A guerra, para além das armas

Editor / Dominique Delawarde — 19 Abril 2023

A velha divisão imperialista do mundo está posta em causa

A insistência com que os governos ocidentais e todos os grandes meios de comunicação falam, ao detalhe, da guerra na Ucrânia (desde as operações militares às minúcias dos armamentos) vai a par de um silêncio comprometido acerca das alterações na paisagem económica do mundo, que a guerra não desencadeou em primeira mão, mas veio incrementar. O potencial e efectivo crescimento do conjunto de países que não alinhou nas sanções do Ocidente contra a Rússia contrasta com o marasmo e o retrocesso verificado nas economias ocidentais, como ainda recentemente o insuspeito FMI não pôde deixar de revelar em números. Que importância tem esta evidência?

Mais do que uma situação temporária — ou que possa ser remediada com umas quantas medidas políticas — trata-se de uma evolução ditada por razões de fundo, de ordem material, e portanto inelutável. O que está a dar-se é uma viragem no curso da história das últimas décadas, ou mesmo do último século, a que não se pode escapar. O desenlace previsível é a quebra do poder que o Ocidente imperialista tem exercido sobre o resto do mundo — às mãos, precisamente, do resto do mundo que o Ocidente julgava ter eternamente subjugado. 

Percebe-se que o poder e os seus porta-vozes evitem falar do assunto. É que, no que respeita à guerra militar, ainda se pode ir fornecendo mais armas e sacrificando mais ucranianos, enquanto os houver para sacrificar no altar dos “valores ocidentais”. E pode-se sempre ir mentindo e tripudiando acerca da sorte das operações, para adiar o desenlace e manter viva a ilusão de uma vitória. 

Mas, no que respeita à “Guerra dos Mundos” que envolve o resto do planeta, não há propaganda que valha, porque o seu curso mede-se em números, em potencial de crescimento, em possível redução da pobreza, em novas alianças, em novas relações de troca, em novas moedas, em manifestações de independência que mobilizam sete dos oito mil milhões dos nossos contemporâneos.

Como bem realça o artigo de Dominique Delawarde, a guerra na Ucrânia está a provocar através da economia, mais do que pela força das armas, um enfraquecimento duradouro da coligação ocidental.

 

ECONOMIA MUNDIAL: O BRAÇO DE FERRO BRICS-NATO EM NÚMEROS

Dominique Delawarde, Réseau International, 13 abril 2023

Os últimos números do FMI [sobre a situação da economia mundial] acabam de ser publicados em 12 de abril de 2023. Eles merecem ser cuidadosamente examinados, tendo em mente que o FMI é um órgão mantido e dirigido pelo Ocidente e que as suas previsões são tradicionalmente optimistas para o Ocidente e mais severas para os países que, ao Ocidente, se apresentam como desafiadores (Rússia e China nomeadamente).

A cada seis meses, são feitas actualizações dessas previsões para reflectir os resultados reais. De acordo com as minhas observações ao longo de mais de uma década, tais actualizações produzem frequentemente resultados mais favoráveis do que o previsto para os países BRICS em geral, para a China e a Rússia em particular.

Mais de um terço do PIB mundial

No ano 2000, o PIB dos cinco países que iriam criar os BRICS representava 18,1% do PIB mundial em paridade de poder de compra (PPC). Hoje, a participação desses cinco países subiu para 32,1% do PIB global e o FMI prevê que essa parcela continuará a aumentar, porque o crescimento dos BRICS, liderado pela China e pela Índia, é muito mais forte do que o dos países ocidentais. 

[A previsão do FMI para 2028 indica que, só os cinco actuais membros dos BRICS, atingirão 33,6% do PIB mundial. Em valor absoluto, o PIB dos cinco BRICS subirá nesse período de 56,04 biliões (milhões de milhões) de dólares para 75,13 biliões, um crescimento superior a 34%, enquanto o PIB mundial crescerá no mesmo período cerca de 28%. China e Índia somadas detêm mais de 80% daqueles valores, quer em 2023, quer em 2028. O crescimento da China nos próximos cinco anos será de 33% e o da Índia de 48%.]

Um peso crescente na economia mundial

A partir da reunião cimeira anual de agosto de 2023, a realizar na África do Sul, os BRICS provavelmente começarão a expandir-se gradualmente, seleccionando os melhores candidatos para integrar o grupo como membros permanentes. Cerca de vinte candidatos estarão na fila, alguns dos quais já se candidataram oficialmente. Ao integrar de um a dois países por ano até 2028, os BRICS (que terão que mudar de nome) poderão ter de 10 a 15 países membros naquela data. O seu peso na economia mundial irá aumentar, sem dúvida e de modo significativo.

[Com efeito, os onze países candidatos — Indonésia, México, Arábia Saudita, Egipto, Irão, Nigéria, Argentina, Emirados Árabes Unidos, Argélia, Bielorrússia e Tunísia — contribuem com 10,2% do PIB mundial actual, e contribuirão com 10,4% em 2028.]

É de notar que a lista de candidatos está longe de ser exaustiva. Alguns estados estão relutantes em tornar público o seu desejo de se juntar aos BRICS, temendo retaliação do campo ocidental. Mas, com a entrada de um ou dois novos países já em 2023, um efeito cascata poderá muito bem ser observado.

Também não se deve esquecer que a Turquia há muito tempo manifesta interesse em se juntar aos BRICS. E não hesitará em dar o passo se o barco ocidental meter água ou se a tutela dos EUA se tornar demasiado pesada… [O PIB da Turquia deverá crescer 28% até 2028.]

Declínio inexorável do Ocidente

Do lado ocidental, o declínio continua inexoravelmente, ou pelo menos a participação das economias ocidentais no PIB global (PPC).

O PIB dos EUA, só por si, era 50% do PIB mundial no final da guerra em 1945. Em 2000, representava apenas 20,3%. Presentemente, não passa de 15,4% e diminui de ano para ano. Os europeus representavam também 20,3% do PIB mundial (PPC) em 2000. Hoje, essa participação é de apenas 14,6% e continua a diminuir.

Claramente, o campo ocidental já não tem o peso económico que ainda tinha há 23 anos e que lhe permitia dominar por completo a economia e a finança mundial. 

Acresce que a operação de desdolarização do comércio mundial iniciada pela Rússia e implementada por todos os países BRICS ainda não produziu seus primeiros resultados. Um número crescente de países, porém, está a juntar-se, dia após dia, às trocas comerciais contornando o dólar para escapar às pressões, incluindo as sanções, e à extra-territorialidade do direito dos EUA ligada ao uso do dólar nas transacções.

Essa desdolarização, que apenas começou, poderá ter efeitos sobre a economia mundial numa escala sem precedentes, impulsionando as economias a libertar-se do dólar e precipitando o declínio dos estados que se apegam às “regras”, agora obsoletas, do passado.

As primeiras indicações sobre estes efeitos poderão muito bem ser perceptíveis já em outubro de 2023 ou abril de 2024, por ocasião da actualização dos números pelo FMI.

Mais do que pela força das armas

Venha o que vier, o mundo de amanhã será muito diferente do de ontem e qualquer volta atrás parece improvável. A desclassificação do Ocidente provavelmente levará alguns anos, mas daqui em diante é inevitável e irreversível.

A guerra na Ucrânia, surgida após a fase aguda da crise da Covid, terá precipitado as coisas. A operação especial [russa] terá desempenhado plenamente o seu papel, obtendo, através da economia, mais do que pela força das armas, um enfraquecimento duradouro da coligação ocidental e da ideologia neo-conservadora e globalista da sua governação.

Está dita a missa.

Tradução, adaptação e subtítulos MV


Comentários dos leitores

Carlos 19/4/2023, 8:11

O que faz com que eu não esteja optimista, é a convicção de que os EUA preferirão destruir uma boa parte do planeta, desencadeando uma 3ª guerra mundial e nuclear, a perder o seu domínio do mundo. O que fez com que até agora eles não a tivessem desencadeado, é o facto da Rússia ter mísseis hipersónicos, contra os quais o seu sistema de defesa não funciona. Mas, quando se alcançar o momento decisivo, eles irão atacar com tudo o que têm e simultaneamente contra a Rússia e a China.

leonel l. clérigo 20/4/2023, 12:19

GUERRA e PAZ

O que acima diz CARLOS, não é nada desafeiçoado: é uma forte probabilidade acontecer.
Efectivamente, os IMPERIALISMOS que têm surgido na HISTÓRIA - melhor será dizer, as suas CLASSES DOMINANTES - não abandonam "de mão beijada" a "BOA VIDA" que o IMPÉRIO lhes deu obrigando-os, perante a perda do PODER, a "arregaçar as mangas" e como se diz coloquialmente, a voltar "bulir".

1 - Contudo, julgo que o que se coloca agora em causa - e a retomada dos "velhos" BRICS parecem anunciar - é o próprio CAPITALISMO. Este SISTEMA ECONÓMICO "PRODUTIVISTA" - que nasce da TRANSIÇÃO do "marasmo do FEUDALISMO" - era adequado ás condições concretas em que nasceu: canalizar as ENERGIAS INDIVIDUAIS para TODA a PRODUÇÃO ESTAGNADA.

2 - Mas hoje, com o desenvolvimento espantoso das FORÇAS PRODUTIVAS, aquela "BALBÚRDIA PRODUTIVISTA" perdeu qualquer sentido numa população de 8.000 milhões em todo o PLANETA: com tanta gente a chafurdar "sem rei nem roque", só os marados da IL pensam ser possível voltar aos "TEMPOS GLORIOSOS" da Rainha VITÓRIA.
O que é preciso é PLANIFICAR a PRODUÇÃO PLANETÁRIA: só gente doida pode acreditar que "cada um por si" é a FORMA EXCELENTE de HOJE se resolver os graves problemas com que nos confrontamos entre os quais o excesso de POPULAÇÃO do Planeta há muito fomentado pelo FAMOSO "MERCADO" CAPITALISTA.

3 - De qualquer maneira - e apesar da forte probabilidade de CARLOS - julgo ser possível (perante a sua História) que os ESTADOS UNIDOS não enveredem por esse caminho apesar do SUICÍDIO ser coisa sempre possível. Sobretudo se não fôr "medicamente assistido..."


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