Cimeira da Nato: marco histórico, diz o governo

Manuel Raposo — 10 Julho 2022

António Costa, João Cravinho. O governo português insiste em manter-se do lado errado da história

A cimeira da Nato, realizada em Madrid em final de Junho, não podia ser mais explícita sobre o papel da Aliança na defesa dos interesses dos EUA. A unanimidade que dela saiu não esconde o facto de as decisões aprovadas serem em tudo ditadas pelos propósitos norte-americanos de combater a influência crescente da China e da Rússia, arrastando para mais essa aventura os aliados que se deixarem levar.

A Nato mostrou, talvez como nunca, ser o braço da política imperialista de Washington, agora sofrendo as agruras da perda de influência no mundo, mas nem por isso menos ameaçadora. Pelo contrário, à medida que perdem capacidade de domínio económico global mais facilmente os EUA puxam da pistola para responderem aos desafios de um mundo que vai escapando à sua tutela.

“Novo” conceito estratégico 

O tão falado novo conceito estratégico adoptado em Madrid apenas é novo no modo como aponta os inimigos de Washington. A Rússia como “a maior e mais directa ameaça” e a China como fonte de “sérios desafios” para a próxima década são afirmações que desenham um estado de guerra (para já, latente) dirigido contra os principais competidores dos EUA nos planos militar e económico. 

A mira apontada à Rússia escuda-se evidentemente na guerra contra a Ucrânia, escondendo cuidadosamente os anos de provocações dirigidas pela Nato no Leste da Europa que tornaram a guerra na prática inevitável. Nada de novo, no entanto, se considerarmos que, desde sempre, a Nato teve como alvo a URSS ou a Rússia, apenas com mudanças de linguagem consoante os altos e baixos das relações mútuas. O ressurgimento da Rússia como potência nacional e a sua aliança com a China são a razão de fundo da fúria norte-americana.

A acusação lançada à China, por seu lado, é uma antecipação do estado de guerra que os EUA querem estender ao Extremo Oriente. De facto, em que medida é que o crescimento e o aumento da influência da China no mundo (são estes os argumentos) podem constituir um “desafio para os nossos valores, os nossos interesses e a nossa segurança”, isto é, para o Ocidente? Apenas na medida em que a expansão económica da China e o apoio que presta aos países em desenvolvimento pode ajudar estes a saírem da penúria, a encontrarem alternativas de investimento que não passem pelo FMI ou o Banco Mundial, e a tornarem-se menos dependentes. 

Ora, este processo tende a socavar o domínio que as potências imperialistas hoje ainda mantêm. Só neste âmbito se percebe a preocupação dos EUA com a China, a ponto de levarem a Nato (que começou por ser um tratado do Atlântico Norte, lembremos) a preparar-se para um conflito no outro lado do mundo.

É visível aqui que o interesse em jogo é essencialmente o dos EUA: manter por todos os meios a sua dominação mundial. O sim dos aliados europeus é mais um compromisso que, previsivelmente, lhes vai sair caro: tanto nos gastos militares acrescidos, como na maior dependência da política guerreira ditada a partir de Washington, como ainda nas perdas económicas que forçosamente terão em resultado da guerra comercial que os EUA promovem contra a China. 

Os estados europeus, que estão a pagar pesadamente a aventura ucraniana em que decidiram participar, caminham a passos largos para uma completa vassalagem face aos EUA.

Defensiva, a Nato?

A agressividade da Nato, se outras provas não houvesse, ficou patente nas intervenções destruidoras na Jugoslávia, no Afeganistão ou na Líbia. Mas, mesmo quando não dispara tiros, o aliciamento de novos países para as suas fileiras não faz dela uma aliança defensiva, como insistem os seus mentores. 

A expansão a novos territórios destina-se a possibilitar a multiplicação das bases militares norte-americanas, a instalar meios de guerra nas fronteiras dos adversários e a mobilizar forças e recursos locais para um eventual conflito aberto, como tem sido patente no alargamento da Nato a Leste na Europa.

Este constante clima de guerra cria uma pressão permanente sobre os adversários, forçando-os a uma inevitável corrida às armas. Em Madrid, novos passos foram dados nesse mesmo sentido. 

Uma vez mais, foi declarado apoio, “a curto e a longo prazo”, à Ucrânia, o que significa que a integração na Nato não foi excluída. A Geórgia, outro dos mais recentes pontos de conflito, voltou a ser citada, desta vez na forma arredondada de “apoio às suas aspirações euro-atlânticas”. A Polónia e os países bálticos tornam-se a ponta avançada da presença militar directa dos EUA em equipamento e em tropas. A Bósnia-Herzegovina e a Moldávia terão “programas alargados” para acorrer às suas “necessidades defensivas”. Na Roménia, será instalada mais uma brigada de combate sob comando norte-americano. Espanha, Itália, Alemanha e Reino Unido acolherão mais navios de guerra, meios aéreos suplementares e dispositivos de ciber-guerra. 

Chamar “dissuasão” e “defesa” a esta política, como repetiu a cimeira, é brincar com as palavras.

Do Atlântico Norte ao Pacífico

Pela primeira vez, a União Europeia esteve presente numa cimeira da Nato, tendo os dirigentes europeus destacado “os papéis complementares da Nato e da UE”. Traduzindo: a UE procede à integração económica dos países que caem na sua esfera de influência e a Nato trata da sua integração militar. 

Percebe-se assim melhor o papel que desempenharam conjuntamente na crise ucraniana — desde 2004, passando por 2014, até às vésperas da guerra — e o significado que tem a apressada aceitação da candidatura da Ucrânia a membro da UE.

Também quatro aliados do Pacífico (Japão, Coreia do Sul, Austrália e Nova Zelândia), estiveram presentes pela primeira vez.

O sinal dado pela cimeira com estes convites foi claro: fazer da Nato uma aliança global.

O modelo, de acordo com os debates havidos, deveria estender-se ao Extremo Oriente e ao Pacífico, juntando os aliados dos EUA para enfrentarem conjuntamente a China. 

Mas também devia estender-se ao “flanco sul” da Europa, isto é, ao Médio Oriente e à África. Estas últimas são, não por acaso, duas das regiões onde o imperialismo europeu e norte-americano perdem influência e de onde provêm vagas de migrantes e refugiados vitimados, desde longa data, pela dominação colonial e neo-colonial do Ocidente. Estender o braço da Nato para o Magrebe, o Sahel e o Médio Oriente será uma forma, não de atacar os reais problemas destas regiões, mas de lhes responder por via militar.

Promessas vazias

Adivinham-se as implicações práticas da linha consagrada em Madrid: 

  • Aumento exponencial dos gastos militares, com fatal sacrifício do investimento de carácter social; 
  • Cada vez maior peso das decisões políticas ditadas por pretextos de segurança e defesa, e portanto não subordinadas a decisões soberanas de cada país, e, menos ainda, a escrutínio democrático; 
  • Maior vassalagem, com consequências agravadas nos países mais fracos, perante as manobras dos EUA que convenham à sua política de confronto com a China e a Rússia.

Certamente para sossegar os espíritos diante desta realidade, a cimeira não resistiu a fazer umas quantas juras à opinião pública. 

Uma, respeita à “preservação dos valores e das instituições democráticas”. Se os exemplos são os regimes ucraniano ou polaco, o apoio aos nazis do batalhão Azov, a corrupção que corrói a Ucrânia, a censura sobre as emissoras russas, as decisões recentes do Supremo Tribunal dos EUA, as trafulhices de Boris Johnson… estamos conversados.

Outra jura foi a de “lutar contra as mudanças climáticas” e de “promover boas práticas” em matéria de consumo energético. Mas com o aumento previsto da corridas às armas que a cimeira aponta, tudo vai obviamente piorar também nas questões ambientais — o que faz da promessa de Madrid uma farsa. (*)

De resto, a própria UE acabou de fazer marcha atrás nas questões do clima e da segurança energética ao declarar “verdes” o gás e a energia nuclear, depois de a Alemanha e outros retomarem o consumo de carvão para compensar a falta do gás russo. 

“Marco histórico”

O primeiro-ministro António Costa classificou a cimeira de Madrid como “um marco histórico”. Que poderia ele dizer que não fosse um sinal da subserviência do país diante dos grandes do mundo? É caso para usar o argumento que os EUA têm usado contra a China: o governo português, ao arrasto de toda a UE, insiste em manter-se do lado errado da história.

Costa, bem acolitado pelos ministros da Defesa e dos Negócios Estrangeiros, prometeu subir os gastos com a defesa (isto é, essencialmente com a Nato) dos actuais 1,55% do PIB para 1,66% em 2023 (antecipando a medida em um ano) com vista a alcançar, até 2030, os 2% que os norte-americanos reclamam. 

A generosidade de António Costa, em euros, traduz-se nisto: este ano, os gastos militares serão mais de 4.000 milhões de euros; no ano que vem, quase 4.700 milhões de euros; e por aí acima nos próximos anos.

Se a isto juntarmos o custo em juros da dívida pública (quase 6.300 milhões de euros em 2022) teremos, este ano, uma despesa socialmente perdida acima dos 10.300 milhões de euros.

Com a subida constante do custo de vida, com a estagnação dos salários, com a recusa do governo em limitar preços, com o alastrar da miséria, com a falta de meios no Serviço Nacional de Saúde, com o garantido aumento dos gastos com a dívida — é de perguntar que legitimidade têm as autoridades portuguesas para assumirem ainda mais compromissos com a Nato, como fizeram em Madrid, empenhando o país com verbas colossais saídas dos bolsos de quem trabalha.

Como se torna evidente, sobra para a Nato o que falta para o pão dos portugueses.

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(*) Um relatório publicado em 2019 pela Universidade de Durham and Lancaster apontou as forças armadas dos EUA como um dos maiores consumidores de hidrocarbonetos e um dos maiores poluidores mundiais. Segundo números de 2017, foram responsáveis pela emissão anual de 1.200 milhões de toneladas de gases com efeito de estufa, o equivalente a 257 milhões de automóveis — mais do que as emissões totais de países como a Suécia, Marrocos ou Portugal. 

Os EUA retiraram-se em 2001, pela mão de George W. Bush, do Protocolo de Quioto (assinado em 1997) que estabelecia regras para diminuir a emissão de gases com efeito de estufa. Os EUA não estão por isso obrigados a divulgar as emissões poluentes das suas forças armadas, pelo que os valores reais de poluição que elas provocam são difíceis de calcular. 

Bush argumentou então que o protocolo “afectaria negativamente a economia dos EUA”, e pôs em causa as bases científicas sobre as alterações climáticas. Dezasseis anos depois, Donald Trump faria o mesmo com o Acordo de Paris usando os mesmos argumentos de Bush.

 


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