Quem tornou a guerra inevitável?

Editor / Ekaterina Blinova — 24 Julho 2023

Soldados ucranianos em treino no Reino Unido, julho 2022. “Somos uma grande família”

O artigo seguinte foi publicado pela agência noticiosa russa Sputnik News. Dá conta dos acontecimentos que, desde o início dos anos 1990, antecederam e criaram as condições para a invasão russa de 24 de fevereiro. A sequência dos acontecimentos, acompanhada dos comentários da tenente-coronel, reformada, da Força Aérea dos EUA, Karen Kwiatkowski, permite ver como o Ocidente, particularmente os EUA e o seu principal agente na Europa, o Reino Unido, fizeram da Ucrânia instrumento para uma guerra contra a Rússia. 

Primeiro, municiando e treinando as forças armadas da Ucrânia desde longa data, fazendo delas o maior exército da Europa. Depois, promovendo um golpe de estado que colocou no poder uma equipa governante favorável aos seus desígnios. Depois ainda, sabotando os acordos de Minsk, que teriam permitido uma solução negociada do conflito interno ucraniano decorrente do golpe de estado. Em seguida, em 2021, preparando um ataque às repúblicas do Donbass, na tentativa de resolver a questão pela força armada (entretanto, o exército ucraniano matara 15 mil pessoas em Lugansk e Donetsk entre 2014 e 2022). Finalmente, recusando as propostas de entendimento feitas pela Rússia em dezembro de 2021 no sentido de estabelecer um acordo de segurança envolvendo os EUA, a Nato, a Europa e a Rússia. 

Já com o conflito em curso, os EUA e o Reino Unido tiveram um último gesto ilustrativo dos seus propósitos, em março-abril de 2022: proibir Zelensky de assinar o acordo de cessar-fogo com a Rússia, entretanto negociado em Istambul, e intimá-lo a prosseguir a guerra, senão…

Tirando a fantasia do final do artigo e a referência às fanfarronadas de Trump, fica claro quem tornou a guerra inevitável e quem aposta em eternizá-la.

A NATO PASSOU ANOS A PREPARAR-SE PARA A GUERRA POR PROCURAÇÃO COM A RÚSSIA NA UCRÂNIA

Ekaterina Blinova, Sputnik News

Mesmo antes da escalada do conflito na Ucrânia, em fevereiro de 2022, o Reino Unido, a Suécia, o Canadá e os Estados Unidos estavam a investir na Ucrânia e a reforçar as suas capacidades, afirmou o ministro da Defesa britânico na cimeira da Nato em Vílnius. Preparavam-se para uma guerra por procuração com a Rússia?

Os neoconservadores norte-americanos e os seus aliados da Nato que partilham as mesmas ideias procuram há muito tempo pôr a Rússia fora de combate na arena política antes de tentarem cair em cima da China, numa tentativa de preservar o domínio dos EUA, afirma a tenente-coronel reformada da Força Aérea dos EUA, Karen Kwiatkowski.

“Acho que os funcionários e conselheiros dos EUA (tal com os da Nato) acreditam que têm de estar em condições de explorar os recursos russos antes de qualquer confronto directo com a China”, disse Kwiatkowski — que também é ex-analista do Departamento de Defesa dos EUA — em declarações à Sputnik. “A ideologia neo-conservadora que mais de metade do Congresso abraça, e que o complexo de defesa e segurança dos EUA abraça igualmente, encara e exige um mundo unipolar, com os EUA, e o seu sistema governamental financiado pela dívida, no topo. Para eles, essa é uma questão existencial, embora a maioria dos americanos não veja as questões dessa forma.”

Desse modo, a Ucrânia surgiu-lhes como a candidata conveniente para o papel de “martelo” contra a Rússia.

Desde quando a Ucrânia recebe assistência militar ocidental?

A Ucrânia tem sido um destinatário privilegiado das ajudas militares ocidentais desde o início dos anos 1990, quando o país obteve a independência, com os EUA a liderar a iniciativa. Nos primeiros dez anos após a independência, a Ucrânia recebeu quase 2,6 mil milhões de dólares em assistência dos EUA. Até 2014, a Ucrânia recebia cerca de 105 milhões de dólares por ano, incluindo financiamento militar estrangeiro.

O Conselho de Cooperação do Atlântico Norte da Nato abraçou a Ucrânia como “país parceiro” em 1991 e incluiu-a no programa da Parceria para a Paz em 1994. O Reino Unido desempenhou um papel importante no esforço, realizando exercícios militares conjuntos com os ucranianos, além de fornecer treino e financiamento às forças armadas do país.

Assim, os primeiros exercícios militares conjuntos ucraniano-britânicos “Estepe Cossaca” foram realizados na segunda metade da década de 1990 como parte do programa da Parceria para a Paz da Nato. A Comissão Nato-Ucrânia foi criada em 1997 com o objectivo de desenvolver a relação entre o país e o bloco militar e dirigir actividades de cooperação.

Assistência militar do Reino Unido à Ucrânia: 2009-2014 

De acordo com documentos do governo do Reino Unido, o ministério da Defesa gastou aproximadamente 3,9 milhões de libras a apoiar a Ucrânia por meio do Fundo de Assistência de Defesa e da Reserva de Conflitos entre 2009 e 2014.

Muitas das actividades financiadas por meio desses mecanismos apoiavam “capacidades de comando, controle e comunicações (C3)”. Em particular, o Reino Unido realizou exercícios conjuntos com os militares ucranianos, providenciou educação militar aos especialistas do país e deu “contribuições para as actividades coordenadas da Nato”. Pessoal civil e militar do Reino Unido foi enviado para a Ucrânia durante esse período, enquanto o pessoal ucraniano foi enviado para o Reino Unido.

Assistência militar reforçada da Nato à Ucrânia: 2014-2021

Na sequência do ilegítimo golpe de Estado em Kiev, em fevereiro de 2014, o Ocidente intensificou a assistência militar às novas autoridades ucranianas.

Entre 2014 e 2021, os Estados Unidos forneceram mais de 2,5 mil milhões de dólares em assistência militar à Ucrânia, incluindo o fornecimento de formadores, sistemas de armamento seleccionados (como radares contra-morteiro) e mísseis anti-tanque Javelin.

O aumento da assistência militar foi justificado pelos estados-membros da Nato com a alegada “invasão russa” no Donbass. No entanto, está bem documentado que o Donbass declarou a independência em resposta ao golpe de estado ilegítimo em Kiev realizado com a ajuda de grupos paramilitares nacionalistas e neonazis e subsequentes políticas russofóbicas do novo governo.

As repúblicas separatistas de Donetsk e Lugansk começaram a formar milícias depois de o governo interino de Kiev ter iniciado o que chamou de operações “anti-terroristas” contra a região.

“Kiev esteve na ofensiva contra o Donbass com o apoio ocidental durante vários anos, mesmo antes de 2014, e isso está bem documentado”, explicou Kwiatkowski. “Outros países da Europa oriental e meridional tinham sido ‘encorajados’ pelas potências ocidentais, como vimos com a Jugoslávia, a dividirem-se em países mais pequenos, [segundo divisões] nacionais e etnoculturais. A divisão pacífica entre a República Checa e a Eslováquia também foi permitida e estimulada.

Isto deve-se principalmente ao facto de os novos países mais pequenos terem acrescentado membros potenciais à Nato e à UE – todos controlados e controláveis pelas elites EUA-UE”.

Moscovo teve a ideia dos Acordos de Minsk para pôr termo às hostilidades no leste da Ucrânia. Rússia, França e Alemanha desempenharam o papel de garantes dos acordos.

No entanto, como admitiram no ano passado a ex-chanceler alemã Angela Merkel e o ex-presidente francês François Hollande, os Acordos de Minsk foram assinados pelas potências ocidentais para ganhar tempo, com o fim de reforçar a capacidade militar ucraniana.

“No caso da separação política desejada pelo Donbass — e dos acordos de Minsk que foram concebidos para permitir essa autonomia — o Leste de língua russa, se autónomo, não teria escolhido fazer parte da Nato”, disse a ex-analista do Pentágono. “Portanto, essa independência não seria permitida. Sim, a Nato e os EUA apoiaram essa ofensiva [contra o Donbass] e estavam a preparar-se activamente para ela, como confirmaram os comentários de muitos funcionários e diplomatas norte-americanos e europeus. A secretária de Estado adjunta dos EUA, Victoria Nuland, e a ex-chanceler alemã, Angela Merkel, confirmaram isso publicamente, assim como muitos outros.”

Treino extensivo da Ucrânia e provocações navais 

Os aliados dos EUA entraram na onda, encaminhando a sua assistência militar à Ucrânia por meio da Comissão Nato-Ucrânia e por meio de iniciativas como a Comissão Conjunta EUA/Canadá/Reino Unido/Ucrânia para Reforma da Defesa e Cooperação em Segurança, criada em julho de 2014.

Em particular, a Grã-Bretanha iniciou e depois expandiu a Operação Orbital, prevendo treino extensivo dos militares ucranianos, incluindo acções de combate em ambientes urbanos. Essas actividades incluíram: treino médico de infantaria e sobrevivência, combate a engenhos explosivos improvisados, treino para operações defensivas em ambiente urbano, planeamento operacional, engenharia, combate a ataques de franco-atiradores, veículos blindados e morteiros.

Isso significava que os soldados ucranianos que haviam passado pelo treino, no âmbito do  programa, passariam os seus conhecimentos e técnicas aos seus colegas. Os britânicos também expandiram o pacote de treino para abranger todos os ramos das forças armadas da Ucrânia.

Em junho de 2020, foi oferecido à Ucrânia o estatuto de Parceiro Especial da Nato, que forneceu à Ucrânia acesso preferencial aos exercícios, treino e troca de informações e conhecimento de situação da Nato. O estatuto previa o aumento da inter-operabilidade entre a Ucrânia e os países membros da Nato. Em setembro de 2020, a Ucrânia acolheu o Exercício Esforço Conjunto com tropas britânicas, norte-americanas e canadianas, realizado no âmbito do novo estatuto privilegiado da Ucrânia na Nato.

Em junho de 2021, o Reino Unido, a Ucrânia e a indústria assinaram um Memorando de Implementação para um novo Programa de Melhoramento de Capacidades Navais. O programa em particular incluiu: a aquisição pela Ucrânia de dois draga-minas remodelados da Marinha Real Britânica da classe Sandown; a venda e integração de mísseis em plataformas de patrulha e aero-transportadas da Marinha ucraniana, incluindo um pacote de formação e apoio técnico; a assistência do Reino Unido na construção de novas bases navais nos mares Negro e de Azov; o desenvolvimento e a produção conjunta de oito navios de guerra rápidos portadores de mísseis; a participação no projecto para dotar a Ucrânia de fragatas modernas.

No mesmo mês, o Grupo de Ataque de Porta-aviões (Carrier Strike Group) do Reino Unido, liderado pelo contratorpedeiro Defender, foi destacado para o Mar Negro “numa demonstração de solidariedade com a Ucrânia” e entrou ilegalmente e continuou a navegar em águas russas ao largo da Crimeia, levando navios de guerra e aeronaves russas a cercar o navio e a disparar tiros de advertência nas suas proximidades para forçá-lo a afastar-se. Embora o Reino Unido inicialmente negasse ter recorrido a uma provocação deliberada, uma fuga de documentos do governo britânico provou o contrário.

Projecto de acordos de segurança da Rússia

A Rússia levantou repetidamente a bandeira vermelha sobre a aproximação Nato-Ucrânia e o alargamento do bloco transatlântico. De acordo com sua Declaração de Soberania do Estado (16 de julho de 1990), a Ucrânia comprometeu-se a permanecer um país neutro. Além disso, no início dos anos 1990, as potências ocidentais garantiram a Moscovo que a Nato não se expandiria em direcção à Rússia. Ao mesmo tempo, os EUA e seus aliados recusaram-se a considerar a proposta da Rússia de ingressar na Nato, enquanto encorajavam ex-repúblicas soviéticas e ex-estados-membros do Pacto de Varsóvia a aderirem.

A Rússia — em projectos de acordos de segurança que entregou aos EUA e à Nato em dezembro de 2021 — sublinhou as suas preocupações de longa data em relação ao reforço militar da Ucrânia nas suas fronteiras e à expansão da Nato.

O acordo procurava particularmente garantias de não alargamento da Nato e a não admissão da Ucrânia no bloco. Os EUA e a Nato rejeitaram as principais disposições do acordo, levando a Rússia a desencadear a operação militar especial destinada a desmilitarizar e desnazificar a Ucrânia, em fevereiro de 2022.

Conflito na Ucrânia é guerra por procuração EUA/Nato contra a Rússia

Embora em março de 2022 Ucrânia e Rússia tenham fechado um acordo preliminar em Istambul para interromper as hostilidades, os EUA e o Reino Unido opuseram-se abertamente ao acordo, prometendo mais armas a Kiev e declarando o objectivo de sangrar a Rússia.

“Os EUA estão a promover uma guerra por procuração, porque é isso que os EUA têm feito contra vários escolhidos inimigos, nos últimos 70 anos, e é essa a forma como estamos organizados para lutar”, disse Kwiatkowski. “Não é segredo que o Pentágono, mesmo com um orçamento de quase um bilião de dólares, não defende e, neste momento, não pode defender o território dos EUA. As elites norte-americanas e o complexo de defesa dos EUA, que se auto-perpetuam, estão totalmente desligados das pessoas que pagam as contas. A liderança, pobre e não-estratégica, dos EUA colocou os EUA numa situação de perde-perde”.

De acordo com a especialista militar dos EUA, três problemas surgiram no resultado da leitura equivocada de Washington do conflito entre Rússia e Ucrânia:

Primeiro, o propósito de enfraquecer e isolar a Rússia — “como deve ter sido previsto nas sessões de brainstorming de Jake Sullivan [conselheiro de segurança de Biden] — não se concretizou.

Segundo, os fornecimentos [de armas à Ucrânia] demonstraram uma variedade de fraquezas estratégicas na produção industrial de defesa dos EUA e da Nato, a ponto de vermos Joe Biden realmente afirmando o óbvio de que os “EUA estão sem munições”.

Terceiro, prosseguir com o projecto de destruição Ucrânia-Rússia num momento em que os EUA estão a passar por uma debilidade financeira, com reservas muito limitadas de ouro, armas e “espírito guerreiro” demonstra que o “planeamento de guerra” da Casa Branca e do Pentágono foi feito no vazio e com falsas suposições.

De acordo com Kwiatkowski, a paz é possível, mas pode exigir uma difícil reavaliação do papel dos EUA no mundo, enquanto os neo-conservadores e os aproveitadores da guerra não aceitarem essa reavaliação.

“A ideologia deles está acoplada ao poder unipolar dos EUA”, disse a veterana militar dos EUA. “Suspeito que alguns líderes no Ocidente começam a entender que existe um caminho para a paz, e que isso começa com a aceitação da verdade de todos os lados e negociações baseadas nessa verdade. Imagine um governo americano são, uma Nato preocupada, um verdadeiro patriota da Ucrânia em Kiev e os russos — todos falando honestamente. Como Trump afirmou meses atrás, esta guerra pode acabar num dia.”

Tradução MV


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