Imigrantes mortos? Foi um azar…

Editor / MAR – Movimento Anti-Racista — 10 Fevereiro 2023

Sem condições de habitabilidade, nem depois nem antes do incêndio

O incêndio que, no centro de Lisboa, matou dois imigrantes e feriu mais catorze foi motivo para todas as lamentações e condolências imagináveis por parte dos poderes públicos: Junta de Freguesia, Câmara Municipal, Presidência da República, Governo. Esta tragédia, no entanto, apenas veio pôr a descoberto uma situação de todos conhecida: a miséria e a marginalização em que a mão-de-obra imigrante é mantida. 

Tal situação convém aos poderes instalados porque é a melhor forma de manter essa imensa força de trabalho em condições de submissão e de baixo custo para quem a explora. E, consequentemente, colocar sob pressão os salários da generalidade dos trabalhadores. 

Tudo se liga: a exploração extrema nos trabalhos agrícolas, na construção civil ou nas limpezas domésticas, as agressões e humilhações infligidas a imigrantes pela GNR (como em Odemira) ou por bandos de energúmenos (como em Olhão), o calvário para obter documentos de identificação ou autorizações de residência, a apreensão dessa documentação pelas entidades patronais para manter os trabalhadores cativos, a transformação de qualquer pardieiro em alojamento pago para benefício de pequenos proprietários, a escravização pura e  simples.

A verdade que poucos querem ver é que, desde o grande capital ao mais reles proprietário, todos lucram com a situação. Desde a burocracia do Estado, às polícias e aos cidadãos “brancos”, todos se sentem impunes e no direito de tratar o imigrante de cima para baixo. 

Na época áurea do império português, discutia-se, nos meios eruditos e entre o povo, se os índios ou os negros seriam humanos. É este lastro que a sociedade portuguesa, agora sob outras formas, ainda transporta.

Transcrevemos um comunicado divulgado pelo MAR—Movimento Anti-Racista a propósito da tragédia de Lisboa.

 

DESCARTÁVEIS

MAR – Movimento Anti-Racista

Na madrugada de 5 de Fevereiro um incêndio numa loja da Mouraria [em Lisboa] matou 2 imigrantes indianos, um deles de apenas 14 anos de idade. Catorze outros ficaram feridos. Ao todo, 24 pobres (2 belgas, 2 argentinos, 2 portugueses, 3 bengalis e 15 indianos) vítimas, mais uma vez, de uma sociedade que se diz generosa e exemplar no acolhimento dos imigrantes, mas que é desmentida pelos factos.

Este incêndio foi só mais um no eixo que vai da [Rua] Morais Soares ao [Largo] Martim Moniz, passando pela [Avenida] Almirante Reis e o [Largo do] Intendente. A novidade é que desta vez houve mortes. Mas não será o último, apesar das mortes e das hipócritas e pesarosas declarações e “medidas” anunciadas à pressa por autarcas, presidente e ministros, sendo esta uma liturgia que se repete sempre que um “azar” destes acontece. 

Isto porque a situação em que os imigrantes pobres vivem neste eixo da cidade não é recente. Esta é uma realidade com mais de duas décadas, e sempre em crescimento. 

São milhares de pessoas, homens, mulheres, crianças, amontoadas em camaratas sobrelotadas, sem qualquer privacidade nem dignidade (um rés-do-chão calcinado, repleto de colchões e beliches amontoados junto à janelas, provam-no). Toda a cidade sabe disto e da exploração e indignidades a que os imigrantes se tem de sujeitar, para não dormir na rua, por senhorios que com a maior impunidade agem (e vão continuar a agir) à margem de qualquer legalidade.

Estes imigrantes são só as mais recentes vítimas de um sistema social eivado de preconceitos racistas e xenófobos, que criminaliza a pobreza e a remete para ghettos. Um sistema para quem a habitação é um negócio e não um direito, tal como o são (deveriam ser) o direito à saúde, ao trabalho, à educação, etc. E ainda mais quando os discriminados não têm a cor de pele, a nacionalidade, a etnia ou a religião certa.

Nestes tempos de crise, em que o fascismo vai ganhando terreno entre as camadas pobres da população, muitos dirão que o assunto não lhes diz respeito e que o Estado, a gastar dinheiro, que o gaste com os portugueses necessitados. Mas diz. 

Porque se em Portugal as rendas são caras, se despejam pessoas porque estas já não conseguem pagar as rendas ou suportar os empréstimos bancários devido ao aumento das taxas de juro ou porque o desemprego lhes bateu à porta, se os imigrantes são reduzidos à escravatura e forçados a viver amontoados em contentores ou camaratas sem qualquer privacidade, se as pessoas com uma outra cor de pele, cultura ou religião não conseguem alugar casa, se há mulheres forçadas à promiscuidade e a uma vida que não as deixa respirar, correndo da casa para o trabalho e do trabalho para casa, onde só chegam após horas perdidas em demorados transportes, para cozinhar, cuidar dos filhos e dar voltas à cabeça para saber como os vão alimentar no dia seguinte, se os pobres são empurrados sumariamente para as periferias para que floresçam a especulação e os negócios em torno do turismo e do alojamento local, é esta a realidade que já não é só dos “outros”. 

Esta é a realidade que atormenta a vida da maioria dos que vivem e trabalham em Portugal, em particular os 2 milhões de pobres e os mais de 50% da população em risco de miséria, uma indignidade partilhada por “eles” e por “nós”, independentemente da cor, etnia, religião ou local de nascimento.

 

MAR – Movimento Anti-Racista
Fevereiro 2023

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