Ucrânia, Palestina: os duplos padrões do Ocidente

Editor / Jonathan Cook — 22 Outubro 2022

A resistência ucraniana é heróica, a resistência palestina é terrorismo.

As contradições gritantes do Ocidente no tratamento da guerra da Ucrânia e da ocupação da Palestina deviam servir para despertar a opinião pública da hipnose em que é mantida acerca da guerra, tanto num como noutro caso. É o que defende Jonathan Cook ao pôr em evidência os duplos padrões do Ocidente quando compara estes e outros conflitos da actualidade. O monopólio da informação que é levada ao grande público por todos os meios ao dispor dos estados ocidentais confere-lhes, sem dúvida, uma vantagem esmagadora no condicionamento das mentalidades. Mas não lhes dá razão. 

Casos como o do texto que publicamos conseguem romper esse monopólio e lançar alguma luz sobre a elaborada desinformação que serve de suporte aos interesses políticos que os “nossos” governos, meios de informação, comentadores estão encarregados de defender — necessariamente socorrendo-se de toda a casta de mentiras, de omissões, de deturpações que for precisa para levarem os seus desígnio a bom porto.

A propaganda sobre a guerra na Ucrânia tem sido um exemplo claro de como os meios de comunicação de massas “têm feito o possível por inocular ouvintes e espectadores contra o pensamento dissidente” e contribuir “para a formação deste clima de conformismo que é o melhor trunfo do capitalismo contemporâneo”, como já há bons anos preveniu Ralph Miliband falando do papel do Estado na sociedade capitalista. (1)

 

OS OCIDENTAIS VIVEM EM NEGAÇÃO, CONVENCIDOS DE QUE SÃO OS BONS  DA FITA

As contradições gritantes do Ocidente no tratamento da guerra da Ucrânia e da ocupação e cerco da Palestina deviam servir de alerta

Jonathan Cook, Middle East Eye, 14 Outubro 2022

 

Ninguém assumiu a responsabilidade pela explosão que no fim de semana [9 de outubro] destruiu uma secção da ponte Kerch que liga a Rússia à Crimeia, construída por Moscovo depois de anexar a península em 2014.

Mas não foram apenas as celebrações exultantes de Kiev que indicaram o principal suspeito. Em poucas horas, as autoridades ucranianas lançaram um conjunto de selos comemorativos representando a destruição.

O presidente russo, Vladimir Putin, também não tinha ilusões. Na segunda-feira [10 de outubro], ele atacou com uma torrente de mísseis que atingiram grandes cidades ucranianas, como Kiev e Lviv. Foi um eco pálido e eslavo dos bombardeios intermitentes de Israel a Gaza, que têm a intenção expressa de enviar o enclave palestino “de volta à Idade da Pedra”.

Se as cenas pareciam familiares – um ataque de uma parte, seguido por uma retaliação maciça da outra – o clima e a linguagem que saudaram o ataque ucraniano e o contra-ataque russo eram visivelmente diferentes dos comentários ocidentais normais sobre Israel e Palestina.

A explosão na ponte de Kerch foi recebida com entusiasmo mal disfarçado por jornalistas, políticos e analistas ocidentais, enquanto os ataques de Moscovo a Kiev foram uniformemente denunciados como brutalidade russa e terrorismo de Estado. Não é assim que as coisas funcionam quando Israel e facções palestinas se envolvem em luta.

Se os palestinos celebrassem abertamente a explosão de uma ponte em Jerusalém Oriental, um território ilegalmente anexado por Israel na década de 1960, e matassem civis israelitas como dano colateral, quem pode realmente imaginar que os relatos dos média ocidentais apoiassem da mesma forma?

Nem os académicos ocidentais se teriam alinhado, como fizeram com a Ucrânia, para explicar em detalhe por que razão destruir uma ponte era um acto proporcional e totalmente de acordo com o direito de resistir que o direito internacional reconhece a um povo sob ocupação beligerante. (2)

Em vez disso, teria havido denúncias estrondosas de selvajaria palestina e “terrorismo”.

Na realidade, a resistência palestina hoje em dia é muito mais modesta — e, mesmo assim, recebe censura ocidental. Basta os palestinos dispararem um foguete caseiro ou lançarem um “balão incendiário”, geralmente ineficaz fora da sua jaula de Gaza — onde estão sitiados há anos pelos seus perseguidores israelitas — para incorrerem na ira de Israel e das potências ocidentais que reclamam constituir a “comunidade internacional”.

Ainda mais perversamente, quando os palestinos atacam isoladamente soldados israelitas, como têm o direito inequívoco de fazer sob a lei internacional, são igualmente vilipendiados como criminosos.

Razias regulares

Mas os padrões duplos não terminam aí. Os média e os políticos ocidentais ficaram absolutamente chocados com os ataques de retaliação à capital ucraniana por parte de Moscovo. Apesar da ênfase dos média no ataque da Rússia às infraestruturas civis, o número de civis mortos em toda a Ucrânia pela onda de mísseis nessa segunda-feira [10 de outubro] foi relatado como sendo baixo.

A comunicação social ocidental fica muito menos horrorizada quando se trata das razias regulares de Israel em Gaza – mesmo quando Israel “retalia” contra provocações muito menores e quando os seus ataques infligem sofrimento e danos muito maiores.

E, claro, não é apenas Israel que beneficia desta hipocrisia. A campanha de bombardeio “Choque e Pavor” dos Estados Unidos que iniciou a guerra contra o Iraque em 2003 — e impressionou os comentaristas ocidentais – matou muitos milhares de civis iraquianos. Os ataques da Rússia em Kiev são insignificantes em comparação.

Existem outras inconsistências gritantes. Após os ataques com mísseis da Rússia, a Ucrânia teve ouvidos ainda mais receptivos nas capitais ocidentais às suas exigências de armas adicionais para ajudar a recuperar os territórios orientais que Moscovo anexou.

Em contrapartida, ninguém no Ocidente sugere que os palestinos deveriam ser armados para os ajudar a combater décadas de ocupação e cerco israelitas. Muito pelo contrário. São invariavelmente armas ocidentais que chovem sobre Gaza, fornecidas ao beligerante ocupante israelita pelos mesmos que agora condenam a Rússia.

E, em forte contraste com o apoio, de todo o coração, por parte da Grã-Bretanha à Ucrânia para impedir a anexação dos seus territórios orientais pela Rússia, a [então] primeira-ministra do Reino Unido, Liz Truss, declarou no mês passado que pode recompensar Israel pela sua anexação ilegal de Jerusalém transferindo para lá a embaixada britânica.

Enquanto os palestinos são constantemente ludibriados, no sentido de adiar a sua luta de libertação e a esperar que o ocupante concorde com negociações de paz, mesmo sabendo-se que Israel despreza abertamente tal compromisso, os ucranianos são pressionados pelo Ocidente a fazer exactamente o oposto: deles é esperado que adiem quaisquer negociações com a Rússia e se concentrem no campo de batalha.

Da mesma forma, aqueles que promovem conversas entre Israel e a Palestina que nunca ocorrerão são elogiados como pacificadores. Aqueles que defendem as negociações entre a Ucrânia e a Rússia — quando Moscovo expressou repetida vontade de negociar, mesmo que as suas propostas sejam desvalorizadas pelo Ocidente — são acusados de conciliadores.

A Rússia, enquanto isso, enfrenta amplas e contínuas sanções impostas pelos estados ocidentais para a pôr de rastos. 

Por outro lado, aqueles que propõem uma ferramenta muito mais fraca — boicotes de iniciativa popular — para pressionar Israel a afrouxar o estrangulamento de Gaza são difamados como anti-semitas e enfrentam legislação para proibir as suas actividades pelos mesmos estados ocidentais que sancionam Moscovo.

É como se o Ocidente “amante da liberdade” tivesse uma agenda totalmente contraditória quando se trata das dificuldades da Ucrânia e da Palestina. O domínio de Israel sobre a Palestina é considerado lamentável, mas justificado; o domínio da Rússia sobre a Ucrânia é enfaticamente injustificado. A resistência ucraniana à “agressão não provocada” da Rússia é heróica; a resistência palestina à violência de Israel – invariavelmente apresentada como autodefesa – é terrorismo.

Padrões duplos

As notícias ocidentais correntes são uma ladainha desses padrões duplos e contradições legais e éticas — e, no entanto, quase ninguém o parece notar.

Os ocidentais, por exemplo, aplaudem os protestos no Irão, onde mulheres e raparigas saem à rua e causam distúrbios em massa nas escolas. Os seus protestos foram desencadeados pela morte de Mahsa Amini depois de ter sido presa por usar seu hijab cobrindo a cabeça de forma despreocupada.

Os média ocidentais celebram essas jovens que deixam de lado o hijab em desafio aos clérigos intocáveis que as governam. O Ocidente lamenta os espancamentos e os ataques que recebem de uma teocracia iraniana tirânica e patriarcal.

E, no entanto, não há solidariedade comparável com os palestinos quando eles desafiam colectivamente um exército de ocupação israelita intocável que os domina. Quando eles saem para protestar contra o muro que Israel construiu ao redor de Gaza para aprisioná-los — impedindo-os de sair para trabalhar ou ver familiares no exterior, ou chegar a hospitais muito mais bem equipados do que os seus, que estão sob bloqueio israelita há anos — são abatidos por atiradores israelitas.

Onde estão os aplausos para esses bravos manifestantes palestinos que enfrentam os seus opressores? Onde estão as denúncias de Israel por obrigar os palestinos a suportar um exército israelita tirânico encarregado de impor o apartheid?

Por que razão é totalmente normal que palestinos — jovens e velhos, homens e mulheres — sejam regularmente espancados ou mortos por Israel, enquanto a morte de uma única mulher iraniana é suficiente para conduzir os média ocidentais a paroxismos de indignação?

E por que razão, com a mesma pertinência, o Ocidente se preocupa tanto com a vida das jovens iranianas e seus protestos de hijab quando parece não ligar nada à vida dessas mesmas mulheres, ou dos seus irmãos, quando se trata de impor décadas de sanções ocidentais? Essas restrições mergulharam partes da sociedade iraniana numa pobreza profunda e contínua que coloca vidas iranianas em risco.

Tal é a hipocrisia, que as mulheres israelitas — que não demonstraram solidariedade com as mulheres palestinas abusadas e mortas pelo exército israelita — acabaram na semana passada por cortar o cabelo num acto público de irmandade com as mulheres iranianas.

Ditames ocidentais

Não há nada de novo nestes duplos padrões. Eles estão entrincheirados no pensamento ocidental, baseado numa visão do mundo profundamente racista e colonial — que vê “o Ocidente” como os tipos bons e todos os outros como moralmente degradados, ou irremediavelmente maus, se recusam curvar-se aos ditames ocidentais.

Isso é destacado pela actual batalha de um empresário palestino de 88 anos, Munib al-Masri, para obter um pedido de desculpas da Grã-Bretanha.

Sob as suas instruções, dois advogados eminentes — Luis Moreno Ocampo, ex-procurador-chefe do Tribunal Penal Internacional, e Ben Emmerson, ex-especialista das Nações Unidas em direitos humanos — estão a analisar provas de crimes cometidos por forças britânicas nos anos anteriores a 1948, quando o Reino Unido governava a Palestina sob mandato.

Quando a Grã-Bretanha se retirou, efectivamente permitiu que as instituições sionistas tomassem o seu lugar e criassem um autodeclarado Estado judeu de Israel sobre as ruínas da terra natal dos palestinos.

As provas documentadas por Ocampo e Emmerson — que eles descrevem como “chocantes” — incluem crimes como assassinatos e detenções arbitrárias, tortura, uso de escudos humanos e demolições de casas como arma de punição colectiva.

Tudo isso soa familiar, e é mesmo. Israel tem aterrorizado os palestinos com essas mesmas políticas nos últimos 74 anos. Isso porque Israel incorporou nos seus códigos legais e administrativos os “regulamentos de emergência” do mandato britânico permitindo tais crimes. Israel, simplesmente, continuou o que a Grã-Bretanha havia começado.

Masri espera apresentar o dossiê, de 300 páginas, ao governo do Reino Unido ainda este ano. De acordo com a comunicação social, será “revisto minuciosamente” pelo Ministério da Defesa. Mas não vale a pena esperar por um pedido de desculpas.

A realidade é que Ocampo e Emmerson não precisaram de investigar. Nada que eles digam ao governo do Reino Unido será uma revelação. As autoridades britânicas já sabem tudo sobre esses crimes. E não há remorso — como fica demonstrado, se nada mais houvesse, pelo facto de a Grã-Bretanha continuar a apoiar Israel ao máximo, mesmo quando os militares israelitas prosseguem o mesmo reinado de terror de Estado.

A tarefa de Israel foi renomear como uma “democracia de estilo ocidental” o brutal domínio colonial do mandato britânico sobre a população palestina. É a razão pela qual Israel recebe milhares de milhões de dólares em ajuda dos EUA todos os anos, e pela qual nunca enfrenta consequências por nenhum dos crimes que comete. (3)

A crua verdade é que os ocidentais vivem permanentemente dentro da sua própria bolha de desinformação, empolada pelos seus líderes e pelos média, que permite que eles se imaginem como os bons — sejam quais forem as provas dos factos.

A diferença de tratamento da Ucrânia em comparação com a Palestina deveria finalmente despertar a dura compreensão dos duplos padrões do Ocidente. Infelizmente, o público ocidental parece afundar-se cada vez mais na auto-ilusão reconfortante da sua integridade.

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(1) Ralph Miliband, O Estado na Sociedade Capitalista – Uma análise do sistema de poder no Ocidente, 1969 — Editorial Presença, 1977.

(2) Houve recentemente um exemplo lusitano deste posicionamento académico. A economista Susana Peralta, chamada a dar opinião num canal de televisão sobre o Orçamento do Estado, horas depois do ataque à ponte de Kerch, não se coibiu de proferir um aparte de satisfação com o atentado, fazendo questão de sublinhar o seu alinhamento. Presume-se que Susana Peralta, pelas mesmas razões, terá ficado satisfeita, pelo menos intimamente, com o assassinato à bomba de Daria Duguina ou com a execução sumária pelas forças de Kiev de civis acusados de colaboração com a Rússia.

(3) Em 2020, os EUA deram 3,8 mil milhões de dólares de ajuda a Israel, parte de um compromisso anual de longo prazo feito sob o governo Obama. Quase toda essa ajuda foi para assistência militar. Esse apoio é parte de um acordo assinado pelo então presidente Barack Obama em 2016 de um pacote geral de 38 mil milhões de dólares em ajuda militar para a década de 2019-2028. Da década 1999-2008 para a década 2019-2028 a ajuda subiu de 21 mil milhões para 38 mil milhões, perto de 85%. (BBC, 24 maio 2021)

Jonathan Cook é autor de três livros sobre o conflito israelo-palestino e vencedor do Prémio Especial de Jornalismo Martha Gellhorn. O seu site e blog podem ser encontrados em www.jonathan-cook.net


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