Amnistia Internacional: uma denúncia incómoda
Editor / Batko Milacic — 14 Agosto 2022
A comunicação social passou como gato sobre brasas pelo relatório da Amnistia Internacional que denuncia crimes de guerra cometidos pelo exército ucraniano. De facto, o documento não só revela as violações do direito humanitário do lado ucraniano como, por essa via, coloca em causa a acusação — até agora inteiramente unilateral — acerca dos alegados crimes cometidos pela parte russa. Não admira pois que o relatório, divulgado a 4 de agosto, tenha sido rapidamente remetido a um completo esquecimento.
O título do documento fala por si: “Ucrânia: tácticas de luta ucranianas põem civis em perigo”. As pressões não se fizeram esperar. Zelensky, do alto da sua arrogância costumeira, fez saber que o relatório “não pode ser tolerado”. O ministro dos Negócios Estrangeiros, Kuleba, ajudou à condenação acusando o relatório de “potenciar a desinformação russa”.
Tanto bastou para que a dirigente da Amnistia na Ucrânia se demitisse, afirmando que tinha tentado dissuadir a AI de publicar o relatório (ou seja, abafá-lo), mas não se atrevendo a dizer que as revelações eram falsas. Nem Zelensky nem Kuleba também se preocuparam em apresentar provas que desmentissem os factos apontados.
No meio das pressões, a AI veio pedir desculpas pela “angústia e ira” causadas (aos dirigentes ucranianos, claro) pela denúncia. Mas, em todo o caso, a AI reafirmou que “defendemos inteiramente os factos apurados”. Na comunicação social portuguesa tiveram relevo noticioso aquelas desculpas, mas não a reafirmação da AI acerca da verdade das conclusões tiradas — o que só se pode entender como propósito de desvalorizar e fazer esquecer o relatório.
É claro que esta denúncia dos crimes ucranianos não absolve o lado russo. Mas, pelo menos, fica em causa a acusação, ouvida permanentemente, de que as tropas russas visam deliberadamente alvos civis, seguem uma táctica de destruição indiscriminada, ou têm por objectivo aterrorizar as populações, etc. — afirmações que têm marcado o discurso dominante dos meios de comunicação e que os responsáveis russos sempre têm rejeitado.
Uma coisa é certa: fica demonstrado, pelo menos nos casos apurados, que foram os ucranianos a colocar civis em risco de vida por usarem áreas urbanas e edifícios habitacionais, escolas, ou hospitais como abrigo para operações militares.
O artigo que divulgamos foi publicado em The Saker e resume os dados apurados pelo relatório da AI.
VEM À LUZ UMA VERDADE DESAGRADÁVEL PARA OS UCRANIANOS
Batko Milacic, The Saker, 7 agosto 2022
As forças ucranianas ameaçaram civis ao instalar bases e operar sistemas de armas em áreas populacionais, incluindo escolas e hospitais, enquanto combatiam a intervenção russa que começou em fevereiro, disse a Amnistia Internacional em comunicado.
“Tal táctica viola o direito internacional humanitário e põe em perigo os civis, pois transforma objectos civis em alvos militares. Os ataques russos que se seguiram em áreas povoadas mataram civis e destruíram a infraestrutura civil”, disse o comunicado.
[Um padrão de actuação]
A Amnistia Internacional documentou um padrão de actuação das forças ucranianas colocando civis em risco e violando as leis da guerra ao realizar operações em áreas povoadas – disse Agnes Callamard, secretária-geral da Amnistia Internacional. E sublinhou que a posição defensiva não isenta o exército ucraniano de respeitar o direito internacional humanitário.
Os observadores da organização passaram várias semanas de abril a julho investigando ataques russos em Kharkiv, Donbass e na região de Mykolaiv.
A organização inspeccionou os locais atacados, entrevistou sobreviventes, testemunhas oculares, familiares das vítimas dos ataques e realizou detecção remota e análise de armas. Durante essas investigações, foram encontradas provas de que as forças ucranianas disparavam de áreas densamente povoadas e estavam dentro de edifícios civis em 19 cidades e aldeias daquelas regiões. A organização analisou imagens de satélite para confirmar ainda mais alguns desses incidentes, ressalta o relatório.
De acordo com a Amnistia Internacional, a maioria das áreas residenciais onde os soldados se instalaram estavam a quilómetros de distância da frente de combate.
Existiam alternativas viáveis disponíveis que não colocariam civis em perigo, como bases militares ou áreas densamente arborizadas próximas, ou outras estruturas mais distantes de áreas residenciais. Nos casos documentados, a Amnistia Internacional não teve conhecimento de que os militares ucranianos, localizados em estruturas civis em áreas residenciais, tenham pedido aos civis para evacuarem as zonas, ou os tenham ajudado a fazê-lo, o que representa uma negligência em tomar todas as precauções possíveis para proteger os civis.
Tiro a partir de áreas povoadas
A Amnistia diz que sobreviventes e testemunhas oculares de ataques russos em Donbass, Kharkiv e na região de Mykolaiv contaram aos investigadores que os militares ucranianos realizaram operações perto das suas casas no momento dos ataques, expondo as áreas ao contra-ataque das forças russas. Os investigadores da Amnistia Internacional testemunharam esse comportamento em vários locais.
O direito internacional humanitário exige que todas as partes em conflito evitem localizar, até ao limite do possível, alvos militares dentro ou perto de áreas densamente povoadas. Outras obrigações para proteger os civis dos efeitos dos ataques incluem remover os civis das proximidades de alvos militares e proporcionar o alerta eficaz sobre ataques que possam afectar a população civil.
“O exército estava estacionado na casa ao lado da nossa e o meu filho muitas vezes levava comida para os soldados. Implorei-lhe várias vezes para ficar longe, porque temia pela segurança dele. Naquela tarde, quando aconteceu o ataque, o meu filho estava no nosso quintal e eu em casa. Ele morreu no local. O corpo ficou mutilado. A nossa casa foi parcialmente destruída” – disse a mãe de um homem (50 anos), que foi morto num ataque com rockets em 10 de junho numa aldeia ao sul de Nikolaev. A Amnistia Internacional encontrou equipamentos militares e uniformes na casa ao lado da dela.
Nikola, que mora num quarteirão em Lisichansk, em Donbass, que os russos regularmente atacavam e onde mataram pelo menos uma pessoa, disse que não é claro para ele “por que motivo o nosso exército dispara das cidades e não dos campos”. Outro morador disse que “há sem dúvida actividade militar no bairro, ouvimos fogo de cá para lá e de lá para cá” – disse.
Equipas da Amnistia Internacional viram soldados a usar edifícios residenciais localizados a vinte metros de distância da entrada de um abrigo subterrâneo, que era utilizado pelos moradores e onde um idoso foi morto.
Numa cidade de Donbas, em 6 de maio, as forças russas usaram munições de fragmentação num bairro com casas de um ou dois andares onde as forças ucranianas estavam a operar peças de artilharia. Estilhaços danificaram as paredes da casa onde Ana (70 anos) mora com o filho e a mãe de 95 anos.
No início de julho, um trabalhador agrícola ficou ferido quando as forças russas atacaram um armazém agrícola na área de Nikolaev. Horas após o ataque, investigadores da Amnistia Internacional verificaram a presença de militares e veículos ucranianos na área de armazenamento de cereais, e testemunhas confirmaram que os militares estavam a usar o armazém, localizado em frente a uma quinta onde os civis vivem e trabalham.
Os investigadores, quando examinavam danos em edifícios residenciais e públicos em Kharkiv e aldeias no Donbass e a leste de Mykolaiv, ouviram tiros de posições militares ucranianas próximas.
Em Bakhmut, vários moradores disseram que os militares ucranianos estavam a usar o topo de um edifício alto situado apenas a vinte metros do outro lado da rua. Em 18 de maio, um rocket russo atingiu a frente do prédio, destruindo parcialmente cinco apartamentos e danificando prédios próximos.
Bases militares em hospitais
Pesquisadores da Amnistia Internacional testemunharam o uso de hospitais por forças ucranianas como bases militares de facto em cinco locais. Em duas cidades, dezenas de soldados descansaram e comeram em hospitais. Noutra cidade, soldados dispararam de perto de um hospital.
Um ataque aéreo russo em 28 de abril feriu dois trabalhadores num laboratório médico nos subúrbios de Kharkiv depois de as forças ucranianas terem estabelecido uma base no conjunto edificado. Usar hospitais para fins militares é uma clara violação do direito internacional humanitário.
Bases militares em escolas
O exército ucraniano estabeleceu rotineiramente bases em escolas nas cidades e aldeias do Donbass e na região de Mykolaiv. As escolas foram temporariamente fechadas aos estudantes desde o início do conflito, mas na maioria dos casos os edifícios estavam localizados perto de zonas residenciais civis.
Em 22 das 29 escolas visitadas, os investigadores encontraram soldados a usar as instalações ou provas de actividade militar actual ou anterior – incluindo a presença de equipamento militar, munições, pacotes de rações militares e veículos militares.
As forças russas atacaram muitas escolas usadas pelas forças ucranianas. Em pelo menos três cidades, após o bombardeio russo de escolas, soldados ucranianos mudaram-se para outras escolas próximas, colocando os bairros vizinhos em risco de ataques semelhantes.
Numa cidade a leste de Odessa, a Amnistia testemunhou soldados ucranianos usando áreas civis para alojamento e intervenção, incluindo veículos blindados debaixo de árvores em áreas residenciais e usando duas escolas localizadas em áreas residenciais densamente povoadas.
Conclusão
O relatório da Amnistia Internacional não foi uma surpresa para mim como analista. Todos nós que acompanhamos o conflito desde início testemunhámos que o comportamento e as tácticas do exército ucraniano são estritamente proibidas pelo direito internacional. Também o ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia alertou sobre o comportamento do exército ucraniano que ameaça civis inocentes. No entanto, o facto de a respeitada Amnistia Internacional escrever sobre isso no seu relatório representa uma viragem estratégica. Tendo em conta que esta é uma organização não governamental ocidental extremamente respeitada, podemos dizer com segurança que, mesmo no Ocidente, cresce lentamente a opinião de que o comportamento criminoso do exército ucraniano não será mais tolerado. (*)
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(*) Nota MV: Não partilhamos do optimismo do autor quando diz que o relatório representa “uma viragem estratégica” e que o comportamento ucraniano “não será mais tolerado”. A pressão que, de imediato, se fez sentir sobre a AI mostra bem a falta de respeito do Ocidente por denúncias que não o favorecem. A censura e a voz única que dominam os meios de comunicação vão continuar a mostrar apenas o que convém para manter a ficção de que o bando de Zelensky está ungido de virtudes democráticas e para prolongar a guerra custe o que custar. O relatório da AI é uma ajuda, mas muitas mais denúncias serão necessárias para subtrair a opinião pública à lavagem cerebral de que está a ser vítima.
Comentários dos leitores
•afonsomanuelgoncalves 14/8/2022, 13:40
Não deixa de ser preocupante o tipo de desculpas que vários comentadores apologistas da vitimização ucraniana e fugases denunciantes das atrocidades russas. Uma das defesas quer de Zelensky, quer dos comentadores habituais; é a da parcialidade da Comissão face às denúncias favorecendo a causa russa. Dizem em únissuno que a Comissão não distingue o pais agressor do agredido e que assim favorecem o agressor. Para esta gente o facto de a Aministia náo distinguir os cidadãos é uma atitude discriminatoria inaceitável. Esta lógica de ver um cidadão ucraniano ou uma criança desse país náo tem que ser tratada de igual modo como apenas uma criança ou um cidadão. A Amnistia Internacional dos direitos humanos limitou-se a cumprir os seus deveres.
•Maria João Azevedo 27/8/2022, 22:53
Existe uma enormíssima hipocrisia internacional neste conflito e sobre ele. Há uma grande estratégia em curso, - no fundo é a luta entre o Bem e o Mal. Repudia-se um Ocidente que, infelizmente, tem vindo a optar pelo caminho do mal. E, infelizmente também, é o povo ucraniano que está a pagar a fatura. A grande Media não divulga absolutamente nada sobre as verdades disto tudo, que se tornam verdades ocultas. As grandes massas populacionais não sabem nada, pois não estão informadas. É assim que estamos. Restam os canais da InterNet para divulgarem alguma coisa.
•leonel lopes clérigo 31/8/2022, 13:23
MARIA JOÃO AZEVEDO
Lastimo discordar: não se trata aqui da LUTA entre o BEM e o MAL. A luta é outra e já há um certo tempo que foi baptizada com o nome de LUTA de CLASSES.
Penso, por isso, que o Ocidente não vem optando pelo "CAMINHO do MAL".
Se descermos do "CÉU à TERRA", o que o OCIDENTE FAZ mais não é que seguir os "VELHOS" passos dos ancestrais: tal como nas velhas Sociedades, opta pelos INTERESSES politico-económicos duma restrita CLASSE CAPITALISTA dominante, cobrindo-os com uma IDEOLOGIA cuja "função" é tapá-los com "o manto diáfano da fantasia".
Já é bem visível HOJE, que estes interesses são desfavoráveis à maior parte dos "habitantes" deste PLANETA e favoráveis apenas a uma pequena "ELITE". Daí estarem destinados a serem "derrotados" e "desaparecerem".
Esta, em minha opinião, a grande QUESTÃO que o nosso TEMPO vai ter que resolver. E aqui sim: a BEM ou a MAL. E quanto mais rápido a resolver, muito do BEM e do MAL se evaporará na atmosfera...
E julgo poder assegurar: a "poluição" não vai ser muita.
•afonsomanuelgonçalves 6/9/2022, 16:49
De facto, a re lação entre bem e mal é uma relação que diz respeito à ética e nao à luta de classes. Hegel filósofo alemão do séc. XVIII e XIX afirmou que o bem e o mal é uma falsa contradição, no entanto Marx mais tarde dirá que a contradição essencial na luta política do séc. XIX é a luta que opôe o proletariado à burguesia e que é necessário para a libertação do proletariado que o poder capitalisfa seja derrubado pelo pela classe dos trabalhadores. Só assim é possível acabar com a exploração do homem pelo homem.