10 de Junho, espelho de dois regimes

Manuel Raposo — 9 Junho 2023

Diário Popular, 13 Junho 1978. Funeral de José Jorge Morais morto pela PSP em 10 de Junho quando protestava contra uma manifestação fascista

O fascismo português comemorava o 10 de Junho sob uma designação bem expressiva: “Dia da Raça”, em exaltação dos feitos coloniais e da supremacia branca e, a partir de 1961, como suporte ideológico e político da guerra colonial. O regime democrático converteu a mesma data na evocação de uma mítica comunidade de língua e de cultura de raiz portuguesa-europeia, na tentativa de — nessa base superficialmente comum a vários povos e geografias — restaurar laços políticos e interesses económicos que as guerras de libertação colonial tinham combatido e rompido. As comunidades portuguesas emigradas tornaram-se pretexto, veículo e palco dessa diplomacia de veludo. Sobretudo, nada de acordar os fantasmas do colonialismo e do fascismo.

Efectivamente, nunca o 10 de Junho “democrático” foi o que devia ser: a expressão, radicalmente oposta à do fascismo, de um combate anti-racista, anti-fascista, anti-colonial. Apenas o foi, não por iniciativa do novo poder, mas por parte de movimentos populares que se opunham à “normalização” que a democracia novembrista foi fazendo de personagens, de instituições, de preceitos vindos de antes do 25 de Abril de 74. 

Veja-se a fantochada do julgamento dos Pides por um tribunal militar, recheado de juízes do antigamente, que praticamente os absolveu de tudo, inclusive do assassinato de Humberto Delgado. Veja-se a benevolência que fez regressar Américo Tomás do exílio, por acordo entre Ramalho Eanes e Mário Soares, sem que fosse chamado à pedra por quase duas décadas de mandato. Veja-se a autorização e a protecção policial às manifestações fascistas, sob a designação de “nacionalistas” e a coberto do “direito democrático”. 

Um dos feitos da democracia novembrista foi o de desarticular as organizações populares que, até Novembro de 75, tinham constituído a mais sólida barreira contra o levantar de cabeça das forças fascistas. A partir de então, em nome de uma suposta “igualdade de cidadania”, a tropa e as polícias — a mando do novo poder instalado em Belém e em São Bento — passaram a dar protecção “democrática” à reorganização da extrema-direita, e a combater as organizações políticas e populares verdadeiramente anti-fascistas que se lhe opunham. 

O culminar desse processo está hoje personificado no Chega e em Marcelo Rebelo de Sousa. Um aproveitou o caminho aberto para dar voz a boa parte da extrema-direita que andou desgarrada durante anos, reorganizando-a em força política com assento na “casa da democracia” e ambições de governo. Outro, filho e beneficiário do colonialismo e do fascismo até à maioridade, chegou, sem retractação, com toda a normalidade, ao vértice do regime.

Por tudo isto, só podemos saudar a realização, neste 10 de Junho de 2023, de iniciativas anti-fascistas e anti-racistas. O Dia de Luta Anti-Racista evocará, em Lisboa, a memória de Alcindo Monteiro, assassinado há 28 anos por um bando fascista. O Arraial Anti-Racista, também em Lisboa, vai levar a debate a questão da luta de classes na cidade periférica e as reclamações populares levantadas pelo movimento Vida Justa.

Uma evocação que se impõe

Completam-se, neste 10 de Junho, 45 anos sobre o assassinato do estudante José Jorge Morais, de 18 anos, morto a tiro pela polícia quando protestava no Largo Camões, em Lisboa, contra uma manifestação da extrema-direita autorizada pelo Governo Civil e estimulada pelo regresso a Portugal do ex-presidente fascista Américo Tomás. José Jorge Morais era membro da União da Juventude Comunista Revolucionária, organização juvenil do PCP(R). Nessa mesma manifestação, foi ferido gravemente, igualmente a tiro, o professor Jorge Falcato Simões, então com 24 anos, militante da UDP, que ficou paraplégico; e ainda Dina de Jesus Rodrigues, de 43 anos. 

Na protecção às duas centenas de manifestantes fascistas, a PSP disparou dezenas de tiros de G3 e de pistola de 9mm. Amadeu Cunha foi identificado como um dos polícias responsáveis pelo tiroteio, sem que nada lhe tenha acontecido. O jornal Primeiro de Janeiro titulou “PSP varreu a tiro de metralhadora”. O Diário de Lisboa denunciava “Polícia protege a tiro manifestação fascista”. 

Manifestação e contra-manifestação semelhantes ocorreram no Porto no mesmo dia.

O então primeiro-ministro Mário Soares desvalorizou a manifestação de Lisboa como “de menor importância” e elogiou a intervenção da PSP.

(Ver reportagem “10 de junho de 1978: quando a PSP disparou a matar para proteger fascistas” em setentaequatro.pt)


Comentários dos leitores

leonel l. clérigo 13/6/2023, 12:43

O texto acima de MR tem a virtude de, ao fim de quase 50 anos, continuar a relembrar uma coisa simples mas certeira: os PROPÓSITOS maioritários que afloraram no "Ano e meio" que durou o 25 de ABRIL de 74, NADA TÊM A VER com o que vem vigorando desde o 25 de NOVEMBRO de 1975. NADA de CONFUSÕES até porque sabemos que "à noite todos os gatos são pardos".

1 - Quem viveu Abril nas RUAS, podia detectar por debaixo da "festa de libertação" da DITADURA FASCISTA/SALAZARISTA, uma escondida preocupação: que fazer agora a este PAÍS PORTUGAL, perdidas as COLÓNIAS das quais vivia há largos séculos?
A resposta da ESQUERDA - uma expressão pouco clara mas que basta a quem não vislumbra a "especificidade" de uma clara ANÁLISE de CLASSES - a esta DECISIVA QUESTÃO era - e continua a ser - NENHUMA. A ESQUERDA NÃO SABE COMO SAIR do ATAFACHO do SUBDESENVOLVIMENTO. Mas é preciso que se diga que não tem tido CORAGEM de se organizar para isso.

2 - Quanto à DIREITA (a GRANDE BURGUESIA é quem dita as LEIS), ainda sabe menos: a "EUROPA CONNOSCO" é isso mesmo. Ou dito de outra maneira: o velho RENTISMO que o IMPÉRIO PERMITIA sem esforço foi substituído pela DIVISÃO DESIGUAL do TRABALHO que a EUROPA DESENVOLVIDA impôs ao "seu" SUL SUBDESENVOLVIDO. Como MODO de VIDA, esse "NOVO" RENTISMO é hoje bem expresso no TURISMO e seus SUBPRODUTOS que vão da "Venda do SOL" e dos "lotes", ao "Alojamento Local". E tudo a bem do célebre "CRESCIMENTO do PIB". Quanto ao DESENVOLVIMENTO, esse fica à guarda da EUROPA do NORTE e está bem entregue. Por isso lhe foi bem entregue a EFACEC como já tinha sido a SOREFAME ao Canadá.

3 - Julguei ver, muito recentemente, alguém "levantar a lebre": este PAÍS tem futuro, tem razão de EXISTIR?
É claro que, como está, está na rota de VEGETAR até à Morte. E se até aqui foi a EUROPA CONNOSCO que nos conduziu, naturalmente que é ela que está em causa.
E se resta ainda a nós, PORTUGUESES, um pouco de MASSA CINZENTA, já não temos muito tempo para "atacarmos" uma ALTERNATIVA.
E surge a questão: haverá por aí ALGUMA que fale de COISAS REAIS e jogue no lixo a lengalenga APODRECIDA do FASCISMO com quase um Século de vida e que surgiu como IDEOLOGIA de GUERRA para SALVAR um IMPÉRIO que gente esclarecida há muito o via PERDIDO?...


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