O estado da nação: omissões de um debate

Urbano de Campos — 28 Julho 2022

Pobreza atinge 20% da população portuguesa. Um terço tem emprego estável. Só 13% não têm emprego

António Costa e o Governo saíram por cima no debate parlamentar sobre o estado da nação. Não foi difícil. Apesar de todas as críticas, as diversas oposições não beliscaram o nervo da situação presente: a calamidade que atinge as classes trabalhadoras em resultado da crise económica e da guerra. Com efeito, não é “o país” em geral — como se tornou cómodo dizer na linguagem de consenso das lides parlamentares — que é fustigado, mas sim as classes mais pobres, mais penalizadas e mais desprezadas da sociedade. 

A parte do país que vive do grande comércio, dos negócios financeiros, da venda de combustíveis, e por aí fora, arrecada lucros extra à custa da inflação, da especulação de preços e da própria escassez de bens sem que ninguém lhe ponha travão. Obviamente, a fonte de tais lucros é a outra parte do país: aquela que vive de um salário e não pode repercutir os aumentos de custos em mais ninguém. 

Os sacrificados

A recusa do Governo em subir os salários de modo a acompanharem a inflação e a igual recusa em pôr um tecto nos preços mostra, sem margem para dúvidas, quais as classes que o Governo quer ver a suportar os custos do descalabro económico que se desenha.

A inflação manifesta-se pela subida dos preços, mas a subida dos preços é resultado da desvalorização do dinheiro. Quando, diante de um processo de desvalorização do dinheiro, os salários permanecem ao mesmo nível, isso quer dizer que quem paga salários paga menos pelo mesmo trabalho. 

Com uma inflação a chegar aos 9%, a massa salarial das classes trabalhadoras sofre na realidade um desfalque de 9%. Por cada 100 euros recebidos, 9 equivalem a moeda falsa. Obviamente, o desfalque só poderia ser anulado por uma subida correspondente dos salários para que tudo ficasse na mesma. (*)

Os intocáveis

É claro que não se passa o mesmo do lado do capital. Neste caso, os preços finais dos produtos ou dos serviços tendem a incorporar (muitas vezes com antecipação e com oportunismo especulativo) o aumento dos custos de produção por simples decisão “económica” de quem os determina.

Eis como o “funcionamento do mercado”, que António Costa não quer perturbar (com aplauso de todas as organizações patronais e de toda a direita), beneficia quem tem capital e penaliza quem vive de salário.

Ainda por cima

A subida dos juros bancários, determinada pelo Banco Central Europeu em nome do combate à inflação, vem somar-se à quebra dos salários reais. 

Sabe-se que o aumento das prestações dos empréstimos para consumo ou para aquisição de casa vai atirar muitas famílias para a insolvência. Que remédio tem o Estado para responder a isto? Nenhum, a não ser dar “conselhos úteis” às famílias através da Deco, do Banco Alimentar ou das Misericórdias para que sejam comedidas nos gastos ou renegociem as condições dos empréstimos.

Por outro lado, pagar a dívida portuguesa passará a custar mais ao Estado. As disponibilidades para apoios sociais ou investimento público, já escassas, vão diminuir em nome de “honrar os compromissos” com os credores — credores estes que formam a elite da grande finança europeia e mundial que decide os rumos da política económica. 

Faltando recursos ao Estado, o agravamento de impostos volta a colocar-se no horizonte próximo. Abre-se caminho para um maior empobrecimento das classes trabalhadoras, que perderão não apenas no salário directo mas também no salário indirecto.

Mal de saúde

As quebras nos apoios sociais são especialmente visíveis no Serviço Nacional de Saúde. Por mais que o Governo demonstre que investe dinheiro e recursos no SNS, o certo é que os serviços prestados não respondem às necessidades crescentes da população. Sobretudo de uma população envelhecida e empobrecida, a precisar por isso de mais cuidados.

Sabendo deste ponto fraco, a direita, com a colaboração das ordens profissionais, montou uma campanha para desacreditar o SNS, com um fito claro: limitar ainda mais o alcance dos serviços públicos de saúde e conduzir as verbas do Estado para os privados.

O problema continuará enquanto não for dada resposta ao ataque que os privados orquestraram. Enquanto o Governo continuar a tentar um equilíbrio impossível entre os interesses públicos de saúde e os interesses comerciais da medicina privada, serão sempre os privados a tirar benefício, como se tem visto.

A resposta só pode ser de natureza política: o negócio privado da saúde deve ser travado em nome do interesse social; a doença não pode constituir matéria de lucro; a socialização dos serviços de saúde tem de ser colocada como medida de interesse colectivo.

Tabu 1

António Costa fez questão de garantir, bravamente, que não irá desculpar-se com os efeitos da guerra. Mas a guerra já lhe serviu de desculpa para ceder à pressão dos EUA, da UE e da Nato no sentido de canalizar verbas para a Ucrânia e aumentar as despesas militares.

Até agora, esteve à vontade para o fazer. Contando com o apoio de quase todo o espectro parlamentar, da extrema-direita ao BE, o Governo tem podido escudar-se numa quase união nacional a favor da guerra e tratar a solitária oposição do PCP como coisa irrelevante.

Obviamente, os compromissos que o Governo já tomou e vai tomar a este respeito serão igualmente pagos pelos assalariados portugueses, de forma dupla: pelo desperdício social que são os gastos militares e pela quebra que isso representará nos recursos do Estado Social. 

Tabu 2

Ninguém no debate parlamentar questionou o Governo sobre as centenas de milhões de euros entregues de mão beijada ao sr. Zelensky. Ninguém se atreveu a dizer que o apoio político ao regime de Kiev é uma atitude cega que apenas serve para prolongar um conflito perdido para o povo ucraniano e alimentado pelas potências ocidentais.

Da mesma maneira, ninguém ousou pôr em causa os planos do Governo para aumentar as despesas militares até ao final da década, sabendo-se que isso acrescentará ao orçamento do Estado muitas centenas de milhares de euros socialmente perdidos. 

Tabu 3

A guerra, pelos recursos brutais que consome e pela coacção que exerce sobre as populações, directa ou indirectamente ameaçadas, é factor de empobrecimento, em primeira mão, das classes trabalhadoras e terreno propício para a acção discricionária do poder. 

Isso mesmo se constata pela crise múltipla que desaba sobre a cabeça das populações europeias e pela decisão dos governos em prolongarem a guerra, sacrificando quer as condições de vida quer a voz das populações. 

Que nada disto tenha sido trazido para o debate parlamentar — e devidamente denunciado — diz bem sobre a importância que, tanto o poder como os seus críticos, dão ao assunto. Esta é daquelas omissões que, só por si, define o real papel de uma instituição.

Estabilidade?

O debate deu mostra da relação de forças entre as representações parlamentares. A hegemonia do PS leva os demais partidos a encararem os próximos anos da legislatura como um período de acumulação de forças eleitorais, e não mais que isso. Considerar a Assembleia da República o espelho do país, só por ironia.

António Costa confia na maioria absoluta do PS para garantir estabilidade institucional ao Governo. Mas a estabilidade política não depende só da maioria parlamentar, sobretudo quando o agravar das condições de vida empurra as populações empobrecidas para o protesto, para o desespero ou para a revolta. 

Os fracassos de Boris Johnson e Mario Draghi, a perda de maioria de Macron, ou a provável derrota de Biden em novembro são exemplos de que a longa crise económica e social das sociedades capitalistas ocidentais — agudizada pelos efeitos da guerra — se transforma a passos largos numa crise política e institucional. 

———

(*) Em junho, a inflação atingiu 8,7%. O aumento dos preços foi maior nos bens alimentares, nos transportes e na habitação. Num ano, os produtos energéticos subiram 31,7% e os produtos alimentares não transformados subiram 11,9%. As classes de menores rendimentos, que gastam quase tudo em despesas básicas como a alimentação, são as que suportam uma inflação mais alta. Dados do INE, boletim de 12 de julho de 2022.

 


Comentários dos leitores

leonel lopes clérigo 29/7/2022, 18:31

INFLAÇÃO

Na tradição judaico-cristã, o Deus de Israel fez cair sobre o Egito - para convencer o Faraó a libertar os hebreus escravizados - um conjunto de "calamidades" que passaram à História como "as dez pragas do Egito."
Hoje, no nosso tempo, não temos (ainda?...) pragas de Gafanhotos, nem de Rãs, Mosquitos Moscas...ou a "morte dos primogénitos", mas temos a INFLAÇÃO que a esperançosa economista LAGARDE teima em convencer-nos - como na anedota alentejana - que "isto já passa".

1 - Acima, Urbano Campos refere bem os efeitos dessa PRAGA da INFLAÇÃO sobre a CLASSE TRABALHADORA e, nessa perspectiva, considera, como fazendo parte duma hipótese de solução, "a subida dos salários de modo a acompanharem a inflação" anulando assim seu efeito. A isto e se não estou errado, costuma dar-se um conhecido "palavrão": INDEXAÇÃO dos SALÁRIOS ou seja, fazer acompanhar - em intervalos adequados e mais ou menos curtos - os SALÁRIOS à sua depreciação inflacionista.

2 - Ora parece que a experiência tem demonstrado que tal medida - apesar da boa intenção em "resguardar os RENDIMENTOS do TRABALHO" - acaba por agravar em vez de combater a INFLAÇÃO, fazendo assim "sair o tiro pela culatra". A balbúrdia do sistema burguês dito liberal - "essência" da economia CAPITALISTA - não permite COMBATER a ESPECULAÇÃO que tem sempre o "caminho aberto e livre" para operar de alguma forma e no sentido duma inflação crescente.
E vale aqui uma nota curiosa.
Na década de 1920, o Banqueiro Hjalmar Schacht assumiu a pasta da Economia do Governo de Hitler num período em que as gigantescas REPARAÇÕES de Guerra exigidas pelos ALIADOS e "decididas" em Versalhes, forçavam uma HIPERINFLAÇÃO ameaçando arruinar a Alemanha como Nação.
As medidas avançadas por Schacht - que lhe valeram prestigio mundial e a designação de MAGO das FINANÇAS - permitiram combater não só a inflação como anular o desemprego e voltar a "prestigiar" a moeda alemã.
Mas não se pense que só isso bastou. Ao que parece, o Partido Nazi deu uma ajuda preciosa no COMBATE à ESPECULAÇÃO. Tendo conhecimento CONCRETO dos pequenos ESPECULADORES comerciantes que revendiam ao público, invadiam essas lojas destruindo-as violentamente, acções que funcionavam como "exemplo" contra quem se atrevesse a ESPECULAR.

3 - Ainda não perdi a esperança de ver muito proximamente o CHEGA! do Sr. André Ventura utilizar este "modelo" de combate à ESPECULAÇÃO.

afonsomanuelgoncalves 30/7/2022, 14:31

Sabe-se desde os velhos classicos do merxismo que a lei da contradiçâo é a lei fundamental da natureza, da sociedade e por conseguinte também do pensamento. No entanto temos que saber que este movimento nem sempre é simultaneionrstrs très dmínios, e pretender que se desencadeiem e se entrelacem sem sujeitos activos é pretender que as classes estejam å espera que o milagre lhes caia em cima da cabeça. Por isso, considerando este decurso da História tal como se apresenta diante dos olhos de cada um, percebe-se muito bem que mais uma vez a classe trabalhsdora nao reune condiçôes para saír vencedora desta grande fraude que lhe é preparada com régua e esquadro.

afonsomanuelgoncalves 1/8/2022, 16:00

Lamento as enormes gafes transcritas no meu texto. Isso deve-se à avaria do tablet e a grande descuido da minha parte. As minhas desculpas ao director e leitores.

leonel lopes clérigo 3/8/2022, 11:42

CAPITALISTAS da TRETA

Lucros excessivos na BANCA?...
Meio agastado, o senhor VITOR BENTO responde que há "hostilidade cultural (?...) ao Capital e à sua acumulação".
Pudera! O CAPITAL já cá anda a "mamar" há uma eternidade e não há meio de DESENVOLVER o País....Qual a sua UTILIDADE SOCIAL? Encher pneus?...
Se a ACUMULAÇÃO (de que fala o Sr. Vitor Bento) servisse para nos Industrializar, vá que não vá. Mas é usada pelos manhosos CAPITALISTAS TUGAS na COMPRA de "arrecadas de ouro das nossas mulheres minhotas...." e outras tretas RENTISTAS do género.

afonsomanuelgoncalves 3/8/2022, 19:11

Saúdo com entusiasmo a resposta do Leonel Clérigo ao consagrado e sábio cientista Vítor Bento.

leonel lopes clérigo 6/8/2022, 16:16

QUATRO PONTOS MAIS SOBRE O "CAPITALISMO DA TRETA"

1 - A ACUMULAÇÃO CAPITALISTA só pode ganhar sentido SOCIAL quando se traduz em REPRODUÇÃO ALARGADA.

2 - A não ser assim, o CAPITAL vê sua inicial FUNÇÃO SOCIAL Produtiva transformada em PARASITISMO RENTISTA.

3 - O NEOLIBERALISMO expressa bem essa "evolução" em termos classistas, que mais não é do que a passagem do poder da FRACÇÃO INDUSTRIAL para a FRACÇÃO RENTISTA FINANCEIRA, que se arvora no "direito" de melhor reger a "planificação" da FASE IMPERIALISTA do CAPITAL.

4 - Assistimos então à ascensão IMPARÁVEL da BANCA e à passagem do "produtivismo industrial" ao "parasitismo rentista financeiro". É um excelente sinal da DECADÊNCIA do CAPITALISMO: o eclipse da sua "Função Histórica" PRODUTIVISTA.


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