A Nato, o problema é a Nato!

Urbano de Campos  — 15 Junho 2023

Zelensky com Stoltenberg. A próxima cimeira da Nato não vai seguramente abrandar o esforço de armar a Ucrânia e tentar desgastar a Rússia

A próxima cimeira da Nato (Vilnius, Lituânia, em meados de julho) não vai seguramente abrandar o esforço de armar a Ucrânia nem rever o propósito, abertamente proclamado, de desgastar a Rússia. Ao contrário, todo o ambiente criado vai no sentido de alargar o alcance geográfico da Aliança, de amarrar ainda mais os países europeus às prioridades militares e políticas norte-americanas, de estabelecer um clima de guerra permanente como o “novo normal” da vida dos povos, seja na Europa, seja no resto do mundo.

Factos aparentemente diversos apontam no mesmo sentido.

A Nato promove neste momento o maior exercício militar aéreo da sua história. O centro é o território da Alemanha mas as acções desenrolam-se igualmente no Mar Báltico. O propósito é evidente e foi anunciado: ameaçar a Federação da Rússia com uma segunda linha de combate para lá do solo ucraniano. O provável fracasso da ofensiva ucraniana desencadeada há uma semana leva a Nato a esta escalada.

O general Michael Lo, comandante da Guarda Nacional Aérea dos EUA, deixou claro que esta demonstração de força reafirma um propósito: “a presença continuada dos EUA na Europa”.

Anders Rasmussen, ex-secretário-geral da Nato e agora conselheiro de segurança de Zelensky, disse alto e bom som que a Polónia e os países bálticos estão prontos a enviar tropas para a Ucrânia se, disse ele, a próxima cimeira da Nato não der “garantias de segurança” à Ucrânia. Referia-se, claro, ao prosseguimento do esforço de guerra. Apesar de uns tímidos desmentidos, Rasmussen limitou-se a repetir o que os próprios responsáveis polacos vêm dizendo de há meses para cá, desde que se tornou patente a incapacidade das tropas ucranianas em travar os russos.

O encontro, a 12 de junho, entre a França, a Alemanha e a Polónia (o “Triângulo de Weimar”, criado em 1991), anunciou como agenda o propósito geral de coordenação europeia na “assistência militar à Ucrânia para que possa levar a cabo com êxito a sua contra-ofensiva”. Dadas as circunstâncias concretas, porém, e considerando a posição dos polacos, não foi seguramente deixada de lado a possível intervenção de outras forças no teatro de guerra, no caso de colapso do exército ucraniano.

Esta ameaça vem revestida de uma dose considerável de cinismo. Diz-se que uma tal intervenção se daria a título “individual” de países da Nato, que enviariam “voluntários” para o terreno, mas não da Nato como entidade. O risco deste jogo de sombras é evidente, tornando inevitável a escalada e o alastramento do conflito, até agora circunscrito ao território da Ucrânia. 

Depois de o Reino Unido ter fornecido à Ucrânia munições de urânio empobrecido, os EUA preparam-se para fazer o mesmo. Como se não fossem sobejamente conhecidos os efeitos terríveis destas munições — comprovados no Iraque e na ex-Jugoslávia (cancros, leucemias, malformações de fetos, contaminação de solos e aquíferos, etc.) —, uns e outros mentem à opinião pública desvalorizando-as como se fossem munições comuns.

Bem além da Ucrânia

Para lá da Ucrânia, os EUA e a UE, conjuntamente, tratam de criar novos focos de conflito que dividam as atenções da Federação Russa. Um deles é no Kosovo, outro na Moldávia.

No Kosovo, a Nato ameaça a Rússia com uma segunda frente de guerra. As autoridades kosovares, apoiadas pelos EUA e a UE, provocam repetidamente a minoria sérvia, desrespeitando os acordos de 2013 que conferem autonomia aos municípios sérvios. Repetem assim o procedimento seguido na Ucrânia a respeito das populações do Donbass após 2014. O apoio da República Sérvia aos compatriotas sérvios do Kosovo é natural, bem como o apoio da Rússia a uma e a outros — daí a possibilidade de o conflito constituir mais uma provocação a Moscovo.

Na Moldávia, a região da Transnístria, que faz fronteira com a Ucrânia, tem população maioritariamente russa. Um contingente de tropas russas está estacionado na região desde 1995, tendo posto fim a um conflito armado iniciado em 1991, altura em que a Moldávia se constituiu como país independente, após a dissolução da URSS. Desde o início da guerra na Ucrânia, a Transnístria tem sido um dos pontos de atrito latente com a Federação da Rússia por parte, tanto da Ucrânia, como da Moldávia, como ainda da Roménia, para onde os EUA deslocaram no ano passado um largo contingente de tropas.

O palco ucraniano tem, portanto, amplas ramificações. Vários outros conflitos militares podem ser desencadeados na Europa se os EUA e a UE os entenderem úteis ao seu propósito declarado de sangrar a Rússia. 

Completando esta vasta manobra, há ainda o Extremo Oriente, em que o pretexto para confrontar a China é Taiwan. Além de mobilizarem os aliados da região (Coreia do Sul, Japão, Austrália), os EUA não escondem o propósito de arrastar também os europeus para essa outra aventura.

Militarização geral da Europa

Através da Nato, está em curso uma militarização geral da política europeia e de cada um dos estados europeus. A pressão dos EUA e dos falcões europeus — expressa na ideia  de apoiar Zelensky até onde for preciso, sacrificando os ucranianos até ao último, vendendo a ilusão de uma vitória sobre os russos — visa criar na população europeia a aceitação de um estado de guerra permanente, uma “nova realidade” a que os povos europeus tenham de resignar-se. Resignar-se em estado de espírito e resignar-se como pagadores.

Depois de Trump, na sua linguagem rude, ter insultado os aliados europeus por não pagarem as contribuições para a Nato — exigindo os 2% do PIB de cada país então estipulado — a equipa de Biden fez pior: instruiu o seu mandarete Stoltenberg no sentido de exigir, não apenas os 2% de Trump, mas um mínimo de 2%. Nenhum dirigente europeu ousou protestar. Todos os países membros da Nato estão a partir de agora intimados a pagar o que os EUA acharem necessário não apenas para o esforço de guerra que conduzem na Ucrânia, mas também para qualquer outra aventura militar contra a Rússia, e ainda contra a China.

Onde podem os países europeus ir buscar tantos milhões de euros a mais, sobretudo quando se afundam numa crise económica sem fim à vista, agravada pela própria guerra? As vozes conselheiras dos responsáveis norte-americanos não escondem a fonte: “cortem no vosso estado-social”, isto é, na saúde, na educação, nos sistemas de pensões. É o que os propagandistas “liberais” europeus estão a fazer com a pressão que exercem para privatizar tudo o que soa a estatal, é o que Macron faz em França com o aumento da idade de reforma.

Os agentes europeus desta política criminosa têm nomes. A cúpula dirigente da UE — Ursula von der Leyen, Charles Michel, Josep Borrell (já agora: nenhum deles com mandato democrático conferido pelos eleitores europeus) — são os serventuários mais chegados à equipa de Biden. Por eles tem passado a condução da propaganda belicista vinda de Washington, seguida pelos dirigentes nacionais quase sem excepção.

Um quadro alterado 

É neste quadro de guerra permanente criado pelo imperialismo norte-americano e europeu, inevitavelmente acompanhado de sacrifícios crescentes impostos às populações, que o posicionamento das autoridades portuguesas, Estado e Governo, tem de ser julgado.

A Nato de hoje não é bem a Nato de ontem. O cenário em que actua é outro. Em tempo de guerra-fria ainda pôde ser possível vender a ideia falsa da Nato como aliança “defensiva”. Agora não.

Se a Aliança foi, desde sempre, um meio de amarrar o país aos interesses hegemónicos dos EUA, hoje tem de se considerar, em cima disso, o seu papel de atiçador da guerra na Ucrânia, as ameaças de outras guerras que através dela estão a ser promovidas, as pretensões dos EUA de estender o seu braço armado do Atlântico à África e ao Extremo Oriente, arrastando consigo os dóceis “aliados”. É neste carro que o Governo e o Estado estão a conduzir a população portuguesa.

Episódios recentes da política nacional são ilustrativos desta postura subserviente.

O caso Lula, a África, as Lajes

A presença do presidente do Brasil, Lula da Silva, nas comemorações do último 25 de Abril foi um incómodo para os governantes portugueses. O líder do “país irmão” mostrou não estar do lado “conveniente” da barricada no que respeita ao conflito ucraniano: não apoiou as sanções à Rússia, insistiu em pôr fim à guerra quando os homólogos portugueses alinhavam pela corrente da guerra-até-ao-fim, apontou culpas dos EUA e da UE na instigação do conflito.

Mal Lula virou costas, a segunda figura do Estado, o presidente da Assembleia da República, Santos Silva, rumou inesperadamente a Kiev (acompanhado de uma consensual delegação parlamentar) onde evidentemente assegurou a Zelensky que Portugal manteria a sua postura colaboracionista e não se deixaria contaminar pela posição do Brasil.

A diplomacia portuguesa não tem disfarçado a sua pedagogia, felizmente com pouca audiência, junto de Angola e de Moçambique para que mudem de campo e condenem a Rússia. O exemplo dos BRICS, do Brasil e da maioria do mundo tem obviamente pesado mais na consideração de angolanos e moçambicanos — que certamente também não esquecem 500 anos de colonialismo — do que os recadinhos de Marcelo, de Costa ou de Cravinho.

A base norte-americana das Lajes, que tinha perdido boa parte do interesse militar que teve para os EUA, voltou a ser reanimada. Em meados do ano passado, já com a guerra a decorrer, os norte-americanos diziam não ter planos de reforço para a base. Mas em maio de 2023 — coincidindo com o arrastar de pés da prometida contra-ofensiva ucraniana — levaram a cabo um exercício aéreo com 300 militares vindos dos EUA. 

Nessa ocasião, o comandante norte-americano da base admitia o reforço do contingente permanente, afirmando que “a concorrência estratégica é um monstro que exige muita avaliação e análise”. E para que não ficassem dúvidas sobre a importância das Lajes para os propósitos dos EUA, afirmou: “O que podemos fazer a partir deste local é praticamente único no Atlântico e na região de África”.

O acordo das Lajes permite aos EUA usarem a base para operações militares da Nato. Seria ingenuidade pensar que a atenção renovada dada às Lajes não tem nada a ver com a Ucrânia ou com o alargamento da acção da Nato. Mas para o governo português, silencioso sobre tudo isto, é como se o assunto se passasse num qualquer arquipélago do Pacífico de nome estranho…

Sem legitimidade

Que legitimidade têm o presidente da República e o Governo para envolver o país numa guerra de consequências imprevisíveis, ditada por interesses alheios? Que democracia é esta que permite a dirigentes políticos transitórios arrastar um país e um povo inteiro para um sorvedouro sem fundo que compromete a vida de gerações?

Importa desmontar a propaganda, fielmente seguida pelos dirigentes nacionais, de que nas fronteiras da Ucrânia se defende a democracia e a liberdade da Europa. Ao contrário, é a liberdade dos povos europeus que está em risco quando os seus dirigentes apresentam a Ucrânia como um modelo de regime a defender e a apoiar. A Ucrânia, dominada por um regime ditatorial que aboliu toda a oposição, é apenas a fronteira leste de uma guerra promovida e gerida pelos EUA, paga com o sacrifício dos ucranianos e dos povos europeus.

Por um movimento popular contra a Nato

São as classes trabalhadoras a pagar os maiores custos políticos e materiais do rumo para que o país está a ser arrastado. Mas não são apenas as questões da carestia e dos baixos salários que exigem resposta de massas — são também as opções políticas dos governantes, ao seguirem a reboque dos EUA e da Nato. Cada euro de despesa militar a mais será um euro a menos no lado dos trabalhadores. Cada equipamento enviado para a guerra apenas aumentará os riscos de alastramento do conflito. 

A submissão dos dirigentes e da maioria das forças políticas da UE aos desígnios hegemónicos dos EUA divide e enfraquece os povos da Europa. Mas também faz deles a única fonte possível de resistência à política de guerra. Será essa a base segura para levantar um movimento de contestação do imperialismo, e da Nato como seu braço armado. 


Comentários dos leitores

José Mário Costa 6/7/2023, 13:00

E nada de críticas, leves que fossem, à invasão da Rússia a país sobernano? Ou essa demarcação só fazem ao EUA e à OTAN?

Joseafonsolourdes 6/7/2023, 13:09

Interessante perspectiva! Abraço, camarada!

Editor 6/7/2023, 20:04

Caro José Mário Costa
A senteça salomónica que sugeres (ao menos uma crítica leve à Rússia para contrabalançar as acusações feitas à Nato) é o caminho mais directo para uma posição de meias tintas: por uma lado isto, por outro lado aquilo. A responsabilidade da guerra está do lado de quem a tornou inevitável, tendo feito tudo para isso: os EUA. Não há meio termo nem atenuante possíveis. Foi a Nato que se expandiu para Leste. O "país soberano" que referes foi alvo de um golpe de Estado e prestou-se depois a massacrar as populações que não se conformaram com o rumo seguido, fazendo uso da pior escumalha nazi. Por não se dar o devido peso a estes factos é que a opinião do grande público está como está, aceitando a patranha de que o problema surgiu do nada em 24 de fevereiro do ano passado.
Saudações,
Urbano de Campos


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