Iraque: o que mudou em 20 anos

Manuel Raposo — 22 Março 2023

2019. Por todo o país, milhares de jovens reclamam trabalho, serviços públicos básicos, fim da corrupção

A invasão do Iraque iniciada a 19 de março de 2003 foi evocada com um certo incómodo por parte das forças que a promoveram e a apoiaram. Com efeito, a mentira, rapidamente desfeita, acerca das armas de destruição massiva (ADM) — que foi o argumento definitivo usado por norte-americanos e britânicos para justificar o ataque — não deixa margem para dúvida acerca da montagem então congeminada para enganar a opinião pública. As torturas praticadas na prisão de Abu Ghraib e o arbítrio de Guantânamo, que dura até hoje, completam o quadro da acção “libertadora” e “democratizadora” levada a cabo pelos EUA.

Mas a conclusão que destes factos se pode tirar não leva os fazedores de opinião pública a apontar o que é evidente: o crime com dolo então consumado e o banditismo que o acompanhou. Muito menos os leva a denunciar esse comportamento como a marca das acções imperialistas, porque isso equivaleria a lançar um alerta geral à opinião pública para desconfiar de todas as justificações que os EUA, a UE, ou a Nato, por exemplo, apresentam hoje para a sua campanha “em defesa dos valores do Ocidente”.

A tese do “erro”

Por isso mesmo, a crítica oficial aos acontecimentos de há 20 anos fica-se, quando muito, por um eufemismo: designar a intervenção não como crime, mas como “um erro” da política norte-americana. 

“Erro” de cálculo sobre as consequências da invasão; “erro” por não ter sido “devidamente planeado” o processo de ocupação do país; “erro” por o Gauleiter Paul Bremer ter dissolvido as forças armadas iraquianas, que constituíram depois a base da resistência armada; “erro” causado por “informações defeituosas” dos serviços secretos; “erro” por mais isto ou aquilo. 

Assim se absolve uma guerra ilegal e não provocada (termos que os EUA gostam de usar a respeito da invasão russa da Ucrânia) e um crime contra a humanidade, tornados possíveis apenas pela força impune que os EUA tinham na altura.

Mortos por “erro”

O “erro” causou a morte de centenas de milhares de iraquianos, como a revista Lancet (cuja denúncia está tão esquecida dos meios jornalísticos) comprovou em 2004 e em 2006. 

Um ano depois da invasão, registavam-se 98 mil mortes, e, passados mais dois anos, 655 mil mortes como consequência directa ou indirecta de acções militares, banditismo, destruição de redes sanitárias, falta de cuidados de saúde, etc. Daquelas 655 mil mortes, mais de 600 mil deveram-se a violência, a maioria dela militar. Os autores dos estudos classificaram os números como conservadores, podendo os valores reais ter atingido mais de 940 mil mortes apenas com três anos de ocupação. (The Guardian)

Tudo isto se somou à mortalidade causada pelas sanções instauradas em 1991 que, em doze anos, terão eliminado 500 mil crianças — as tais que Madeleine Albright disse terem “valido a pena”.

A mentira como hábito

A mentira sobre as ADM, todavia, nem sequer era a primeira. Doze anos antes, a invasão do Kuwait pelo Iraque foi pintada com as piores cores. Vídeos e testemunhos falsos mostravam marés negras de petróleo e falavam de bebés mortos em maternidades do Kuwait por acção das tropas iraquianas. 

Foi o necessário condimento para a opinião pública ocidental aceitar passivamente a primeira guerra do Golfo, promovida por Bush-pai em 1991, que viria a estrangular o Iraque e a criar as condições para a invasão de 2003, conduzida por Bush-filho.

(Não por acaso, nos primeiros dias da invasão da Ucrânia, as redes sociais foram enxameadas de vídeos falsos de supostos ataques aéreos e explosões, usando imagens das mais diversas origens e locais do mundo, como se fossem na Ucrânia. Um dos que ajudou a divulgar imagens dessas, foi o então embaixador ucraniano em Washington, Volodymyr Yelchenko.)

Os vinte anos entretanto passados permitem-nos ver as mudanças ocorridas no mundo desde então, e avaliar como as condições que davam total impunidade aos EUA, em 1991 e em 2003 e nos anos seguintes, foram sofrendo sucessivo desgaste.

No princípio era o petróleo 

A barragem de propaganda de 2003 que diabolizou Saddam Hussein e prometeu “democratizar” o Iraque não chegou para esconder os reais propósitos dos EUA: tomar conta do petróleo iraquiano e condicionar, por esse meio, o desenvolvimento económico dos adversários e concorrentes, incluindo a UE. 

Hoje, por mais sanções que haja, o mundo (tirando os serventuários de Bruxelas) tem, apesar de tudo, acesso a petróleo e gás russos, o que permite a muitos dos países do hemisfério sul encarar vias de desenvolvimento. Em contrapartida, os EUA e os seus aliados na cruzada anti-russa arcam, num efeito de ricochete, com os prejuízos económicos resultantes dos preços mais elevados e da ruptura de fornecimento da energia.

Missão impossível

A ocupação do Iraque, fazendo dele um protectorado, mostrou-se uma missão impossível — desde logo pela acção da resistência armada (quase 4.500 mortos e 32 mil feridos entre as tropas ocupantes, números oficiais dos EUA), e depois pela crescente influência do Irão na política iraquiana retirando capacidade de manobra aos EUA. 

Já em 2001, o propósito confessado pelos falcões de serviço na altura, era implantar o domínio norte-americano no Iraque e no Afeganistão. Em 2001, pouco depois do 11 de setembro, e muito antes dos pretextos das ADM, um influente “neocon” propunha a invasão do Iraque e antecipava: “Depois de depormos Saddam, podemos impor em Bagdade uma regência internacional dirigida pelos EUA, a par da de Cabul”. (Citado por Caitlin Johnstone)

A retirada caótica do Afeganistão em 2001, lembrando o Vietname de 1975, mostrou a impossibilidade de os EUA manterem a preponderância que ambicionavam no Médio Oriente. Isso mesmo ficou igualmente provado na tentativa falhada de derrubar o regime sírio, e na crescente influência da Rússia e da China na região.

Apesar de tudo, o mundo é outro

Há 20 anos, os EUA lidavam com um mundo dividido e temeroso das suas ameaças. Apesar da recusa da ONU em patrocinar a agressão ao Iraque, os dirigentes norte-americanos e britânicos, seguidos por todos os idiotas úteis de todos os azimutes (Durão Barroso e Paulo Portas incluídos), falavam à vontade em nome do que classificavam como “a comunidade internacional”. Hoje não conseguem convencer a maioria do mundo a participar nas sanções contra a Rússia.

Se o mundo, há 20 anos, sobretudo fora dos EUA e da Europa, desconfiou e discordou das razões para uma invasão do Iraque, não conseguiu, no entanto, opor-se à decisão norte-americana. Hoje, por mais argumentos que usem contra a Rússia acerca da guerra na Ucrânia, ou contra a concorrência económica e diplomática da China, os EUA não mobilizam mais do que os seus aliados de sempre, a que esforçadamente chamam “o Ocidente alargado”.

Para lá da recusa em alinhar com os EUA, um número considerável de países — outrora sem alternativa que não fosse aceitar as condições e as chantagens do FMI, do Banco Mundial, ou do G7 — encara hoje a possibilidade de sair da órbita das potências imperialistas. É isso que dá alento a organizações como os BRICS ou a Organização da Conferência de Xangai, ou ao projecto chinês da Nova Rota da Seda, ou ainda aos planos de criar um sistema financeiro alternativo ao dólar.

O “eixo do mal” ampliou-se

Em 2002, George W. Bush colou o anátema de “eixo do mal” no Iraque, no Irão e na Coreia do Norte. Na altura, os EUA  gabavam-se de poder levar a guerra a qualquer parte do mundo, em múltiplas frentes e por tempo indefinido. 

Num documento oficial revelado em 2005 (Doutrina para Operações Nucleares Conjuntas), o uso de armas nucleares era considerado, em consonância com a doutrina da guerra preventiva, como meio de primeiro ataque, coisa que nenhuma outra potência nuclear até agora defendeu. Obama e Biden (este em março de 2022) confirmaram esta política terrorista.

Mas, apesar de tantas ameaças, se quiserem actualizar o elenco do “eixo do mal” — ou seja, dos países que não se vergam a pressões ou não se convencem com cantos de sereia — os EUA terão de alongar a lista a muitas dezenas de países de todas as partes do mundo. Esse é um sinal inequívoco da progressiva perda de influência dos EUA por força da sua decadência económica e política, restando-lhe como argumento a crescente ameaça militar.

Um sapato para a história

A ideia de fazer do Iraque uma plataforma estratégica, militar e de controlo económico, que permitisse aos EUA ditar regras de comportamento para todo o Médio Oriente e para o resto do mundo fracassou em pouco tempo. 

Fracassou, em primeiro lugar, devido à resistência do povo iraquiano. Quando Bush, em maio de 2003, declarou cumprida a missão, estava longe de imaginar a resistência heróica de Faluja e a guerrilha mortífera que iria flagelar as suas tropas por todo o país e por vários anos.

Mesmo quando estes levantamentos foram sufocados — à custa do arrasamento de cidades inteiras, de terríveis massacres, de terror organizado e da compra a peso de ouro de forças mercenárias, pondo a salvo os soldados norte-americanos — ficou provada a incapacidade dos EUA em vencerem a guerra, em pacificarem o país e em dotá-lo de um regime estável e fiel. 

Sem falar do ódio, do justíssimo ódio, que o povo iraquiano acumulou contra os seus agressores. A imagem de Bush a levar com um sapato na cabeça — numa surtida a Bagdade em 2008, em que se julgava a salvo — fica para a história do desrespeito dos povos pela arrogância imperial.


Comentários dos leitores

leonel l. clérigo 28/3/2023, 16:57

FANCARIA

Os dicionários registam a palavra FANCARIA como uma "obra feita à pressa, de trabalho grosseiro, visando apenas a lucro". E, na generalidade, o PRODUTO que sai hoje das "máquinas" da COMUNICAÇÃO SOCIAL - salvo raras excepções e sem grande margem de erro - são OBRA de FANCARIA, coisa pouco séria.
Seu grande objectivo, que se diz DEMOCRÁTICO, em nada difere dos outros designados por ela de "totalitários": dar a "volta às cabeças" para levar a "água a seu moinho".

1 - Um dos maiores defeitos da Comunicação Social com que nos deparamos todos os dias, reside num discurso algo DESGARRADO onde predominam "factos" frequentemente sem "nexo" ou "continuidade", impedindo que se entendam as RAZÕES porque tal COISA ACONTECEU, seja ela a "GUERRA na UCRÂNIA, a REVOLUÇÃO CHINESA, o SUBDESENVOLVIMENTO de PORTUGAL ou o IVA ZERO. Bastas vezes, tem-se a sensação que os Jornalistas sabem deficientemente sobre aquilo que escrevem. Ou então, estão conscientemente empenhados em "baralhar as cabeças" dos seus compatriotas.

2 - O MV trouxe acima um "velho" acontecimento dos anos 70 do século passado: a INVASÃO do IRAQUE. Por vezes, é preciso que o tempo passe sobre certos acontecimentos: os "segredos escondidos" obrigam a isso e só o tempo os pode esclarecer...quando pode.
O Texto que aqui vou deixar tem por base algumas revelações de um homem bem informado sobre os "segredos da 'alta' política económica dos USA": Jerome Powell, que foi Presidente do Federal Reserve, um pioneiro da 'flexibilização quantitativa' que já viu o suficiente e entendeu, mais recentemente, pôr a "boca no trombone". Diz ele: os bancos centrais são muito poderosos e são os culpados pela inflação.
Não deixa de ser curioso este "mudar a bola" do "discurso oficial". Falta só saber quem é a minoria que "manda" nos BANCOS CENTRAIS. O Dr. Mário Centeno deve saber disso "a potes" e podia dar-nos uma "ajudinha".

3 - Resta-me agora colocar aqui o texto para quem esteja interessado e não goste de "nevoeiros":

https://fortune.com/2023/03/20/is-federal-reserve-too-powerful-inflation-quantitative-easing-richard-werner/

A Viagem dos ArgonautasEspuma dos dias… sobre a invasão do Iraque em 2003 — “Iraque: o que mudou em 20 anos”, por Manuel Raposo 11/4/2023, 9:00

[…] Publicado por  em 22 de Março de 2023 (original aqui) […]


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