Circo sem pão

Editor — 15 Setembro 2022

Ainda nos falta suportar quase uma semana de reportagens até ao funeral de Isabel II. O ror de horas de transmissões televisivas, o batalhão de repórteres vestidos de luto especialmente enviados para debitarem todas as banalidades, as louvaminhas a uma aristocracia absolutamente corrompida, a convocação de testemunhos bacocos sobre as finuras do protocolo ou as virtudes da monarquia — tudo isso junto é revelador do estado de morte cerebral das classes dominantes do país. Mas é também o circo com que contam distrair a populaça (por quanto tempo?) da guerra, do abismo económico, da degradação da vida diária, da falta de futuro.

Os observadores atentos dizem, com razão, a propósito dos arroubos britânicos, que o Reino Unido de hoje não passa de um anão em bicos de pés, que não se enxerga na sua pequenez, saudoso dos velhos tempos em que dominava o mundo. Talvez os dirigentes portugueses devessem ter isto em conta quando insistem no estafado slogan do “velho aliado” e julgam, com isso, promover-se a si próprios. 

Por detrás da pompa, o RU é uma sociedade decadente que destila as piores tendências de um capitalismo apodrecido. O sistema político foi capturado por uma classe dirigente ultra-reaccionária que manobra a bel-prazer os formalismos democráticos e a “tradição”. O apoio extremado à Ucrânia de Zelensky faz do RU um dos primeiros responsáveis pela inevitabilidade e pela eternização da guerra, com as consequências que se vêem para britânicos e restantes europeus. A extradição de migrantes indocumentados para África funda-se nas receitas de limpeza étnica ou religiosa que o império britânico abundantemente praticou e o nazismo levou a extremos. A vergonhosa prisão e extradição de Julian Assange a pedido dos EUA é uma grosseira violação de direitos humanos e da liberdade de denunciar os crimes de Estado, entre eles os crimes de guerra do RU de parceria com os EUA.

O circo que nos é mostrado horas a fio, todos os dias, exalta a “estabilidade” e a “continuidade” supostamente proporcionadas pelos 70 anos do reinado de Isabel II e pela própria instituição monárquica. Mas esse é apenas um bom expediente para não ter de se falar das guerras das Malvinas, da Jugoslávia, do Iraque, do Afeganistão ou da Líbia. Nem para pôr em contraste os milhões gastos pelos parasitas da Casa Real com a penúria que mortifica as classes trabalhadoras. A inflação atinge no RU dos valores mais altos da Europa: mais de 10% em julho de 2022, podendo atingir 14% ou 18% no final do ano. Os números da pobreza disparam: em 2019 um quinto das famílias eram pobres (14 milhões de pessoas), em 2023 serão um terço (mais de 20 milhões), inclusive no que respeita à questão básica da alimentação.

É este modelo que o reverente Marcelo Rebelo de Sousa, a par do infeliz D. Duarte Pio, mais os bajuladores a soldo nos querem impingir como exemplo de grandeza. 

(A burguesia, que, pelo menos ao longo de duzentos anos — só para falar dos tempos modernos —, levou a cabo revoluções sangrentas e guerras civis para se impor politicamente, cedo se mostrou como que arrependida dos seus próprios actos históricos e saudosa das instituições e dos preceitos da aristocracia. Sinal de irremediável decrepitude, reaccionarismo e incapacidade para conduzir a humanidade — a não ser pelos caminhos da degradação moral e da miséria social. A História colocou a burguesia, nesta época de capitalismo senil, na insustentável posição da aristocracia de antanho, que ela mesma a seu tempo derrubou como um obstáculo. Falta hoje às classes populares entreverem a possibilidade de um novo mundo e disporem-se a dar o passo seguinte que o nosso tempo lhes reservou.)

Findo o folclore das exéquias, voltaremos ao dia-a-dia dos plebeus: guerra sem fim (doa a quem doer), preços galopantes (a começar pela alimentação), inverno com mais frio (em 2021, um quinto dos portugueses não tinha dinheiro para aquecer a casa, quanto mais agora), pobreza em crescendo (era 20% em 2020, passou a 22% em 2022), salários degradados pela inflação, políticas públicas de remedeio em vez de justiça social. 

No Algarve (onde pontificam os britânicos, que as reportagens mostram pesarosos com o passamento de Sua Majestade), mesmo no pico do verão, com o turismo em alta, os pedidos de ajuda alimentar não pararam. Em começo de setembro, 27 mil pessoas estavam a ser apoiadas por diversas organizações civis, que entretanto vão ficando sem recursos em consequência do aumento dos preços dos bens de consumo, dos combustíveis e dos transportes. Prevê-se que o número de pessoas em carência alimentar aumente à medida que o turismo entre na época baixa e mais trabalhadores, na maioria com empregos sazonais, fiquem sem trabalho.

 


Comentários dos leitores

afonsomanuelgoncalves 15/9/2022, 21:21

Grande espectáculo as exéquias que a nobreza inglesa consagrou à morte irremediável da sua raínha. Mas mais comovente foi ver a vassalagem deprimente que os diversos repórteres portugueses manifestaram perante o luto real de sua magestade. Comentadores serventuários dos nobres e príncipes medievais também não faltaram nos écrans das televisões portuguesas, mas apesar dd tudo o povo portugues passou pelos prgramas como como cão por vindima e mostraram ao mundo que tem outro tipo de preocupações fora do folclore medíocre que a Inglaterra no seu conjunto revelou. De fora ficou, como tinha que ser, Liverpool a cidade industrial que não comunga o ideal monárquico.

José Manuel Almeida 18/8/2023, 12:19

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