Ministro dos fardamentos

Urbano de Campos — 3 Setembro 2022

Cravinho: uma irrepreensível fidelidade, até nas palavras, aos dirigentes imperialistas

O ministro dos Negócios Estrangeiros, João Gomes Cravinho, fez questão de ir a Kiev no dia da independência da Ucrânia, a 24 de agosto. Falou com Zelensky depois de, dizem as notícias, ter de se refugiar num bunker devido a uma ameaça de bombardeamento. Este episódio excitante valeu-lhe um rasgado elogio de um comentadorzeco da CNN Portugal pela “coragem física” demonstrada… Resultados da visita, segundo Cravinho: manifestar apoio a Zelensky (pela enésima vez) e receber de Zelensky um pedido de fardamentos novos. Só isso?

Teria sido um desperdício Cravinho ter-se deslocado a Kiev — para mais, com o risco de ser bombardeado… — por coisas que se resolviam por telefone ou email. Evidentemente, o ministro foi lá com outra agenda. Qual foi, não se sabe.

Cravinho é evidentemente um homem de confiança da Nato e dos EUA, e isso conta sobremaneira para o papel que ele, e o governo português com ele, desempenham nesta miserável diplomacia de guerra.

Como ministro da Defesa que substituiu o atarantado Azeredo Lopes (de quem os militares fizeram gato-sapato), coube-lhe a tarefa de pôr uma pedra sobre o escândalo de Tancos, para contento do poder político e da hierarquia militar. Como se sabe, o assunto foi julgado pelo lado fácil: como uma mera operação de larápios e como tentativa canhestra de recuperação de armas roubadas. Assim, ficou por indagar e por julgar o lado difícil: a corrupção da cadeia de comando que permitiu o roubo, destinado, se tudo corresse bem, às redes de tráfico de armas. Quantos casos anteriores bem sucedidos terá havido, não se sabe.

Também como ministro da Defesa, Cravinho enfrentou de modo muito próprio um outro escândalo revelado em final de 2021: o do tráfico de diamantes, ouro e droga pela tropa destacada, em missão da ONU, na República Centro-Africana. Informado do assunto desde 2019, Cravinho disse tê-lo comunicado à ONU em começo de 2020. Mas nem o primeiro-ministro nem o presidente da República terão tido conhecimento do caso antes de ele ter vindo a público. Na altura, Costa e Marcelo mal disfarçaram o incómodo pela situação em que Cravinho os terá colocado. E mesmo o porta-voz do secretário-geral da ONU só em final de 2021 revelou ter conhecimento do assunto: “Acabámos de ver as notícias esta manhã”, disse ele em Novembro de 2021.

Quando rebentou a guerra na Ucrânia, Cravinho, ainda ministro da Defesa, mas a um passo dos Negócios Estrangeiros, anunciou em 10 de março, por sua iniciativa, um aumento das despesas militares quando o Orçamento do Estado ainda não estava aprovado. Nem o primeiro-ministro nem o presidente da República (sempre tão cioso das suas prerrogativas de primeiro-a-ser-informado) o puseram na ordem ou lhe pediram satisfações. A decisão, obviamente, resultou de pressões vindas de fora e chegou a Cravinho pelos canais da Nato, de modo que tanto Costa como Marcelo meteram a viola no saco.

Mais um pormenor, este do domínio do carácter. Os dirigentes norte-americanos e da Nato, quando se referem à invasão russa da Ucrânia, repetem sempre uma frase-chave de evidente sentido político-jurídico: “invasão ilegal e não provocada”. O ministro Cravinho faz o mesmo, parecendo querer demonstrar a sua irrepreensível fidelidade, até nas palavras, aos dirigentes imperialistas.

Cravinho é, pois, um ministro com larga margem de manobra no governo, que lhe advém, evidentemente, do seu alinhamento incondicional com os falcões que, no caso da Ucrânia, apostam no desgaste da Rússia e se dispõem a prolongar a guerra por tempo indefinido. O próprio Cravinho tem repetido esta visão ultra de adepto do vamos-à-guerra: “A Nato não tolerará uma vitória de Putin”.

Fez agora exactamente um ano, Cravinho esteve também em Kiev para participar na chamada Plataforma de Crimeia, promovida pelo governo ucraniano para reunir apoios internacionais com vista à “recuperação” da península, reintegrada em 2014 na Federação Russa. A par da concentração de tropas, ao longo de 2021 e no início de 2022, para atacar as repúblicas do Donbass, o governo ucraniano criava igualmente condições para uma ofensiva sobre a Crimeia.

Nada indica, portanto, que Cravinho tenha ido a Kiev pôr juízo na cabeça de Zelensky e da sua corte, alimentados pelos milhões drenados dos EUA e da UE para o poço sem fundo (em despesa e em corrupção) que é a Ucrânia. Desde que o marfim continue a correr, pouco importa à trupe dirigente de Kiev ou a Cravinho que as baixas ucranianas ascendam já a 250 mil, entre mortos, feridos, prisioneiros e desaparecidos (dados divulgados pelo major-general Agostinho Costa na CNN Portugal).

Pelo contrário. O ministro deixou vincado que o apoio a Zelensky “é para continuar em todas as dimensões”. Não é assim difícil conjecturar sobre a ordem de trabalhos: prolongar a guerra a todo o custo; rejeitar hipóteses de negociações; atacar alvos russos na Ucrânia, na Crimeia ou na própria Rússia; enveredar pelo assassinato selectivo; criar um acidente grave na central nuclear de Zaporíjia ou outra para culpar o adversário de um desastre ambiental; forjar uma “crise humanitária” para justificar uma intervenção externa, como no Kosovo ou na Bósnia; fechar a Europa aos cidadãos russos; recrutar cada vez mais mulheres e jovens e treiná-los em países estrangeiros (em Portugal também?) para que a guerra prossiga; partilhar informações entre os serviços secretos; reservar às empresas portuguesas o seu quinhão na “reconstrução” da Ucrânia; etc. Ah, e os fardamentos.

Uma coisa é certa: Cravinho foi a Kiev dizer o que Zelensky e os seus queriam ouvir. Só assim se compreende que o ministro dos Negócios Estrangeiros ucraniano, o fascista Kuleba, com quem Cravinho também falou, tenha referido o encontro como “uma conversa entre amigos (!) que se entendem muito bem (!) e que estão preparados para se apoiar mutuamente”. Vassalagem é o termo.

O ministro português e o governo deveriam ser lembrados das obrigações elementares que resultam duma simples leitura da Constituição: Portugal rege-se nas relações internacionais pelos princípios da independência nacional e da solução pacífica dos conflitos internacionais. Devia reger-se.


Comentários dos leitores

leonel lopes clérigo 3/9/2022, 13:34

Este meu PAÍS faz-me, cada vez mais, lembrar - quando era gaiato - a fila dos "POBREZINHOS" à porta da LEGIÃO esperando pela HORA da "SOPA DOS POBRES".
Ao que isto chegou!...

Estátua de Sal 3/9/2022, 15:13

Excelente!

leonel lopes clérigo 8/9/2022, 11:10

ESTÁTUA de SAL

EXCELENTE?...
Um PAÍS que tem como seu "objectivo principal" VIVER a ESMOLAR FUNDOS - para perpetuar uma CLASSE MÉDIA (?...) pedinchona e pindérica, feita de encomenda para sustentar um par de capitalistas SUBDESENVOLVIDOS que não andam nem para a frente nem para trás - não pode esperar outra coisa senão - com o chegar do ciclo de CRISE - que lhe "APERTEM o PIPO" para poder pagar a "CONTA" sem piar.
Depois, culpem a INFLAÇÃO que, como todo o mundo sabe, cai sempre do céu aos trambolhões sem o "ignorante" BANCO de Portugal saber...


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