Lucros da banca e moral oficial

Urbano de Campos — 1 Agosto 2023

Fraude no BES valeu 12 mil milhões. Ricardo Salgado acusado de 65 crimes. Veremos que justiça vai ser feita

Os lucros da banca que actua em Portugal, revelados nos últimos dias, deram aos meios de comunicação oportunidade para veicular uns quantos reparos moralistas. O moralismo consistiu nisto: manifestar uma espécie de comiseração para com o cidadão comum, aflito para pagar as contas, ao mesmo tempo que se justificava a opulência da banca como coisa absolutamente impoluta e inelutável. Como quem nos diz: “Temos pena, mas são estas as regras do jogo”.

Dado que os montantes em causa atingem proporções de escândalo — quase 2 mil milhões de euros nos primeiros seis meses do ano, um acréscimo de 58% por comparação com o ano passado — havia que fazer alguma coisa para desarmar a natural indignação da opinião pública. 

O espanto moralista foi assim cuidadosamente temperado. O grosso do tempo de antena foi para as declarações dos banqueiros e especialistas a soldo que se empenharam na tarefa de provar que tudo se passou dentro da melhor normalidade e resultou apenas da boa gestão dos negócios. 

Uns e outros explicaram-nos a óbvia mecânica do êxito: juros de empréstimo altos e em crescendo favorecem o negócio bancário, sobretudo quando os juros dos depósitos são mantidos baixos. Aqueles são decididos pelo Banco Central Europeu e a banca nacional limita-se a obedecer-lhe com todo o gosto; estes são decididos pelos bancos porque o podem fazer segundo “as regras do mercado”. 

Disseram mais, como fez o presidente da Caixa Geral Depósitos: os lucros são “merecidos” depois dos azares e das perdas que a pandemia causou; a banca estaria apenas a “recuperar” da maleita que a atingiu nos últimos dois ou três anos.

Claro, ninguém lembrou os milhares de agências bancárias entretanto encerradas, os consequentes despedimentos, a pioria do serviço para os utentes, o aumento contínuo das taxas cobradas pelos depósitos e movimentação de dinheiro, os milhões do erário público gastos pelo Estado para salvar bancos privados falidos. O sucesso da banca é, simultaneamente, decorrente de tudo isto e alheio a tudo isto.

O tratamento que foi dado ao caso tem a ver com a necessidade de fazer a opinião pública aceitar o contraste brutal, e irracional, entre uma acumulação fabulosa de riqueza nos cofres de cinco bancos (ao ritmo de mais de 10 milhões por dia!) e a penúria generalizada da população trabalhadora — nos salários, na habitação, nos serviços públicos. O argumento é o de que não se pode tocar nem nos direitos da iniciativa privada nem na lógica do lucro, peças estruturantes da ordem social.

Há, porém, algo a dizer sobre o que mexe por baixo desta superfície de normalidade. Os bancos detêm um monopólio. É por eles que passa toda a “riqueza da nação”, sejam poupanças, ordenados de funcionários do Estado, salários, pensões, meios de investimento. Têm à guarda o dinheiro da Segurança Social. Controlam a aplicação de capitais, tanto especulativos, como de investimento. Multiplicam a seu gosto os “activos financeiros”, grandes responsáveis pela actual inflação. Jogam com a dívida pública. E são ainda meio privilegiado para toda a casta de manipulações — desfalques, fuga e branqueamento de capitais — como os casos sucessivos do BPN, do BES, do Banif ou do BPP sobejamente demonstram. 

Outros monopólios ou oligopólios obtêm lucros astronómicos igualmente por deterem posição dominante em ramos determinados da actividade económica: cadeias de distribuição e hipermercados, petrolíferas, abastecimento de energia, redes de comunicação, imobiliárias e empresas de construção — todos eles umbilicalmente ligados à banca, fechando um círculo de interesses praticamente inexpugnável.

Esta posição dominante, nalguns casos exclusiva, permite ainda aos grandes grupos capitalistas impor preços ditados não pelo valor dos serviços prestados, mas apenas pela própria posição dominante, daí lhes advindo rendas que não têm outra justificação. Um exemplo, no caso da banca, está na panóplia de taxas sobre os depósitos e operações bancárias correntes, afectando sobretudo os pequenos depositantes, praticamente obrigados por lei a terem o seu dinheiro nos bancos. Outro exemplo é o das empresas de telecomunicações que, podendo concertar-se entre si, praticam dos mais elevados preços da Europa, mesmo prestando serviços de baixa qualidade. 

Tudo isto considerado, falar de legalidade ou enaltecer os méritos da iniciativa privada e do livre jogo do mercado é apenas uma forma manhosa de pôr um manto de virtudes sobre um mecanismo, instituído e legalizado, de espoliação.


Comentários dos leitores

MANUEL BAPTISTA 1/8/2023, 11:35

Muito bom artigo.
Gostava que o «Mudar de Vida» se debruçasse sobre:
A taxa efetiva de incidência dos impostos sobre a atividade bancária. Estou convencido que, em termos percentuais, a banca paga menos do que as pequenas/médias empresas industriais e de serviços, neste país.
Os lucros declarados pela banca são uma fração dos seus lucros reais:
- Primeira constatação: os derivados em que a banca é geralmente uma das partes, não entram nas contabilidades dos bancos, porém alguns obtêm chorudos lucros com tais operações.
-Segunda constatação: a existência de sucursais ou subsidiárias dos vários bancos (não só privados, também da CGD) em «paraísos fiscais» por onde passa imenso dinheiro, impossível de ser escrutinado pelas finanças portuguesas, paraísos fiscais onde os políticos (de todas as cores) e os empresários mais graúdos deste país acumulam enormes capitais, sem tributação.

Adilia 1/8/2023, 12:24

Infelizmente a sociedade está tão atomizada que já nem reage e acha tudo normal a começar pelos políticos do centro esquerda. Uma desbunda tal qual nem tem nome. Bem sem falar .na comunicação social e depois vem falar em liberdade e em direitos humanos

leonel l. clérigo 2/8/2023, 8:53

Meus caros companheiros
Urbano Campos, Manuel Baptista e Adília

Pessoalmente, gostei do "texto" e dos 2 "comentários": a crítica que se vislumbra em cada um deles ajuda-nos a entender o "buraco" onde estamos metidos. E como o Mundo não deixa de se movimentar, arrisco dizer que essa crítica não tem fim, mesmo que se repita.

Contudo, julgo que há momentos em que a crítica se torna curta: como dizia o otro é como "bater no ceguinho", ao caso no CAPITALISMO.
Ao fim de 50 anos pós 25 de Novembro - e apesar da nossa sociedade ser pouco crítica (ôca) e viver em grande parte nos restos apodrecidos da Idade Média Feudal - como ilustra agora a JMJ - avançámos pouco. A "Europa connosco" foi e é apenas cosmética.
Em minha opinião, esta Sociedade burguesa está esgotada: nada de bom pode já vir daí. E sua CRÍTICA está feita, no essencial. Se o "barulho das luzes" parece dizer o contrário, é preciso ter consciência que isso é só "barulho".

Julgo ser então necessário passar a outra fase: a das PROPOSTAS. Que fazer por um mundo novo que substitua este que vem apodrecendo dia-a-dia?
É isso que nos falta: a CRÍTICA tem que dar agora o lugar à PROPOSTA, ao que se deve CONSTRUIR de NOVO.
E há que puxar pelas cabeças e tentar descortinar as "luzes do FUTURO". Já há bons e sólidos elementos que nos permitem isso.
O debate está à nossa espera. E a organização também.

Francisco Tavares 2/8/2023, 18:05

Muito bom artigo. Ganharia ainda mais se se pudesse juntar alguns números.

chico 6/8/2023, 16:07

apoio total a Leonel. de facto o tempo da critica me parece passado ou pelo menos pouco util e nada eficaz. Como dizia o outro :unamo-nos....


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