Uma dívida que não é nossa, uma guerra que não queremos

Editor — 13 Outubro 2022

Quer o Orçamento do Estado quer o “acordo de rendimentos” firmado há dias na Concertação Social consagram a perda de poder de compra dos trabalhadores diante da inflação. Nem os salários são aumentados ao nível da carestia, nem a especulação com os preços é travada. Esta espoliação marca a linha política do Governo e mostra — para lá de todas as “ajudas” e de todo o palavreado — quais as classes sociais que o Governo sacrifica no altar da crise económica.

Dívida e guerra

A acção do Governo tem neste momento dois focos: a dívida do Estado e a guerra. As margens extra de impostos arrecadadas pelo fisco (à custa da subida dos preços) vão ser em grande parte aplicadas no pagamento da dívida e no aumento das despesas militares, quando deviam ser devolvidas aos salários e aplicadas em benefícios sociais. 

O que vai para a dívida e para a guerra falta nos hospitais, nos centros de saúde, nas maternidades. E falta mesmo, propriamente falando, para o pão de muitas famílias.

A dívida e a guerra são pagas com os salários que não sobem e com os impostos que não baixam.

Teatro à direita

A oposição de direita reclama mais e promete votar contra o OE só por dever de ofício. Prova disso está no facto de se opor à taxação dos lucros especulativos, ao tabelamento dos preços e ao aumento dos salários (tanto o salário mínimo como os demais) ao ritmo da inflação, o que permitiria uma resposta imediata à pobreza e ao aumento do custo de vida.

O patronato está de acordo em ir saldando a dívida porque isso o alivia dos seus próprios encargos da maneira mais vantajosa para ele: serem todos a pagar o que é dívida dos privados. O esbracejar da direita contra as opções do governo não tem, portanto, verdadeiro suporte nas hostes do capital, a não ser numa coisa: exercer pressão sobre o PS para o desgastar, e preparar, a prazo, a sua substituição por um executivo que dê maior confiança ao patronato. 

É neste teatro combinado que participam PSD, liberais e fascistas. E é neste sentido que devem ser entendidas as aproximações entre eles nos últimos tempos: a proposta do Chega para uma convergência governativa à direita casa com a disposição do PSD para promover a extrema-direita à vice-presidência da Assembleia da República.

Bom negócio

As organizações patronais aceitaram de bom grado o chamado “acordo de rendimentos” acertado na Concertação Social porque fizeram um bom negócio. A troco de uma promessa de aumentos salariais a prazo de quatro anos (que os patrões podem escolher cumprir ou não) obtiveram a garantia de descontos de impostos sobre os lucros. Os que optarem por aumentar salários (certamente porque podem fazê-lo) vêem assim parte desses aumentos pagos pela baixa de impostos — dito de outro modo, pagos, novamente, por todos.

Mais: conseguiram que os aumentos salariais da Função Pública ficassem bem abaixo da inflação, de modo a não induzirem aumentos significativos no sector privado. Mais ainda e acima de tudo: asseguraram que a contratação colectiva continuará congelada, precisamente o dispositivo legal que daria mais força aos trabalhadores para reivindicarem maiores salários.

Tutela paga-se

A guerra — em cima da crise geral vivida desde 2008 e do descalabro da pandemia — causa óbvios prejuízos ao capital português, independentemente dos lucros especulativos obtidos por alguns sectores no imediato. 

Mas o patronato aceita de bom grado esses prejuízos em paga da protecção que lhe é dada pela UE, pelo menos enquanto as verbas vindas de Bruxelas não secarem. E aceita, pelas mesmas razões, a subida das despesas militares a troco da tutela da Nato, hoje inseparável da tutela da UE. 

O pior será quando os pesos pesados da Europa (Alemanha, Itália, França) virarem de rumo em resultado das pressões crescentes sobre os seus governos por parte das opiniões públicas — que começam a levantar-se contra a guerra e contra as sanções — ou, simplesmente, sob o abalo de uma crise económica incontrolável.

Falsa garantia

A recessão na Europa está à vista e tudo indica que atingirá fortemente as economias centrais e mais poderosas.  

As sanções contra a Rússia são um suicídio para a Europa e um maná para os EUA. Só servem para prolongar a guerra, arriscar um conflito global, penalizar os trabalhadores, aumentar a fome no mundo, enriquecer os especuladores, encher os bolsos das petrolíferas.

A UE entrega-se cegamente aos planos bélicos dos EUA e arrisca com isso sofrer o maior sismo económico e social desde a segunda grande guerra. O Governo vai atrás da UE de cabeça baixa. A população portuguesa é arrastada para uma catástrofe.

A garantia de António Costa de que Portugal ficará ao abrigo do vendaval da recessão não vale nada. Nem as medidas que ele tão empenhadamente acertou com o patronato, nem a demonstração aos credores externos de que somos bons pagadores, nos salvarão do contágio.

Oposição na rua

A oposição dos trabalhadores à política do governo e a sua luta contra o patronato não podem ignorar a ligação entre a pobreza, a quebra dos salários, a perda dos apoios sociais, a sujeição à dívida e o apoio à guerra.

“Contas certas”, como defende o Governo, é outra forma de dizer austeridade para quem vive de um salário. É desviar dinheiro dos trabalhadores para saldar uma dívida que não é deles e alimentar uma guerra que eles não querem.

Só um movimento popular que se erga pelo bem-estar do povo, pela justiça social, contra a guerra, contra a Nato poderá responder aos desafios que estão colocados. Que as manifestações marcadas para 15 de outubro, a exemplo das manifestações contra a austeridade e a troika (12 de março e 15 de outubro de 2011), sejam o primeiro passo nesse caminho!


Comentários dos leitores

A Viagem dos ArgonautasPara lá da guerra na Ucrânia… e Portugal — “Uma dívida que não é nossa, uma guerra que não queremos”, por Mudar de Vida 14/10/2022, 9:01

[…] Publicado por Editor de  em 13 de Outubro de 2022 (original aqui) […]

leonel lopes clérigo 14/10/2022, 13:13

MEMÓRIAS
 
Na juventude, ouvimos por vezes algumas sentenças que se gravam na memória e por lá ficam. Uma delas ouvi-a a alguém ligado à indústria das "Conservas de peixe" da minha terra: Dizia ele: "Isto precisa é de uma guerra a ver se anima".
Na altura - aparte a animação da "exportação" rumo às trincheiras - o conteúdo impressionou-me mas não tinha conhecimentos para descodificar a coisa e se ela vinha de algum Keynesiano "feito à pressa".
Hoje, temos "a guerra na Europa" e a animação "económica" é fraca, sobretudo nas algibeiras de quem trabalha, como se diz no texto acima.

1 - Foi Marx que referiu que "Ser-se Radical é ir à RAIZ dos Problemas" e não, como às vezes se procura fazer crer, "dizer asneiras espumando pela boca". Mas estou convencido que teria sido vantajoso se Marx tivesse referido que "Ser 'Pateta Alegre' é FINGIR que não existem Problemas".
Julgo que poucos contestam que a Sociedade Portuguesa - no seu conjunto - tem inúmeros e graves problemas que não tem conseguido resolver. E se a nossa Sociedade é dominada/comandada pela Classe BURGUESA, é a ela que se deve assacar essa responsabilidade. Não há que fugir. E se ela não tem solução...que a ponham na reforma.

2 - Naturalmente que se ouve, na subtileza do "discurso político" burguês, o expediente manhoso de empurrar as culpas para as costas da CLASSE TRABALHADORA, como se ela estivesse no comando da POLÍTICA ECONÓMICA ou fosse ela a "culpada" da existência dos Subdesenvolvidos "EMPRESÁRIOS" portugueses e das suas indústrias de "merda". Basta ver nas TVs as rápidas passagens que dão pelas indústrias Tugas de "embalagens", "costura", "de conservas"...tudo HOJE "indústrias de ponta" a que se junta agora a importante e já bem difundida indústria dos "Chefes de Cozinha".

3 - Quanto à RESPONSABILIDADE da nossa CLASSE TRABALHADORA no SUBDESENVOLVIMENTO da Sociedade Portuguesa, há que dizer - em nome da Dialéctica... - que tem também ela culpas no cartório.
A nossa Classe Trabalhadora é "inculta politicamente" e, talvez por isso, "paciente". Digamos: não descortina qualquer futuro melhor à sua frente: só a emigração. Para ela, o ser-se ASSALARIADO ("colaborador", diz o burguês malandreco que sabe há muito da importância do palavreado) é coisa de SATANÁS, inelutável e inevitável. Mas nunca passou pela cabeça da nossa Classe Trabalhadora, que só ela pode extinguir o Regime do Salário.

4 - É preciso apontar o dedo às organizações que se reclamam da Classe Trabalhadora: porque razão o VAZIO "sindicaleiro" é a "pedra de toque" destas organizações. Daqui, surge a questão: a que se deve isto?
Julgo que a várias coisas mas, uma delas parece-me de larga importância: a ECONÓMICA.
O facto da grande maioria das organizações serem "SUSTENTADAS" pelo ORÇAMENTO do ESTADO, tem isso consequências perversas no seu comportamento político: tornam-se "bem comportadas", para serem premiadas com melhor "rendimento" na vida "eleiçoeira" do voto. E isso deve-se ter em consideração, se se pretende uma clara AUTONOMIA da CLASSE TRABALHADORA e de seu PROGRAMA POLÍTICO e PROJECTOS de TRANSFORMAÇÃO do PAÍS. Sobretudo quando a CLASSE BURGUESA há muito já demonstrou ser incapaz de levar o PAÍS pelos caminhos do DESENVOLVIMENTO. (1)

(1) - Não sei o que vai na cabeça do Sr. Cotrim quando propõe ir-se de volta a 1820. Que eu saiba, a "grande reivindicação da Burguesia Portuense" na altura, era o regresso (em ordem) do Brasil do rei D. João VI. E assim se "restabeleceria" o velho "fluxo colonial" que sempre fez as "delícias" das "carteiras" da nossa Burguesia Rentista. Mas, talvez, o Sr. Cotrim tenha como objectivo "teórico" engolir o Setembrismo industrioso nas fileiras dos comerciantes parasitas de 1820.

Maria Teresa Franco Alves Da Silva 15/10/2022, 19:57

Bom artigo, claro e objectivo.
O discurso da esquerda, na Assembleia da República, na prática, junta-se às críticas da direita, relativamente ao OE 23.
Não têm um discurso construtivo e claro quanto às possibilidades de formulação de um OE mais compatível com a melhoria das condições de vida da classe trabalhadora. As opções ou objetivos do futuro OE não são abordados e explicados como poderiam ser mais favoráveis . E, do meu ponto de vista, essa deve ser a intervenção política que lhes deve ser requerida.
O que é dado como certo, é que o OE será aprovado e a classe trabalhadora e respectivos reformados vão "passar bem pior" nos próximos tempos.

leonel lopes clérigo 16/10/2022, 10:23

Maria Teresa Franco Alves Da Silva 

1 - Em primeiro lugar, julgo que se "O discurso da esquerda, na Assembleia da República, na prática, junta-se às críticas da direita, relativamente ao OE 23", nada há de mal nisso desde que estejam ambas CERTAS. Só um Programa PREGUIÇOSO da dita "Esquerda" se pode contentar em erguer um "discurso crítico" SEMPRE CONTRÁRIO ao da "Direita". Isso mais não é do que uma FORMA de perda de AUTONOMIA, de ser "rebocada" pela "Direita".
No caso concreto, se o P"S" faz "merda" - como sempre...- e se a CRÍTICA INDEPENDENTE da "Esquerda" - melhor, do "mundo do trabalho" - o denuncia, pouco importa o que diz a "Direita".
(Nota: uso os termos ESQUERDA/DIREITA mas considero que devem ser abandonados a bem da maior CLAREZA do discurso político. Para isso, é essencial voltar a chamar "os bois pelos nomes".)

2 - MTFADS: essa de um "OE mais compatível com a melhoria das condições de vida da classe trabalhadora", não vislumbro como concretizá-lo.
Não só porque temos uma ESTRUTURA ECONÓMICA SUBDESENVOLVIDA que "não dá nem para mandar cantar um cego", como vivemos num País amarrado pelo pescoço - sem autonomia... - aos interesses dos grandes da Europa que ditam os Programas - e até as guerras...- como lhes convém.
O que parece certo, é que nós, Portugueses, somos como a História do Marido/Mulher enganados: "Somos sempre os últimos a saber...". Mas neste caso, a "solução" parece passar, também, pelo divórcio...

mraposo 16/10/2022, 18:49

A Viagem dos Argonautas
Agradecemos o vosso interesse.
Saudações


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