O mundo já mudou

Editor / O Comuneiro — 11 Abril 2023

Vida Justa. Manifestação em Lisboa, 18 março 2023. Homenagem à Comuna

À vista de uma catástrofe financeira largamente anunciada, o Ocidente aproxima-se de um abismo de profundidade e de contornos ainda por determinar, mas que não será seguramente coisa ligeira. O desfecho que se pode antever da contenda que se trava entre o sistema imperialista ocidental e o resto do mundo terá certamente uma dimensão histórica. Querer manter equidistância e indiferença perante este confronto, será sinal de inconsciência, de má-fé ou de diletantismo — e só resultará em impotência política. O mundo já mudou, só não se sabe em que exacta medida.

É com estas questões desafiantes que a revista O Comuneiro — com 36 edições publicadas desde 2005 — apresenta o seu número de março deste ano. O texto que divulgamos é um excerto da introdução. O regresso da inflação, o capital no século XXI, o ascenso da extrema-direita, a Nato e a guerra ao Terceiro Mundo, a nova ordem mundial que se configura são alguns dos temas de um conjunto de dez artigos de autores diversos.

 

A DERROCADA DO SISTEMA IMPERIALISTA ANGLO-AMERICANO 

Ângelo Novo e Ronaldo Fonseca

O mundo já mudou, embora não se saiba ainda em que exata extensão. De todo o modo, o homem branco — mestre insuperável da cobiça, da agressão nua, da conquista, da opressão, da espoliação da natureza e do seu próximo, da dissimulação e da hipocrisia — já deixou, finalmente, de ser o seu senhor absoluto. A guerra pôs a nu, de uma forma caricata, o gigantesco descompasso entre a força real do mundo ocidental — a nível de pujança demográfica, coesão social, disciplina, capacidade de sacrifício, produção industrial — e a sua ilimitada arrogância política, diplomática e mediática. É a sociedade do espetáculo em todo o seu esplendor e miséria. A catástrofe financeira está ao virar da esquina. A palavra a pesquisar é: derivativos. A fé no deus mercado está muito próximo de precipitar o ocidente coletivo pelo barranco dos cegos. Mas precisamente neste abismo existente entre as expetativas loucas de mando e o poder efetivo da tríade imperialista, que encolhe como a pele de Chagrin do romance de Balzac, residem ainda, seguramente, enormíssimos perigos para a paz mundial. É muito cedo para celebrar.

No final, se o pior puder ser evitado, teremos um mundo multipolar, potenciador da cooperação livre e de trocas mais equilibradas, em lugar do atual condomínio fechado ocidental, pirâmide implacável de exploração e asfixia para os povos, bem como de ruína para o conjunto da ecosfera terrestre. Deixaremos de ter jardim de um lado e selva do outro, para desgosto do inefável Sr. Borrell. O imperialismo pode ter a sua espinha quebrada, sim. Foi um longo processo histórico, que levou um pouco mais de um século a cumprir-se, com alguns retrocessos a meio do percurso. Por fim (e não conseguimos dizê-lo sem uma ponta de emoção), a visão de Lenine pode estar em vias de triunfar. Por uma dessas férteis e fecundas ironias da história, fá-lo-á pela mão de um seu sucessor menor, em grande parte inconsciente, que se limitou a ser um estadista competente e arrojado, no que excedeu, é certo, largamente, os seus adversários.

A derrocada do sistema imperialista de dominação anglo-americana (e sionista) será um desfecho histórico de alcance extraordinário. Devemos regozijar-nos com ela, com uma alegria incontida e esfusiante que atravessa os cinco continentes. Para um socialista revolucionário, manter equidistância e indiferença neste confronto, é sinal seguro de inconsciência, má-fé ou diletantismo. O movimento socialista mundial, a internacional dos trabalhadores e dos povos oprimidos, não teria força, neste momento, para semelhante cometimento. Terá contribuído alguma coisa, em especial pela resistência de povos latino-americanos teimosamente empenhados na prossecução de projetos socialistas. Quem o pode conseguir, em embate frontal, é uma aliança ou alinhamento muito sólido de potências semiperiféricas, que viraram as costas à globalização financeira para melhor garantia da prossecução dos seus objetivos nacionais e soberanistas.

Não é indiferente nem coincidência que estas potências ascendentes tenham tido grandes revoluções socialistas. Foram ambas inimigas juradas do imperialismo que, quando vencidas, quiseram (re)ingressar no seio do sistema mundial capitalista, descobriram que só o poderiam fazer em condições de humilhação e espoliação nacional. Foram relembrados do que é a essência do imperialismo. Recusaram esses termos, mantendo sistemas, entre si diversos, de extensa propriedade pública, bem como de controlo e planeamento estatal sobre o processo nacional de acumulação capitalista, a fim de lhe dar coerência e garantir a autonomia. A China Popular mantém formalmente o desígnio de rumar ao socialismo, após um gigantesco percurso de NEP. A própria Federação da Rússia poderá ver-se forçada, face à pressão exterior, a buscar rumos mais socializantes. Estamos prestes a ver para que lado cairá, desta feita, o Muro de Berlim.

Não caraterizamos estas potências ascendentes como imperialistas. Quem o faz, não se refere, certamente, ao conceito marxista de imperialismo. Não surpreende. Muitos deles sustentaram já que esse mesmo conceito marxista de imperialismo tinha “perdido operacionalidade”, para concluírem que deixou de se aplicar aos E.U.A. e seus satélites. De onde resulta que os inimigos do império são imperialistas, da mesma forma que os seus súbditos constituem o “mundo livre”. O Mecanismo Europeu de Apoio à Paz financia, naturalmente, a guerra. Orwell viu bem, premonitoriamente. Derrubado o imperialismo (ou o “império”, para quem prefira), a libertação do jugo do capital estará mais próxima, mas ainda assim muito distante. Só é possível com a luta firme, organizada, constante, confluente, doutrinada, estrategicamente orientada, do proletariado internacional, da inteligência livre, dos zeladores do bem público e do bem comum, das mulheres trabalhadoras e cuidadoras, dos povos laboriosos (com destaque para camponeses e indígenas) e das grandes massas marginalizadas e oprimidas de todo o mundo.


Comentários dos leitores

Manuel Baptista 11/4/2023, 18:09

Desculpem mas como socialista revolucionário e anti-autoritário repudio a forma como começam este texto... «De todo o modo, o homem branco — mestre insuperável da cobiça, da agressão nua, da conquista, da opressão, da espoliação da natureza e do seu próximo, da dissimulação e da hipocrisia — já deixou, finalmente, de ser o seu senhor absoluto. » Se isto não é um pensamento racista, então o que é?
Podem usar à vontade Marx e Lenine, mas (ao menos!) tenham em atenção o que eles estavam a observar, na época e como encaravam as situações.
Têm razão no que toca à renúncia de muitos ex-revolucionários, mas justamente temos de ser coerentes.
Uma análise ideológica e desfasada da realidade, não dando um esboço sequer de fundamentação das frases ribombantes, é o pior serviço que se pode fazer à causa dos oprimidos.
Saudações revolucionárias,
Manuel Baptista

Ângelo Novo 13/4/2023, 19:08

Excelente questão, muito oportuna. Vamos responder.

Antes disso, talvez seja adequado fazer uma pequena "declaração de interesses": os autores desse texto (e eu sou um deles) são ambos brancos. Pelo menos, assim são considerados socialmente. É claro que tudo é relativo. Nos tempos da nazismo, os ibéricos eram considerados "brancos sujos".

Isto serve para dizer que não estávamos a marcar nenhuma posição "identitária", nem a praticar racismo. A espécie humana é notavelmente homogénea e o conceito de raça está cientificamente desacreditado há muito tempo. Todavia, o preconceito racial está muito vivo. Nem nos podemos esquecer que o capitalismo foi uma criação histórica europeia e da conquista do mundo pelos europeus. Por assim dizer, nasceu já racializado. E, até aos dias de hoje, mantém a criação ideológica de que toda a excelência e a virtude humanas estão ligadas à brancura. O "outro" pode também afirmar-se (Obama, Sunak, etc.) mas para isso é necessário que, previamente, se ocidentalize, ou seja, se esbranquice. Para combater o capitalismo, é preciso combater o supremacismo rácico que lhe está geneticamente associado.

Mesmo esta guerra na Ucrânia, por estúpido que possa parecer, tem na sua génese a convicção muito arreigada nas elites ucranianas (encorajada pelo imperialismo, naturalmente) de que elas são mais brancas que as russas. Isto já para não falar dos polacos, bálticos, finlandeses, etc.. Todos eles se acham superiores aos russos e credores de pertença ao espaço de eleição europeu, com exclusão agressiva e desdenhosa dos outros. A derrota da NATO será a derrota deste projeto racista e supremacista branco. E todo o mundo a vê assim instintivamente. Não é a derrota de uma raça. É a derrota do racismo e o triunfo da humanidade liberta do preconceito racial.

Saudações revolucionárias,

Ângelo Novo

Ângelo Novo 14/4/2023, 6:40

Para responder mais diretamente ao equívoco gerado, vamos tentar uma pequena Errata:

Onde no nosso texto se lê "homem branco", deve ler-se "homem (ou mulher) que, independentemente do seu concreto tom de pele, se vê a si mesmo como branco (ocidental) e superior aos outros por esse mesmo facto, com direito a uma superior fruição e a exercer punção exploradora sobre esses mesmos outros".

Este espécime está muitíssimo espalhado e hoje gosta de usar uma linguagem de democracia liberal, direitos humanos, etc.

Abraços,

Ângelo Novo

chico 19/4/2023, 12:03

Parece-me que falta algo no fim e que seria mais ou menos isto: em suma ,o proletariado mundial de todas as cores.

chico 19/4/2023, 12:05

Afinal não. Li mal, peço desculpa

antonio alvao 19/4/2023, 13:42

"(...) Se não somos loucos, e admitamos que não o somos, porque, então, a humanidade parece determinada a uma autodestruição cada vez mais rápida e crescente? Talvez a espécie humana seja apenas um terrível erro biológico, tendo evoluído além de um ponto que permitia o seu florescimento em harmonia consigo mesma e com o Mundo que a cerca. Essa talvez seja uma possibilidade. Recentemente, cientistas, escritores e outros têm tentado explicar por que a humanidade depara-se com a possibilidade de auto-aniquilamento. A ideia proposta é a de que o homem é decididamente agressivo, ideia à qual foi dada credibilidade cientifica por alguns estudiosos como o prof. Raymond Dart e o dr. Konrad Lorenz, e que foi popularizada com muito sucesso por Robert Ardrey.
Os anais da história humana, tintos de sangue e repletos de vísceras dilaceradas, desde o antigo Egípio até às atrocidades da Segunda Guerra Mundial. O canibalismo universal primitivo. Caçar cabeças como trofeus; mutilar corpos e necrofilia, fascínio por sangue. Os humanos são terrivelmente brutais, portadores de uma tendência inata para se matarem uns aos outros. A guerra e a violência estão nos nossos genes" (...) - ORIGENS, (publicado em 1977) - As guerras e atrocidades continuam no século XXI, com simpatizantes por todo mundo, conforme as simpatias pelos principais protagonistas. Acredito que a autodestruição da espécie não deve estar longe!?


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