A exploração de trabalho infantil nos EUA
Editor / Workers World — 17 Março 2023
Como a base da civilização é a exploração de uma classe por outra classe, alertava Friedrich Engels em 1884, cada progresso da produção é simultaneamente um retrocesso na situação da classe oprimida. Poderia pensar-se que, século e meio volvido, tal drama tivesse sido ultrapassado e que o “crescimento económico” proporcionasse óbvio bem-estar às populações colocadas na senda do “progresso”. O dia a dia dos trabalhadores de hoje, em todos os cantos do planeta, desmente tal ideia. Mas a denúncia recente de exploração de mão-de-obra infantil nos EUA vem dar ao caso uma outra dimensão.
A visão centrada no mundo capitalista desenvolvido induziu em determinado período da história recente, sobretudo depois da segunda grande guerra, a ideia de um progresso universal, diferenciado para cada classe mas, ainda assim, benéfico para todos. O Estado de bem-estar na Europa, a progressão na escala social, a melhoria regular das condições de vida aí estavam, parecia, para o provar.
Omitiam-se, claro, as guerras mundiais e regionais destruidoras, a parte dos trabalhadores, mesmo nos países desenvolvidos, que ficavam para trás, a exploração e as razias coloniais, a proletarização forçada e a super-exploração do chamado terceiro mundo. Omitia-se, enfim, que o progresso do mundo desenvolvido era conseguido à custa da miséria em escala alargada do resto do mundo, miséria esta que se somava à exploração “suportável” das classes trabalhadoras das metrópoles capitalistas. Assim se configurou o capitalismo imperialista do século XX.
Perante os gritantes contrastes entre aqueles dois mundos, os ideólogos do progresso capitalista, ainda assim, continuaram a alimentar a ideia de que os países “atrasados” chegariam, com o tempo, ao nível dos modelos norte-americano, europeu ou japonês, baptizando-os, convenientemente, como países “em vias de desenvolvimento”. Mascaravam, obviamente, o facto de o progresso de uns, uma minoria, ter como condição a eterna penúria dos outros, a larga maioria. Recorrendo de novo a Engels: quanto mais a civilização progride, tanto mais ela se vê compelida a negar os males por ela criados. (1)
As condições materiais para manter viva aquela ilusão, contudo, foram-se desvanecendo, ironicamente, com o próprio progresso do capitalismo — progresso esse que o conduziu ao estado de senilidade em que hoje se arrasta.
As décadas mais recentes puseram a nu a crescente dificuldade de acumulação do capital a nível global, a sua irreprimível tendência para fugir à produção e dedicar-se à especulação financeira, a formação inevitável de uma gigantesca bolha de capital fictício sem préstimo social. A consequência na relação das classes vê-se num dado bem conhecido: fortunas colossais em poucas mãos, penúria para milhares de milhões de despojados.
Tudo isto fruto de um facto preciso: a queda da taxa de lucro do capital produtivo, em consequência do rápido progresso tecnológico, científico, das metodologias de produção, etc. Quanto maior o volume de capital investido, tanto maior a dificuldade em se reproduzir proporcionalmente.
Esta tendência, já detectada antes mesmo de Karl Marx a ter posto em evidência como a latente sentença de morte do capital, é chave para perceber o marasmo e as crises sucessivas da economia mundial de hoje. Engels apercebeu-se disto quando, no final do século XIX, admitiu a possibilidade de o capitalismo estar a caminhar para uma situação em que “melhoramentos relativamente breves e fracos dos negócios” são seguidos por um estado de “depressão relativamente longa e indecisa”. (2)
Em tal situação de marasmo, as vantagens tecnológicas, etc. — que implicam investimentos cada vez maiores — desvanecem-se porque já não dão, ao capital considerado no seu conjunto, os ganhos que compensem os investimentos feitos. O que pode então atenuar esta perda de vantagens? — a exploração absoluta, brutal da mão-de-obra: horários de trabalho prolongados, redução da massa salarial, leis restritivas das organizações sindicais, trabalho clandestino, imigrantes, crianças.
A exploração que era considerada típica e exclusiva do mundo “em vias de desenvolvimento”, porque “atrasado”, eis que faz aparição em força no mundo desenvolvido. A face predatória do capitalismo, até certa altura só visível nas colónias do hemisfério sul, perde a máscara “civilizada” e transporta-se para o seio das metrópoles desenvolvidas.
A importação em doses maciças de mão-de-obra, sobretudo clandestina, feita pela Europa ou pelos EUA — justamente das regiões historicamente devastadas pelo domínio europeu e norte-americano, e deprimidas pela fuga recente dos capitais imperialistas — destina-se a dar ao capital envelhecido das metrópoles o suplemento de oxigénio que lhe prolongue a existência.
A época de decadência do capitalismo imperialista que vivemos trás à larguíssima maioria humanidade sacrifícios acrescidos — mas agora sem quaisquer perspectivas de progresso.
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(1) Todas as citações anteriores são de A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado
(2) O Capital, livro III, cap. XXX, nota de Engels
O texto seguinte, publicado pelo semanário marxista norte-americano Workers World, dá eco da exploração de mão-de-obra infantil que faz carreira nos EUA, justamente o país celebrado como a casa da economia capitalista mais desenvolvida e da democracia mais consolidada do mundo.
SUPER-EXPLORAÇÃO DE CRIANÇAS MIGRANTES
“A cunhagem do sangue das crianças no capital”
Workers World, 6 março 2023
O horror retratado numa recente denúncia do New York Times sobre o trabalho infantil migrante evidencia quão relevante é o que Karl Marx escreveu há 156 anos.
A obra de Marx, “O Capital”, foi uma tremenda contribuição teórica, descrevendo meticulosamente como funciona o sistema capitalista de exploração. Uma classe de trabalhadores, a classe operária, produz “mais-valia” — lucro — para uma classe de ociosos, a classe capitalista.
“O Capital” faz mais do que desmontar, de forma científica, o mecanismo do capitalismo: é uma poderosa e apaixonada acusação à classe que se faz enriquecer. “O dia de trabalho”, (capítulo 10 do livro I, publicado em 1867) expõe os horrores que ocorrem no local de trabalho da Inglaterra do século XIX, conforme documentado pelos próprios inspectores de fábrica do governo.
Crianças de oito anos, e por vezes até mais novas, trabalhavam longas horas em condições perigosas em locais de trabalho como olarias, padarias, fábricas de seda, metalurgias e siderurgias. Os relatos descrevem crianças de nove e dez anos a trabalhar em turnos de doze ou mais horas, muitas vezes à noite, em laminadoras de aciarias.
“Na sua paixão cega e irrestrita, na sua gula de lobisomem por trabalho excedente, o capital usurpa não apenas os limites morais, mas até os próprios limites físicos máximos da jornada de trabalho. Usurpa o tempo necessário para o crescimento, desenvolvimento e manutenção saudável do corpo”, escreveu Marx, condenando “a cunhagem do sangue das crianças no capital”.
No século XXI, condições do século XIX
Infelizmente, as coisas não são tão diferentes em 2023. Isso ficou bem claro num artigo de 25 de fevereiro do New York Times: “Abandonadas e exploradas, crianças migrantes trabalham em empregos brutais nos EUA”.
O título fala por si. Das centenas de milhares de menores desacompanhados que atravessaram a fronteira entre os EUA e o México em busca de uma vida melhor, muitos “acabaram a trabalhar em empregos perigosos que violam as leis de trabalho infantil – incluindo empresas que fabricam produtos para marcas conhecidas como Cheetos e Fruit of the Loom”.
Outros — adolescentes e até crianças mais novas — embalam cereais e barras de granola, operam máquinas de ordenha, limpam quartos de hotel, trabalham na reparação de telhados e fabricam auto-peças para a Ford e a General Motors.
Muitos trabalham à noite e tentam frequentar a escola durante o dia, mas adormecem nas aulas ou acabam por desistir. Estas crianças exploradas sofrem ferimentos frequentes, por vezes fatais. Trabalham para ajudar as suas famílias nos países de origem e para pagar grandes dívidas aos “patrocinadores” que os ajudaram a entrar nos EUA.
“Em muitas regiões do país, professores do ensino médio e secundário, trabalhando em programas de aprendizagem de língua inglesa, afirmam que é comum quase todos os seus alunos saírem a correr no final das aulas para irem fazer longos turnos de trabalho”, de acordo com a reportagem do Times.
Grandes empresas da [lista anual da revista] Fortune 500 exibem a mesma “gula de lobisomem” por lucros que Marx observou na Europa do século XIX. É isto que continua a impulsionar a exploração de trabalhadores, incluindo crianças, não apenas nos EUA, mas em todo o mundo. Nenhuma criança deveria ter de sofrer um nível tão elevado de abuso, ainda por cima, “abandonada e explorada”.
As organizações de trabalhadores tem a responsabilidade de enfrentar com coragem este exemplo brutal de racismo e xenofobia. Os sindicatos que representam trabalhadores de empresas que lucram ilegalmente com o trabalho infantil têm de fazer disso uma questão de negociação colectiva — como nas empresas automobilísticas, cujos contratos com a [organização sindical] United Auto Workers expiram este ano. Os sindicatos de professores têm de defender as crianças migrantes que os seus membros ensinam.
Na década de 1930, a luta de classes conseguiu o Fair Labor Standards Act [Lei de padrões justos de trabalho] que, entre outras coisas, limitava o trabalho infantil. Será necessário um movimento global e de classe para impedir “a cunhagem de sangue de crianças no capital”.
Um outro mundo é possível — e necessário.
Tradução MV