Até quando a guerra vai ser tabu?

Manuel Raposo — 3 Fevereiro 2023

Uma exigência de justiça social e de prevenção política

Dezenas de jornalistas e opinadores gastaram horas de comentários sobre a recente entrevista televisiva do primeiro-ministro. Escalpelizaram tudo: inflação, aplicação dos fundos europeus, dívida pública, luta dos professores, demissões no Governo, escândalos na TAP. Mas, apesar de todo este afã analítico, ninguém teve a ousadia de trazer à baila a questão da guerra na Ucrânia no que respeita à posição do Governo e do Estado. António Costa deu-se assim ao luxo de mencionar de passagem a guerra como mais um incidente “inesperado”, a par da pandemia ou da inflação, como coisa com que ninguém estaria a contar e que, como um golpe de vento, veio perturbar o bom rumo da governação.

A guerra é o tabu que assombra a política portuguesa, unindo Governo, presidência da República, maioria parlamentar e oposição no mesmo silêncio cúmplice.

Ora, as implicações da guerra são muitas e prometem arrastar-se no tempo, não apenas pelo prolongar do conflito em si, mas pelas marcas que já está a deixar e vai deixar para futuro.

A guerra não surgiu como o covid, ao contrário do que sugeriu António Costa. A história não começou em 24 de fevereiro do ano passado. Antes disso, houve oito anos de guerra em que morreram quase 15 mil ucranianos de língua russa no leste do país às mãos do regime implantado em Kiev. Em fevereiro de 2014, deputados portugueses rumaram a Kiev, munidos de bandeirinhas da UE, para apoiar o golpe promovido, de braço dado, pelos EUA e a UE. Nos oito anos seguintes, dois presidentes da República e quatro governos fingiram que nada era com eles.

Sobre esta guerra, a que decorre desde 2014 até hoje, os Governos e o Estado podiam, pelo menos em tese, ter tomado uma posição diferente da que tomaram. Em vez de irem a reboque da Nato e da UE podiam marcar, se assim quisessem e para isso tivessem coragem, uma posição independente. Foi da sua escolha seguir pelo caminho que seguiram, fazendo seus os empenhos guerreiros dos EUA, da Nato e da UE.

A desculpa de que temos de seguir os compromissos ditados pelas organizações em que o país está integrado não colhe. Exemplos não faltam. Ainda recentemente, o presidente brasileiro Lula da Silva disse abertamente que o país não forneceria tanques e munições à Alemanha (que os pretendia enviar para a Ucrânia) argumentando que o Brasil “é um país de paz”. Mesmo na UE há quem bata o pé: não só a Hungria mas também a Croácia resistem à aplicação de sanções à Rússia e negam-se a fornecer armas ao regime ucraniano, alertando para os perigos de escalada e de alastramento da guerra. A Turquia, membro da Nato, apesar de todas as ambiguidades e oportunismo da sua liderança, destaca-se pelos esforços de mediação que tem tentado para terminar o conflito. 

Nada disto se vê da parte das autoridades portuguesas. A posição do Estado e do Governo, pelo contrário, alimenta a emergência de inúmeros falcões de capoeira que, impunemente, pugnam pelo prolongamento e agravamento da guerra, num esforço que só tem um sentido: agradar aos seus patronos, os centuriões da Nato.

O argumento de ajudar os ucranianos a defender-se e a expulsar os russos mascara a realidade. Todos os apoiantes do regime ucraniano que não sejam ingénuos sabem que a Ucrânia não tem, desde início, condições para resistir, quanto mais para derrotar a Rússia. Os “apoios” que a cada passo são reclamados servem outro propósito: o de desgastar a Rússia, numa guerra tão prolongada quanto possível, enquanto houver ucranianos vivos e mobilizáveis para a frente de batalha. É essa a política declarada dos EUA que todos os serviçais parecem querer ignorar.

O governo português está a servir esse propósito e não outro, colocando-se, sem vontade própria, sob as ordens de Washington, Londres, Bruxelas ou mesmo dos fascistóides que vociferam a partir de Varsóvia. 

Os auxílios tão generosos que António Costa resolveu entregar a Zelensky numa ida de beija-mão a Kiev, ninguém sabe ao certo onde foram parar. As sucessivas revelações de corrupção generalizada no aparelho de Estado e militar da Ucrânia (que recentemente obrigou, numa mera operação de branqueamento, à demissão de altos cargos do Estado, do parlamento e dos governos regionais); mais as denúncias de que grande parte do material militar e humanitário é desviada para o mercado negro — mostram que tal “auxílio” não alivia a sacrificada população ucraniana. Pelo contrário, enche os bolsos dos mandaretes do Ocidente colocados nos lugares de governo e de comando militar. Perguntem a António Costa se sabe onde param os 250 milhões de euros “de ajuda financeira” que entregou a Zelensky em maio do ano passado.

A guerra está a servir de pretexto à Nato para alargar a sua esfera de acção. O secretário-geral Stoltenberg foi há dias à Coreia do Sul e ao Japão com o propósito de estender o braço da Aliança ao Extremo-Oriente. Ora, isto só pode significar colocar todos os membros da Nato ao serviço dos interesses do imperialismo norte-americano, como exige a política de Washington de fazer frente à China. Nem a Europa, nem muito menos Portugal têm interesse próprio nesta viragem do fogo norte-americano para a Ásia-Pacífico — e, mesmo assim, seguem atrás, fazendo corpo com as ambições dos EUA. 

Também aqui as amarras da Europa ao imperialismo norte-americano nos arrastam para uma confrontação — económica, propagandística, militar — desta vez no outro lado do mundo, sem que o Governo, o chefe do Estado, ou o parlamento sequer levantem a voz. 

O tabu sobre a guerra põe o Governo e o Estado ao abrigo de qualquer reparo sobre o assunto. Ao mesmo tempo, coloca a opinião pública à margem de toda a discussão sobre as decisões de um ou de outro na matéria, dando-se como natural o envolvimento do país na guerra. 

Por isso, as declarações guerreiras do ministro dos Negócios Estrangeiros e ex-ministro da Defesa, João Cravinho — segundo o qual a Rússia tem de ser derrotada no campo de batalha — passam sem crítica e fazem lei. Por isso, toda a comunicação social se faz eco das barbaridades de um mentiroso contumaz como Boris Jonhson, de uma incompetente com contas a acertar na Alemanha como Ursula von der Leyen, ou de um fala-barato irresponsável como Josep Borrell — tratados como se fossem gente que vale a pena ouvir, quando não passam de porta-vozes do extremismo militarista da Nato e da cúpula da UE.

A população portuguesa tem o direito e o dever de se levantar contra este tabu, contra esta conspiração de silêncio nacional. Tem o dever de não consentir que a usem como se não tivesse direito à palavra. Os custos deste silêncio estão aí: a guerra impulsiona a subida dos preços, é pretexto para o aumento de despesas militares socialmente inúteis, vai ser usada para degradar ainda mais o magro Estado Social e travar salários e pensões, dá campo às vozes belicistas e da extrema-direita, alimenta os ódios nacionalistas.

Tal como foi possível, em 2003, mobilizar a opinião pública contra a guerra ao Iraque — rejeitando a vergonhosa colaboração prestada então pelo Governo e pelo Estado aos propósitos bélicos dos EUA — é também hoje possível erguer um movimento popular de protesto. Em dezembro do ano passado, sindicatos italianos deram o exemplo convocando uma greve geral em que exigiam melhores condições de vida, combatiam as despesas de guerra e o envio de armas para a Ucrânia, e denunciavam os efeitos da cruzada de sanções contra a Rússia.

A pressão política sobre o Governo — em que toda a oposição parlamentar se empenha, mas apenas nos limites do que é consensual discutir — não pode deixar de lado uma questão tão central como a guerra. Desde logo, pela carnificina que causa na Ucrânia, municiada pelo Ocidente imperialista por interesse próprio. Depois, pelos sacrifícios impostos às populações europeias. E ainda pelos perigos que o prolongar do conflito representa para toda a Europa, com risco de alastrar a outros países. 

Combater os nossos próprios advogados da guerra é uma exigência de justiça social e de prevenção política. Compete-nos denunciar a escolha, assumida pelo Governo e pelo Estado, de deitar achas para a fogueira, quando se torna imperioso defender uma solução negociada do conflito.


Comentários dos leitores

António 3/2/2023, 23:35

Muito bom e importante o ”Jornal Mudar de Vida”.
A Ucrânia fez parte da União Soviética. Quando a Ucrânia se tornou independente, o acordo que teve com a Rússia, foi de ser um país neutral. A cultura e a lingua russa e ucraniana, são próximas uma da outra. A OTAN e a UE, dizem que a OTAN é uma organização defensiva. A Ucrãnia não pertence à OTAN e também não à UE. Então pergunta-se o que é que a OTAN e a UE estão fazendo na Ucrânia? Já há vários anos atrás, Madelaine Albright a ministra dos negócios extranjeiros dos Estados Unidos, disse que a Sibéria era demasido grande para um só país.

António dos Santos Queirós 11/2/2023, 22:46

Muito bem, Manuel Raposo


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