Crise financeira sobre fundo de guerra

Manuel Raposo — 14 Maio 2023

13 de março. Polícia controla acesso ao SVB. Clientes correram a levantar depósitos após colapso do banco.

Desde começos de março, quando faliu o Silicon Valley Bank, repetem-se as declarações dos poderes públicos afiançando a segurança do sistema financeiro norte-americano e europeu. Os factos, porém, mostram que as ameaças de falências persistem sem que os remédios produzam as melhoras desejadas. De facto, os avisos que apontam para um mal de raiz afectando todo o sistema financeiro ocidental, e possivelmente mundial, afirmam sem sombra de dúvida que o problema ultrapassa em muito os colapsos até agora verificados. 

Para além dos problemas resultantes de uma finança hiper-desenvolvida, sem proporção com os valores reais da economia, há hoje a considerar uma questão com contornos inéditos: a competição, levada ao extremo, entre blocos económicos que vão quebrando os laços que os uniam até há pouco e vão abrindo, em ritmo acelerado, um fosso entre dois mundos. 

Coloca-se o desafio de saber em que medida este factor, relativo à ordem política global, condicionará a evolução dos acontecimentos, seja no imediato quanto ao descalabro financeiro que se anuncia, seja a respeito das mudanças na economia mundial nos próximos anos, seja ainda no âmbito do confronto geral entre grandes potências, confronto este que seguramente determinará a configuração do mundo num futuro próximo.

Factos notórios

A fonte do problema mais recente está nos EUA, tal como em 2008, tendo desta vez começado em bancos  regionais de média dimensão, alguns deles especializados no financiamento de startups dos sectores tecnológicos de ponta. Em menos de dois meses, três deles foram à falência e outros ameaçam ter o mesmo destino. 

Apesar das vozes em contrário e dos apelos à calma, deu-se em poucos dias uma propagação rápida a outros sectores bancários o que levou à intervenção do banco central dos EUA (Fed) com receio de que o contágio se generalizasse e atingisse os grandes bancos. Segundo testemunhos abalizados, centenas de bancos dos EUA estão falidos (Nouriel Roubini), ou mesmo metade dos 4.800 bancos que constituem a rede bancária norte-americana (Amit Seru, Stanford University).

A crise não se confina aos EUA, razão pela qual responsáveis norte-americanos e europeus trataram imediatamente de concertar medidas paliativas. Mas a evolução das últimas semanas não aliviou as ameaças: a corrida ao ouro dá sinal da insegurança sentida por investidores e especuladores diante da perspectiva real de uma recessão nos EUA, facto que levou os estrategas do JPMorgan, um dos maiores bancos do mundo, a admitir que essa poderá ser uma defesa contra aquilo a que chamam “um cenário catastrófico”. (Bloomberg, 5 maio)

Na Europa, foi o Crédit Suisse a afundar-se e a ser absorvido pelo seu concorrente UBS, numa corrida contra-relógio conduzida pelo Estado suíço para evitar uma falência estrondosa de consequências imprevisíveis. A causa próxima do desmoronamento do CS (prevista ainda antes dos colapsos desencadeados nos EUA) terá estado na recusa de investidores sauditas (o Saudi National Bank) em reforçarem o capital do banco, provocando forte desconfiança nos meios financeiros. 

Dias antes deste desenlace, responsáveis da banca suíça tinham manifestado desagrado com a decisão do seu governo em alinhar com as sanções à Rússia, decretadas logo após o início da guerra na Ucrânia — sanções essas, lembremos, ao abrigo das quais o Ocidente congelou e usurpou centenas de milhões de euros de capitais russos. (Financial Times, 8 março)

Esta pirataria de alto coturno terá levado “centenas” de capitalistas asiáticos (chineses e outros) a recearem depositar o seu dinheiro na Suíça, temendo que lhes acontecesse o mesmo que aos russos. (Idem)

Este facto, denunciado pelas próprias autoridades suíças, mostra como o confronto desencadeado pelos EUA contra a Rússia e a China, arrastando consigo os europeus, está a ter papel nesta crise bancária, somando-se aos problemas intrínsecos da hiper-financeirização do capital ocidental.

Recuando uns anos

A crise financeira de 2008 foi mitigada com injecções maciças de dinheiro para cobrir as perdas e evitar as falências dos bancos, de outras instituições financeiras e de empresas das áreas comerciais e industriais. Os níveis de crédito foram assim sustentados à custa de uma multiplicação gigantesca de papel em circulação. Com os problemas resultantes da pandemia, que paralisou grande parte da actividade económica, repetiu-se o procedimento dos bancos centrais: injectar dinheiro.

Somado a isto, as taxas de juro baixas, ou mesmo negativas, visaram igualmente difundir o crédito, na ideia de estimular o crescimento económico, que teima em manter-se anémico e que anémico se manteve apesar de todos estes esforços dos poderes públicos.

A quantidade de dinheiro em circulação (não só dinheiro propriamente dito, mas também todas as múltiplas formas de crédito, que acabam por representar uma capacidade aquisitiva, pelo menos potencial) ultrapassa em muito o valor real dos bens efectivamente criados e disponibilizados pelos sectores produtivos da economia. 

Crédito, alavanca do consumo

Porque tem sido necessário manter o crédito em alta? Nas últimas décadas (praticamente desde os anos de 1970) o capitalismo mundial sofre de um mal incurável. Dito simplesmente: a enorme capacidade produtiva que atingiu não tem correspondência na capacidade de compra do mercado; a sobreprodução de bens depara-se com um subconsumo crónico. 

Deve-se isto, em última análise, ao enorme progresso tecnológico, responsável tanto pelo aumento exponencial do volume de produção e pela correspondente redução do valor unitário dos bens, por um lado; como pela diminuição tendencial da força de trabalho empregue e da quebra dos montantes salariais, por outro lado. 

Alimentar o crédito generalizado tem sido essencial nas últimas décadas para manter os negócios em funcionamento. Com efeito, sendo o capitalismo contemporâneo cada vez mais um capitalismo de baixos salários (Fred Goldstein), a quebra global dos salários reais resulta numa quebra do poder de compra global só atenuada pelo alargamento das linhas de crédito para as mais diversas finalidades de consumo.

Mas, ao colocar-se o consumo na dependência do crédito, cria-se um “sistema artificial de extensão forçada do processo de reprodução” do capital. Acontece que “num sistema de produção em que todo o edifício complexo do processo de reprodução assenta no crédito, se o crédito cessa bruscamente (…) é fácil de ver que uma crise tem então de se produzir” (K. Marx). 

É por isso que “à primeira vista, toda a crise se apresenta como uma simples crise de crédito e de dinheiro”. Na verdade, porém, “na base de toda a crise” está “um volume de compras e vendas [representadas por títulos de crédito] que ultrapassa de longe as necessidades da sociedade”, isto é, a sua capacidade aquisitiva. Por isso também, “nenhuma legislação bancária poderá afastar uma crise” (idem).

A estagnação permanece, contudo

A estagnação do crescimento económico, que afecta sobretudo o capitalismo ocidental  (como os dados mais recentes do insuspeito FMI vieram confirmar), tem resistido a todas as medidas que a visavam combater. E mais: contrasta com a enorme multiplicação do capital fictício — capital que, não encontrando condições para uma aplicação e valorização produtiva, se dedica à especulação financeira na busca de rendimento. 

Dentro da massa enorme de activos financeiros, tem especial relevo o mundo obscuro dos chamados derivados. Segundo dados do Banco de Compensações Internacionais, o mercado de derivados eleva-se a mais de 632 biliões (milhões de milhões) de dólares, seis vezes o valor do PIB mundial! (Réseau International, 13 abril)

A causa primeira da inflação galopante que se desencadeou de há dois anos para cá está, pois, nos próprios remédios dados à crise financeira de 2008: o fornecimento à banca, às instituições financeiras e à grandes empresas de “liquidez” praticamente ilimitada por parte dos Estados. 

Ao terreno assim adubado pelos poderes públicos, veio juntar-se a quebra das cadeias de abastecimento resultante da pandemia (causando escassez de bens, atrasos de fornecimento, subida dos preços dos transportes) e também a guerra económica contra a Rússia e a China desencadeada pelos EUA e seguida pela UE (afectando energia, cereais, fertilizantes, matérias primas diversas). 

Efeitos secundários de alto risco

A subida dos juros é a medida que no Ocidente está a ser aplicada para combater a inflação. Os efeitos de uma inflação descontrolada são sabidos. Um exemplo é a redução do poder de compra, pela desvalorização do dinheiro, reforçando a tendência para a quebra da procura global com que o capitalismo se debate. Outro exemplo é a desvalorização das dívidas, facto particularmente preocupante para os credores das gigantescas dívidas dos Estados. Que dirão, por exemplo, os credores alemães e franceses da dívida do Estado português se ela for paga pelo valor nominal do euro desvalorizado em 9 ou 10% por efeito da inflação?

A subida dos juros tem, no entanto, consequências indesejadas por quem a promove, mas inevitáveis. Provoca contracção dos negócios, agravando o marasmo da economia. Reduz o investimento, comprometendo a perspectiva de crescimento futuro. Fomenta as falências no sistema financeiro, desvalorizando os activos (carteiras de acções, de títulos do tesouro, etc.) por ele detidos. Gera desemprego, reduzindo o poder de compra, multiplicando a pobreza e criando terreno para agitação social. 

A ironia de tudo isto é que cada medida tomada para tratar de um mal gera outro mal que tem de ser remediado por medidas contrárias. O exemplo mais recente vem das falências dos bancos norte-americanos: para combater a inflação, a Reserva Federal subiu os juros, visando reduzir o volume de dinheiro em circulação; a subida dos juros desvalorizou os activos dos bancos e levou-os à falência; para evitar que as falências se sucedessem em dominó, o Estado teve de prometer segurar todos os depósitos de qualquer montante, injectando dinheiro no sistema financeiro…

Uma espada sobre a cabeça

A crise financeira de que o mundo volta a abeirar-se, desencadeada em pleno ou mitigada, permanece como uma espada sobre a cabeça de todo o sistema económico capitalista e obviamente sobre a cabeça das populações assalariadas. 

Uma crise financeira, como vimos, não é “só financeira”. As crises económicas aparecem sempre sob a forma de crises financeiras porque, no capitalismo contemporâneo, é através da finança, particularmente através do crédito, que todo o sistema económico é gerido e a sua evolução é determinada.

A ausência de crescimento, a ameaça de recessão, etc., apresentam-se ainda mais negras se entendermos que os tremores que abalam a finança antecipam a ameaça de um sismo económico de proporções inéditas. Por outras palavras, as recorrentes crises financeiras são sinal de uma crise económica que se arrasta sem solução, acumulando um potencial explosivo inédito — não apenas no estrito plano da economia mas também na esfera política. 

Daí as ameaças crescentes de guerra entre as grandes potências que lutam pela primazia mundial, dando conta de que as disputas económicas não cabem já nos limites da competição em torno dos negócios, mas pelo contrário transbordam para o terreno do confronto político e militar. 

Na situação presente, portanto, para além dos factores intrínsecos ao mecanismo de um capitalismo em pane, há que ter em conta factores de natureza política e de competição mundial que afectam de modo igualmente determinante o curso dos acontecimentos. 

As actuais ameaças ao sistema económico e financeiro desenrolam-se num quadro geral novo, marcado pela tendência que se vai afirmando para a partição do mundo em blocos — um formado pelas potências imperialistas (o “Ocidente alargado”, na expressão das próprias), outro que se vai constituindo por oposição ao primeiro (o chamado “Sul Global”). 

Não é possível ignorar o papel que este grande confronto tem no desenrolar da crise actual.

De onde deriva esta mudança? 

Depois de trinta anos de desenfreada mundialização, em que o capitalismo imperialista tomou conta de dois territórios imensos que lhe tinham estado vedados, a Rússia e a China, e se pôde expandir sem oposição externa por todos os cantos do globo, eis que surgem fenómenos novos com novos actores: o reerguer da Rússia como potência nacional e militar, respaldada nos imensos recursos de que dispõe; e a revelação da China como potência económica capaz de desafiar a hegemonia dos EUA e associados.

O mundo que tinha sido montado, sob batuta norte-americana, desde a segunda grande guerra — e que dera aos EUA a condição não apenas de potência imperialista de primeiro plano, mas também de força hegemónica do capitalismo imperialista mundial — esse mundo chegou de certo modo a um limite. A teia que os EUA urdiram para seu próprio benefício passou a ser um colete de forças desde o momento em outras potências puderam desafiar o seu domínio. 

É isto que explica o facto de os EUA — até há pouco os campeões da livre circulação de quase tudo (bens, capitais, cultura, informação) — se terem remetido a um proteccionismo próprio das nações e das economias acossadas.

O toque a reunir, que vem de antes da guerra na Ucrânia, e com o qual os EUA procuram rodear-se dos aliados fiéis (submetendo-os) para tentar isolar a China e a Rússia, é sintoma de duas coisas: da fraqueza que atinge os EUA, progressivamente incapazes de competir com os adversários mais poderosos no estrito plano económico; e do recurso crescente a meios outros, que não os económicos, na tentativa de travar esses adversários, isto é, a força militar.

As tarifas aduaneiras sobre produtos estrangeiros, as sanções dirigidas aos concorrentes (países e empresas), a confiscação de somas astronómicas de adversários ou simples vítimas (Rússia, Irão, Venezuela, Iraque, Afeganistão), os propósitos (largamente ilusórios) de re-industrialização — todas estas medidas adoptadas pelo “Ocidente alargado” são a evidência do confronto gigantesco que se vai desenhando entre dois mundos.

A situação lembra um pouco o final do século XIX. Dizia F. Engels, cerca de 1886, numa nota a O Capital, que “estas protecções aduaneiras não são mais do que as armas destinadas à batalha geral da indústria, que decidirá finalmente da dominação sobre o mercado mundial”. 

Há todavia uma diferença significativa. Na época, era a Inglaterra a potência dominante e era ela que pugnava por eliminar as barreiras; e os seus concorrentes rodeavam-se de medidas de protecção para sobreviverem. Hoje, é a China que, confiante da sua força económica, se bate pela liberdade de comércio; e os EUA, em perda, acoitam-se atrás de barreiras de toda a espécie.

Uma questão nova

Esta divisão do mundo coloca uma questão, em grande medida inédita, a respeito da ameaça financeira-económica-social-institucional que impende sobre a civilização burguesa ocidental. Em que medida o colapso financeiro que se anuncia a partir dos EUA e da Europa afectará todo mundo? Em que medida o corte que se aprofunda entre dois mundos manterá a salvo a China, a Rússia, a Índia, o Irão e os países que alinham por esse lado? 

Da resposta que a realidade der a esta questão poderemos concluir sobre o ritmo a que o afundamento do “Ocidente alargado” se processará.

A directora-geral do FMI, Kristalina Georgieva, fez recentemente uma visita à China que proporciona dados interessantes. Falando em Pequim, no Fórum de Desenvolvimento da China, disse que até 90% das economias avançadas terão uma queda do PIB em 2023, mas que “a Ásia será um foco de luz” na penumbra geral. 

A China e a Índia conjuntamente representarão metade do crescimento mundial. A China, passados os condicionamentos da pandemia, dará “um forte salto” com um crescimento de 5,2% em 2023, contribuindo com um terço do crescimento mundial. Por um efeito de arrasto, cada 1% de crescimento da China induzirá um crescimento de 0,3% nas restantes economias da Ásia.

A economia global crescerá (apesar destas ajudas) menos de 3% em 2023, e o mesmo marasmo continuará nos próximos cinco anos, o pior desempenho desde 1990. Os EUA esforçam-se por alcançar em 2023 um crescimento de 0,7%, a UE de 0,8% e o Japão de 1,3%, todos eles puxando para baixo a média geral.

Georgieva alertou ainda para os “riscos de fragmentação geo-económica” que podem conduzir a uma “divisão do mundo em blocos económicos rivais”. Em consequência, poderá dar-se uma quebra do PIB mundial de 7% (7 biliões de dólares), o equivalente à produção conjunta do Japão e da Alemanha, ou mesmo de 12%. Por tudo isto, as previsões para a economia mundial a médio termo “permanecem em baixo”. (RT, 26 março)

Acresce, como se viu, que as medidas tomadas no Ocidente para debelar a inflação, que nalguns países chega a ultrapassar os 10%, são factor suplementar para fazer cair o consumo, o emprego e a economia. Enquanto isso, a inflação na China mantém-se abaixo de 1%, o consumo interno cresce, existe uma forte procura de crédito na economia real e não há necessidade de subir as taxas de juro. (Global Times, 20 abril)

A manterem-se estas tendências — somadas à perda de papel do dólar e à consolidação de organizações alternativas de dimensão mundial, como os BRICS e o Novo Banco de Desenvolvimento, a Organização de Cooperação de Xangai, a nova Rota da Seda —  parece inevitável que se abra um fosso entre dois blocos rivais, como temia Georgieva. 

Presenciamos as contradições, cada vez mais extremadas, de um capitalismo senil, incapaz de dar resposta às exigências de progresso da humanidade. O mundo, concretamente o mundo ocidental, encontra-se “no atoleiro sem saída de uma depressão permanente e endémica”. Cada medida tomada para tentar solucionar uma crise “contém em si o germe de uma crise futura bem mais poderosa”. Mesmo à distância de quase 140 anos, estas palavras de F. Engels parecem especialmente dedicadas ao momento que vivemos.

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Citações de K. Marx e F. Engels: O Capital, livro terceiro, capítulo XXX Capital-dinheiro e capital real

Fred Goldstein, Low-wage capitalism: colossus with feet of clay (World View Forum, 2009)

Réseau International, L’économie mondiale dans l’expectative, Jean-Luc Baslé


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