Sentença do BCE: os assalariados que paguem

Manuel Raposo — 1 Julho 2023

Os suspeitos do costume, em ambiente volátil. Bancos centrais do Japão, EUA , Europa e Inglaterra reunidos em Sintra

Fiel ao preceito de “primeiro manducar, depois filosofar”, o fórum do Banco Central Europeu reunido em Sintra começou com um jantar no dia 26. No encerramento, dois dias depois, a presidente Christine Lagarde não deixou margem de dúvida acerca de quem deve pagar os custos da inflação e do tem-te-não-caias da economia europeia: os trabalhadores assalariados. As piores previsões feitas no final do ano passado confirmaram-se por inteiro: retrocesso económico, subida dos preços, desvalorização dos salários. Mas houve quem ganhasse: o grande capital.

Há cerca de ano e meio, quando a inflação disparou (já vinha dando sinais de subida antes mesmo do impacte da guerra na Ucrânia), quase todas as autoridades financeiras procuraram sossegar os espíritos garantindo que era coisa temporária, nada de pânico. Agora, Lagarde diz que a inflação é “persistente” e que isso obriga não só a continuar a subir as taxas de juros, mas também a prolongar no tempo essas taxas altas. Ou seja, vamos ter austeridade por vários anos sem sinal de abrandamento.

Quem ganha e quem perde

Contra a voz corrente de que “todos” perdem com a inflação, os dados, quer do BCE quer do FMI, mostram que as empresas (ou seja, o capital) foram largamente beneficiadas. Como? Repercutiram nos preços os aumentos dos custos de produção (energia, matérias primas, etc.) e fizeram-no mesmo acima dos aumentos dos custos reais. Quer dizer, a conversa de que tinham reduzido as margens de lucro para “absorver” parte da inflação é mentira redonda.

Resultado: dois terços da inflação, diz o BCE, há que atribuí-los a essa subida, mais do que proporcional, dos preços — bem reflectida nos aumentos dos lucros das empresas. Entre nós isso é patente nos ganhos, alguns astronómicos, da banca, das petrolíferas e da grande distribuição alimentar.

Quem perdeu? Os assalariados, que viram o valor do seu rendimento cair em termos reais, confirma o BCE. 

Mas, explica ainda o BCE, quem vai ter de continuar pagar? Os assalariados. O BCE diz como: não há que atacar os lucros das empresas (do capital), não há que tabelar os preços (soberanamente fixados pelo capital), mesmo se nesta liberdade de determinar preços e lucrar com eles residem dois terços do problema reconhecido pelo BCE. Há sim que continuar a subir as taxas de juro e prolongá-las no tempo, pelo tempo que for necessário. E, cumulativamente, cortar os apoios prestados pelos Estados às famílias porque isso “alimenta” a inflação. 

O objectivo não fica escondido: travar a actividade económica. Consequentemente reduzir o emprego, consequentemente baixar a massa salarial despendida pelo capital. Com isso, baixará o consumo, e presume o BCE que os preços baixarão também. Com mais desemprego os salários serão pressionados para baixo e as margens de lucro do capital poderão sofrer nova alta. 

O desiderato, portanto, é: desemprego e salários baixos. Eis a alternativa que o capital oferece. 

Num beco sem saída

Com esta manobra, o BCE alivia as dores de cabeça que atormentam o capital, mas não ataca a doença crónica de que ele padece. Reduzir o consumo — rebaixando salários ou subindo juros — significa a prazo agravar o problema de fundo da economia capitalista contemporânea, que consiste num consumo em decréscimo, cada vez mais desfasado dos níveis de produção atingidos por um sistema económico-social superdesenvolvido e superdesigual. Um beco sem saída, sobretudo no que respeita ao mundo capitalista mais desenvolvido.

O retrocesso da Europa ficou claramente exposto nas previsões de Lagarde feitas no ano passado e confirmadas pela evolução entretanto verificada. Perante a Comissão de Assuntos Económicos e Monetários do Parlamento Europeu, disse ela em setembro de 2022 que os prognósticos para a zona euro seriam “cada vez mais sombrios” uma vez que  a actividade económica deveria “abrandar substancialmente nos próximos trimestres”.

Os desenvolvimentos mundiais do último ano e meio vêm agravar o problema. A divisão do mundo em blocos económicos rivais, que quebram os laços que até há pouco os unia, parece agora irreversível. Bem alertava para tal “perigo” a directora-geral do FMI quando, ainda há poucas semanas, temia uma quebra da produção mundial de 12% se fosse esse o caminho. 

E, dado que as únicas perspectivas positivas de crescimento económico se verificam fora da Europa ou dos EUA (o Japão está em estagnação há 30 anos!), não restam dúvidas de que uma tal divisão causará uma queda ainda mais acentuada do bloco capitalista ocidental, agravando todas as contradições em que ele já está mergulhado.

Vozes críticas lusitanas

Os reparos do presidente da República e do primeiro-ministro às medidas anunciadas em Sintra pelo BCE (de cujo Conselho o governador do Banco de Portugal faz parte) não passam de lamúrias pronunciadas por dever de ofício. 

“Preocupado” com o discurso de Lagarde, Marcelo — no tom vago de quem fala sem dominar o tema — recomendou que “os bancos centrais deveriam ter muito cuidado com o que dizem publicamente”. Tudo o que o inquieta é a exposição pública da crueza da situação, não o futuro sombrio que se oferece aos trabalhadores ou a natureza anti-popular das medidas preconizadas pelo BCE. 

Também o primeiro-ministro se ficou por palavras sem resultado prático, uma vez que não  dispõe de meios que lhe permitam contrariar as determinações vindas do BCE ou da UE. Dizer que não são os salários (para mais, os portugueses) que estimulam a inflação, e que  os lucros do capital denunciam quem ganhou com a subida dos preços — é dizer o evidente. Mas onde estão as medidas de combate aos salários baixos e à alta dos preços? Onde estão as prometidas taxas sobre os lucros excessivos das empresas? Onde estão as políticas de reforço dos serviços sociais, outra forma de beneficiar os assalariados?

A mais significativa resposta foi, porém, a da direita. Incapaz de defender a limitação dos salários (com receio de perder votos), mas incapaz também de propor subidas de salários (para não ferir o interesse dos patrões) toda a direita, do Chega ao PSD, recorreu a uma habilidade: a “subida” dos salários deve ser feita pela redução dos impostos, “para que os portugueses tenham mais dinheiro no bolso”. Nada de tocar nos preços ou nos lucros das empresas, que assim o exige a liberdade de negócio!

O expediente é claro: “aumentar” os salários à custa das receitas (públicas) do Estado, não dos lucros (privados) das empresas. Assim preconiza a direita que se dê no salário directo aquilo que se tira no salário indirecto — os serviços públicos, as pensões de reforma. Com um duplo efeito na manga: 1) poupar os patrões a maiores despesas e 2) justificar a privatização de serviços públicos e do sistema de pensões por incapacidade financeira do Estado.

Jogo de soma zero

Que os impostos sobre os salários são elevados não há dúvida. Mas se se pretende melhorar os serviços públicos e o nível de consumo de quem vive de salário ou de pensão, só há um caminho: reduzir substancialmente os impostos sobre os rendimentos do trabalho e aumentá-los correspondentemente sobre os lucros, a riqueza e a grande propriedade. É isto que, com argumentos eventualmente diferentes, nem a oposição de direita nem o Governo querem.

O marasmo persistente do capitalismo e a consequente degradação contínua das condições de vida das populações trabalhadoras tornam evidente que as tentativas de conciliar interesses estão condenadas ao fracasso. Nas condições de hoje, não há ganhos para ambos os lados entre capital e trabalho.


Comentários dos leitores

leonel l. clérigo 2/7/2023, 12:01

O CATECISMO do TRABALHADOR

1 - Lembro-me de há uns bons anos atrás ter surgido uma edição do "CATECISMO do TRABALHADOR" de Paul Lafargue. E tal como a uma criança que aprende a ler não se lhe "deve" pôr nas mãos a METAFÍSICA de ARISTÓTELES, tal "catecismo" pretendia de FORMA SIMPLES promover a INICIAÇÃO dos TRABALHADORES ASSALARIADOS ou seja, sujeitos à EXPLORAÇÃO CAPITALISTA e aos seus "segredos".

2 - A denominada ESQUERDA (actual) tem vindo a desprezar a FORMAÇÃO dos TRABALHADORES, a dar-lhe o mínimo de instrumentos para entender ONDE SE ENCONTRAM e poderem escolher CONSCIENTEMENTE e não "empurrados" pelas aldrabices do CAPITALISMO.

3 - Essa necessária EDUCAÇÃO pode aproveitar-se hoje de certos instrumentos existentes de difusão como é o caso do MV e outras publicações. E muito do que foi feito no passado poderá contribuir para isso. Vou dar um pequeno EXEMPLO que procura aclarar, de forma simples o que é o CAPITALISMO.

Nos USA não existem só BURGUESES CAPITALISTAS: digamos até que a grande maioria é composta de gente vivendo em REGIME de SALÁRIO ou seja, é EXPLORADA de alguma forma e a velha MONTHLY REVIEW agrupava um conjunto de MARXISTAS de ALTA CRAVEIRA que lutavam ao lado da massa trabalhadora estadunidense.
Entre eles estava o JORNALISTA LEO HUBERMAN que tem um texto simples e delicioso - que reproduzo abaixo - onde explica sucintamente O QUE É O CAPITAL e consta do seu formoso LIVRO "A HISTÓRIA da RIQUEZA do HOMEM".

"Dois homens esperam a vez numa fila para comprarem 4 bilhetes para um espetáculo de Teatro e cada um deles gasta 17€ por cada bilhete ou seja 68€ por 4 cadeiras na plateia.
Um deles, depois de adquirir os 4 bilhetes, vai ao encontro de três amigos seus que o esperavam. Entram os quatro no teatro, sentam-se nos seus lugares e esperam que o "pano levante".
E prossegue Leo Huberman.
"O outro homem, quando deixa a bilheteira com os 4 bilhetes coloca-se no passeio em frente ao teatro e, com os bilhetes na mão, aborda os transeuntes perguntando-lhes:
"Quer um bom lugar para o espectáculo de hoje?". E pode acontecer que venda as 4 entradas por 20 € cada, o que lhe permite um ganho total de 12€ - ou... pode até acontecer que não venda nada.
Mas uma questão se põe aqui: que diferença há entre os 68€ gastos por cada um dos dois homens?
Há de facto diferença: o dinheiro do primeiro homem é usado para ele e seus amigos se deliciarem com uma boa peça de teatro enquanto o dinheiro do segundo homem é usado como CAPITAL ou seja, ele usa o Dinheiro para FAZER MAIS DINHEIRO."
E diz então Leo Huberman sobre este Milagre:
"O dinheiro só se torna CAPITAL quando é usado para adquirir mercadorias ou trabalho com a finalidade de vendê-los novamente, acrescido de LUCRO ou seja, quando se usa o DINHEIRO com o intuito de "COMPRAR para VENDER" e não para "COMPRAR para USAR".

4 - Anoto agora aqui um outro tema - entre muitos outros - que valia a pena pegar porque é coisa "da moda": a TAXA de JURO da Sra. LAGARDE para que se lhe tire o "ar" de FEITICEIRA de coisas OBSCURAS. Por exemplo: Keynes definiu "taxas de juros" como sendo uma "recompensa" que se deve pagar aos possuidores de riquezas (DINHEIRO), para que renunciem à "liquidez" ou seja, para que não entesourem moeda coisa que pode prejudicar a "dinâmica Capitalista".


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