo, mas infelizmente não parece suscitar grande escândalo.
Quando alguém pretende transmitir uma visão de esquerda - e não estou a pensar no centro esquerda nem na chamada esquerda liberal - tem de recorrer para a análise do fenómeno em questão ao materialismo histórico- dialético, de outra maneira - a menos que, como acontece com o Monsieur Jourdain de Molière, faça prosa sem o saber - vai equivocar-se. Assim, impõe-se que a esquerda como M.T. sugere, revisite Marx e o marxismo. Dá trabalho? Dá. É difícil? É. Mas não há outro caminho.
Quanto à derrota da Revolução, discordo. Penso que o que a derrotou foram uma série de fatores causais de entre os quais o cerco do capitalismo triunfante, no seguimento da segunda guerra mundial, me parece ter sido o prevalecente.
Quanto à ideologia, enquanto ‘representação imaginária de uma existência real’, julgo que é um elemento indispensável da análise, e a sua utilização é incontornável, só que há que estar alerta para os objetivos que a sua formulação almeja alcançar. Quer dizer há ideologias e ideologias… De resto, como M.T. deve saber mesmo a ciência convive com a ideologia, isso de objetividade absoluta, de não interferência das subjetividades é um mito. O que a ciência procura fazer é limitar, recorrendo ao método científico, na medida do possível, a interferência ideológica.
Cordiais saudações

leonel l. clérigo 6/9/2023, 11:29

TAREFAS das CLASSES TRABALHADORAS PORTUGUESAS

Maus tempos vão cair sobre as Classes TRABALHADORAS Portuguesas.
E a "Margem Sul" que não se iluda: uma das "grandes Empresas Industriais" - a AUTOEUROPA, dita até "responsável por parte considerável do célebre PIB Luso" - está em "apuros", coisa que pouco tem a ver com as noticiadas "alterações climáticas" que provocaram as "chuvadas" na Eslovénia mas, muito mais, com a CRISE que vem afectando a Indústria Alemã, sobretudo o seu ramo Automóvel.

1 - De facto, há que ter CONSCIÊNCIA que Portugal não é um País INDUSTRIAL - nem nunca o foi a não ser no "paleio" dos aldrabões... - e a Autoeuropa segue a "regra geral" das outras INDÚSTRIAS do RAMO mais as que não o são. São indústrias ditas, entre a gente Experiente do Terceiro Mundo, PARAQUEDISTAS ou seja: caem de "para-quedas", esfolam enquanto lhes convém a "mão-de-obra barata" para, de seguida, levantarem voo procurando outras "paisagens" SUBDESENVOLVIDAS onde o LUCRO é - como dizem os CAPITALISTAS - mais "interessante". Os nossos "liberais" conhecem este "truque" como ninguém...

2 - É costume dizer-se "quem boa cama fizer nela se deitará". E tudo indica que isso parece aplicar-se às Classes Trabalhadoras Portuguesas, pouco dadas a REFLETIREM sobre a seu DESTINO e a tomar resoluções sobre o "Que fazer?"
Há quem diga que o DISCURSO de Paulo RAIMUNDO na "Festa do Avante" pode ter o condão de alterar - como se diz no Alentejo" - a "pasmacera" habitual que faz os encantos da nossa BURGUESIA INSÍPIDA e sem FUTURO.
A ver vamos se nos chega também uma ALTERNATIVA com pés e cabeça POLÍTICA e não somente a continuidade das propostas "sindicaleiras" ao sabor das "grandes convulsões" do dia-a-dia.

leonel l. clérigo 7/9/2023, 11:52

CLASSES SOCIAIS e IDEOLOGIA

Como qualquer Concepção do Mundo, julgo que a Concepção de MARX não foi construída de chofre: tal como suas "lacunas" iniciais sobre a "recolha da lenha" pelos camponeses alemães o fizeram recolher ao gabinete de trabalho, a sua vida foi uma constante "recolha". Daí, o desenvolvimento da sua maneira de ver as coisas nunca "estacionar", tal como os diferentes "pontos de chagada" que vão marcando a solidez do seu pensamento.

Julgo que para se entender o que para Marx é a IDEOLOGIA, há que ter necessariamente presente a DIVISÃO da SOCIEDADE em CLASSES SOCIAIS, um dos aspectos decisivos para se entender TODA a CONCEPÇÃO do MUNDO MARXISTA. Sem isso, nada feito e, no "caso concreto" do conceito de IDEOLOGIA, perde-se seu FUNDAMENTO se não se meter ao barulho a GUERRA de CLASSES. E é curto arrumá-la na "falsa consciência".

Assim sendo, julgo não se poder "falar" de IDEOLOGIA - no sentido de MARX - sem a LIGAR intimamente aos INTERESSES de CLASSE dos diferentes Grupos e CLASSES SOCIAIS. Daqui, ser a Ideologia questão essencial para se compreender o CONTEÚDO desses diferentes Interesses de CLASSE numa Formação SOCIAL concreta e, naturalmente, esclarecedora da POSIÇÃO de cada uma na GUERRA que travam, mesmo sem disso terem consciência.

Jogar a IDEOLOGIA, sem mais, no caixote do lixo e como o faz o companheiro Mário Tomé, parece-me inadequado. É perder um elemento "precioso" para a compreensão da realidade onde estamos metidos, quer queiramos ou não. E talvez por isso, nunca a nossa SOCIEDADE se permitiu dispor duma correcta ANÁLISE de CLASSES, apesar do "bem vindo" esforço salutar de algumas tentativas.


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