JMJ: um encontro de bons espíritos

Manuel Raposo — 11 Agosto 2023

Abusos: um assunto que a Igreja quer tratar à porta fechada

Mesmo os que hoje se dizem não crentes ou ateus fizeram coro com os prosélitos da Igreja Católica nos elogios rasgados ao “êxito” da Jornada Mundial da Juventude. Personagens como João Soares (que alardeia ser ateu, republicano e socialista), ou Marcelo Rebelo de Sousa (que exibe a sua condição de fiel católico e não pode esconder o passado fascista e colonialista) coincidiram, babados, nos encómios à Igreja e a “Sua Santidade”.

Longe vai o tempo em que a burguesia, animada de ideais iluministas, liberais ou republicanos, expulsava ou extinguia ordens religiosas, fechava conventos, mandava frades e freiras trabalhar para ganharem a vida, expropriava terras e bens de mosteiros e abadias, acabava com o monopólio do ensino detido pela Igreja, reduzia os padres à condição comum de cidadãos e impunha uma higiénica separação entre o (seu) Estado e a Igreja.

Nos dias que correm, a cumplicidade do Estado com a Igreja Católica é retomada em novos moldes. O poder laico recorre à influência da Igreja, mesmo enfraquecida, para remendar os modernos rasgões do tecido social.

A trajectória insensível do capital destrói os laços familiares — o papa contrabalança com a defesa da família. O “progresso civilizacional” baixa a natalidade — o papa proscreve os contraceptivos e o aborto. O mundo moldado pelo lucro torna os velhos inúteis e desesperados — o papa condena a eutanásia. 

A exclusão, a discriminação, a desigualdade marcham a par das grandes fortunas — o papa apela a que “todos” sejam tratados como irmãos. As ondas de refugiados e migrantes atingem proporções mais que bíblicas, a pobreza alastra entre as classes trabalhadoras — o papa contrapõe a misericórdia cristã e o óbolo consolador. A concentração do capital elimina a pequena propriedade, rebaixa as condições de vida de milhões de seres — o papa louva a “dignidade humana”. 

Os estados fascizam-se, a democracia é corrompida — o papa enaltece as virtudes da ordem e da paz social. As forças imperialistas promovem guerra atrás de guerra, os mortos contam-se por milhões — o papa oferece-se como mediador, exorta a que se reze pela paz e pela alma das vítimas. 

A juventude de hoje tem garantida uma vida pior que a da geração dos pais — o papa prega a esperança como remédio.

Ver nas palavras deste papa um encaminhamento da Igreja em direcção às grandes causas sociais é confundir uma renovação de discurso (exigida pela própria evolução da história recente) com um propósito de transformação do mundo que, para ter efeitos práticos, requer um combate de natureza social apontado contra os poderes instalados. Nada que esteja nos planos da Igreja.

Foi dentro deste entendimento, vindo de longe e adaptado aos dias de hoje, que se desenrolou a JMJ. Outros entendimentos mais práticos ajudaram à missa.

Dinheiro público. Todos percebem que as dezenas de milhões de euros pagos pelo Estado (de que a Igreja promete apresentar contas “até ao cêntimo”) constituem um desvio de dinheiro público para uma iniciativa confessional que o Estado, se prezasse a sua laicidade, não teria patrocinado. Como alguém bem disse, a empresa multinacional que dá pelo nome de Vaticano tem dinheiro de sobra para isso e muito mais. 

O conforto dado pelo presidente da República às mentes simples de que “o investimento já está pago” pela onda de consumo gerada pelos peregrinos; da mesma maneira que o apelo de António Costa para que não se veja apenas “o lado material” da questão — servem só para desviar atenções do essencial: a disposição do Estado para financiar uma iniciativa privada com fins abertamente proselitistas.

Estado de excepção. A ninguém escapa que os hospitais de campanha prontamente disponibilizados e a mobilização de pessoal da Saúde para apoio à Jornada contrastam com as constantes faltas no SNS, mal justificadas por falta de meios e de verbas. Tal como a mobilização de milhares de polícias e militares, os controlos de fronteiras, as restrições de circulação criaram um verdadeiro estado de excepção que só o peso político do Vaticano e a conivência das autoridades portuguesas permitem compreender.

Abusos. Todos vimos como a igreja portuguesa cuidou de afastar da Jornada (e, em geral, do domínio público) o caso incómodo dos abusos sexuais cometidos por sacerdotes e ocultados pela hierarquia. 

Primeiro, criou uma comissão da Igreja para tratar, dentro de portas, as denúncias de abusos — anulando com isso o julgamento público resultante da comissão independente que terminou funções em fevereiro deste ano. Seguidamente, boicotou o plano de um monumento às vítimas dos abusos (que seria um dedo permanentemente apontado à Igreja) com a justificação cínica de que o dinheiro seria mais bem empregue no apoio às vítimas. Depois, reduziu o assunto a uma conversa em segredo do papa com algumas das vítimas (escolhidas por quem?) dentro das paredes da Nunciatura. 

Finalmente, viu chegar-lhe um auxílio inesperado: por acção prestimosa do presidente da câmara municipal de Oeiras, foram banidos do espaço público cartazes da denúncia promovida por um grupo de cidadãos. Ironicamente, foi o cadastrado Isaltino Morais que, no caso, declarou a “ilegalidade” da iniciativa, no propósito de poupar a igreja portuguesa e o papa ao vexame da denúncia. 

Perdeu a democracia por o Estado ter colaborado em todo este espectáculo? Contra o que disseram algumas vozes genuinamente indignadas, a democracia portuguesa não se degradou pelo facto de ter dado apoio à Igreja e à Jornada. A degradação de que ela padece desde há décadas é que tornou natural que as instituições do regime se prestassem ao espectáculo e aos actos a que todos assistimos: 

— Todas as figuras do Estado fazendo fila na Nunciatura Apostólica para prestarem vénia a um líder religioso duplicado de chefe de Estado. — Mobilização de recursos públicos, para pagar o que a Igreja não quis pagar, apresentada como “investimento” nacional. — Invocação, ao mais alto nível, do ganho de prestígio internacional para “o país”, quando tal argumento já mostrou o que vale nas facilidades para atrair turistas, na promoção de mega-cimeiras, ou na organização de campeonatos de futebol. — Policiamento reforçado desde as fronteiras apontado como prova da “segurança” de que o país goza e de que é capaz, quando aí se pode ver um ensaio dos métodos do Estado policial que a direita reclama.

O sinal mais definitivo de debilidade democrática — no sentido essencial de poder do povo — esteve, porém, no conformismo geral diante dos diversos actos do espectáculo e do massacre informativo que os acompanhou. Saudemos, portanto, os que ousaram fugir à regra: os promotores do cartaz que excitou os reflexos fascistóides de Isaltino Morais, e as centenas de manifestantes que protestaram em Lisboa, no dia 4, contra os gastos públicos com a Jornada e os abusos cometidos pela Igreja.


Comentários dos leitores

antonio alvao 11/8/2023, 15:01

(...) durante séculos, estes perturbadores de cérebros governaram as massas pelo terror, porque, sem tal método, há muito que a loucura religiosa teria chegado ao termo. A enxovia e as grilhetas, o veneno e o punhal, a forca e o gládio, a cilada e o assassinato, em nome de Deus e da justiça, foram os meios empregues para a manutenção desta loucura, que ficará como uma imensa nódoa na história da humanidade. Milhares e milhares de indivíduos foram grelhados a lume brando nas fogueiras, em nome de Deus, por terem ousado pôr em dúvida o conteúdo da Bíblia. Milhões de homens foram forçados durante longas guerras a matar-se uns aos outros ...
Quanto mais o homem se agarra à religião, mais crê. Quanto mais crê, menos sabe. Quanto menos sabe, mais bruto fica. Quanto mais bruto fica, mais se deixa governar facilmente. (...) - (Johann Most)

leonel l. clerigo 22/8/2023, 10:46

António Alvão

Gostei.
De facto, quanto mais FÉ religiosa, mais cego se fica, mesmo sendo em parte essa FÉ construida oportunisticamente para atrair turistas.
Portugal expressa bem essa cegueira, presenteando-nos com um SUBDESENVOLVIMENTO sem fim à vista.


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