EUA, Reino Unido: mate-se o mensageiro

Editor / Consortium News — 13 Junho 2022

Extraditar Assange nada tem a ver com justiça: é pura decisão política

O calvário de Julian Assange prossegue nas prisões do Reino Unido, sob ameaça de extradição para os EUA. A decisão de o colocar ou não nas mãos da polícia norte-americana está agora dependente da ministra britânica do Interior Priti Patel depois de os tribunais terem primeiro negado e depois autorizado a extradição. A questão está assim plenamente no campo político, nada de bom se augurando tendo em vista a ligação, unha com carne, do governo britânico com o poder norte-americano. 

A ministra em causa é a mesma que fez um acordo com o Ruanda para recambiar para este país os imigrantes que cheguem ao Reino Unido clandestinamente — como os países “civilizados” fazem ao seu lixo nuclear ou outro, indesejáveis no seu próprio solo ou nos seus fundos marinhos.

Têm-se multiplicado os apelos e os protestos para que Assange não seja extraditado e, pelo contrário, seja libertado. O “crime” que aos olhos dos EUA e do RU ele cometeu foi simplesmente o de denunciar perante a opinião pública as atrocidades cometidas pelas polícias secretas e pelos militares norte-americanos e britânicos por quase todo o mundo, com destaque para o Iraque e o Afeganistão. 

Nos critérios democráticos de Biden e de Johnson (e dos seus antecessores, sem distinção) não cabe a democratização da informação sobre os crimes de Estado que EUA e RU cometem. Isso é “espionagem” e “traição”, puníveis com prisão perpétua ou pena capital. Mate-se o mensageiro que a mensagem é inconveniente.

Ponhamos a coisa no seu contexto actual. Ninguém como os EUA e o RU é tão lesto a acusar a Rússia de crimes de guerra, crimes contra a humanidade e mesmo genocídio na guerra que decorre na Ucrânia. Ninguém como os EUA e o RU se mostra tão pronto a acusar a China de desrespeito pelos direitos humanos, e também de genocídio, com o propósito claro de pressionar e criar animosidade contra as autoridades chinesas. Ninguém como os EUA e o RU se preocupa tanto com os direitos humanos em Cuba, na Venezuela ou no Irão cujas populações eles entretanto martirizam com sanções económicas impiedosas.

A comunicação social reproduz, sem crítica nem reacção, estas acusações — repetidas a cada passo e sem provas provadas — ao mesmo tempo que esquece de há muito os crimes, mais que provados, que Assange denunciou, ou os crimes — esses sim de reconhecido perfil genocida — que Israel comete diariamente contra a população palestina há mais de 70 anos. 

As honrosas excepções de jornalistas e meios de comunicação que se têm batido por Julian Assange não chegam para esconder o silêncio vergonhoso da maioria dos profissionais, que passam ao lado da questão sem terem a coragem de levantar a voz por um dos seus — justamente aquele que teve a ousadia de dar realização prática àquilo que todos os demais arvoram ser seu mester: a denúncia das injustiças, a divulgação dos crimes cometidos pelo poder. Não é por isso que se crismam a si mesmos como “quarto poder”?

Por este comportamento se pode avaliar a confiança que podemos ter nas informações que todos os dias nos debitam jornais, rádios, televisões pela pena de redactores ou pela voz de pivôs. 

O apelo que damos a conhecer vem da parte de 300 médicos que atestam as precárias condições de saúde de Julian Assange e exigem à ministra britânica a libertação de Assange. A fonte é o Consortium News, uma publicação fundada em 1995 precisamente para combater o que o seu fundador chamou “a idiotice e a propaganda que tinha invadido o jornalismo americano” — uma touca que serve a muito boa gente.

 

MÉDICOS DIZEM AO REINO UNIDO: EXTRADIÇÃO DE ASSANGE É MÉDICA E ETICAMENTE INACEITÁVEL

Consortium News 

Antes da decisão da ministra do Interior do Reino Unido sobre extraditar Julian Assange para os Estados Unidos, um grupo de mais de 300 médicos representando 35 países disse a Priti Patel que a aprovação da extradição seria “médica e eticamente inaceitável”.

Numa carta aberta enviada na sexta-feira, 10 de junho, e remetida também ao primeiro-ministro britânico Boris Johnson, ao chanceler e secretário de Estado da Justiça Robert Buckland, ao primeiro-ministro australiano Anthony Albanese e à ministra australiana das Relações Exteriores Penny Wong, o médicos chamam a atenção para o facto de Assange ter sofrido um “mini AVC” em outubro de 2021.

Sublinham eles: “Previsivelmente, a saúde de Assange continuou a deteriorar-se sob a sua custódia. Em outubro de 2021, Assange sofreu um ‘mini-derrame’… Esta dramática deterioração da saúde de Assange ainda não foi considerada no seu processo de extradição. As garantias norte-americanas aceites pelo Supremo Tribunal, portanto, que serviriam de base para a aprovação da extradição, baseiam-se em informações médicas desactualizadas, tornando-as obsoletas”.

Os médicos acusam que qualquer extradição nestas circunstâncias constituiria negligência. Escrevem: “Sabendo-se que o sistema legal do Reino Unido não levou em consideração o actual estado de saúde de Assange, nenhuma decisão válida sobre a sua extradição pode ser tomada por si [ministra] ou por qualquer outra pessoa. Se ele for maltratado nos EUA nessas circunstâncias, é você, ministra do Interior, que ficará com a responsabilidade por esse efeito negligente”.

O grupo lembra à ministra do Interior que já lhe tinha escrito em 22 de novembro de 2019 expressando sérias preocupações com a deterioração da saúde de Julian Assange.

Estas preocupações foram posteriormente corroboradas pelo depoimento de peritos no tribunal durante o processo de extradição de Assange, facto que levou à negação da sua extradição pelo juiz original por motivos de saúde. Essa decisão foi posteriormente anulada por um tribunal superior, que encaminhou a decisão para Priti Patel à luz das garantias dos EUA de que Julian Assange não seria tratado de forma desumana.

Os médicos escrevem: “As ‘garantias’ subsequentes do governo dos Estados Unidos, de que Assange não seria tratado de forma desumana, são inúteis, dado o seu histórico de busca, perseguição e assassinato planeado de Assange em retaliação pelo seu jornalismo de interesse público”.

E concluem: “Ministra do Interior, ao tomar a sua decisão de extradição, não se torne a si, ao seu governo e ao seu país cúmplices da execução em câmara lenta deste jornalista premiado, sem dúvida o principal editor do nosso tempo. Não extradite Julian Assange; liberte-o”.

Julian Assange permanece na Prisão de Alta Segurança de Belmarsh aguardando a decisão de Priti Patel, que poderá ocorrer a qualquer momento.


Comentários dos leitores

Leonel Lopes Clérigo 14/6/2022, 10:51

Ao MV

1 - Julgo que a designação de "calvário de Julian Assange" feita no texto acima, concretiza dramaticamente uma das Contradições que atravessam hoje as Sociedades ditas OCIDENTAIS: "bem prega Frei Tomás, faz o que ele diz mas não faças o que ele faz".
Não há Burguês desta parte OCIDENTAL do Planeta - uma "convenção" à volta de "pontos cardeais" - que não encha a boca, minuto a minuto, com a DEMOCRACIA, DIREITOS HUMANOS, JUSTIÇA,...e outros "flatus vocis" semelhantes o que parece demonstrar como tão difundido está o "PENSAMENTO ABSTRACTO".
Mas confesso que nunca vi explicado como podem coexistir todos esses belos sentimentos numa SOCIEDADE que SOBREVIVE da EXPLORAÇÃO do TRABALHO ALHEIO. E aposto dobrado contra singelo que nunca ninguém me irá tirar a fé de morrer na ignorância.

2 - Mas a propósito de Pensamento Abstrato, gostaria de aqui deixar ao MV uma sugestão.
Não há muito tempo atrás, a "PÁGINA" do MV parecia ter 2 SECÇÕES: paralelamente à existente agora, havia uma espécie de TRIBUNA cujo propósito me parecia ser o aclarar questões mais do interesse CONCRETO da nossa SOCIEDADE. Esta secção acabou por ser eliminada mais recentemente.
Considero ser de "RESSUSCITAR" essa secção mas agora com outro FOLEGO: o PENSAMENTO sobre as questões centrais que preocupam o PAÍS e o seu DESENVOLVIMENTO BLOQUEADO e que continuam à espera de CLARIFICAÇÃO bem longe das patranhas BURGUESAS que há muito necessitam combate "taco-a-taco". Já basta do "ocioso" BURGUÊS se entreter a passear à Beira-mar.

3 - Não é fácil concretizar isso sobretudo quando temos presente o erro há muito apontado por MARX: o das "BOAS VONTADES substituirem o CONHECIMENTO". E temos já experiência dos maus resultados disso: o pós-25 de Abril está cheio deles.

mraposo 14/6/2022, 14:29

Respondendo à questão posta por Leonel Clérigo, a secção Tribuna continua activa e aberta à colaboração dos leitores. Como se pode ver na lista de Tópicos, à esquerda do ecrã, o último texto é de janeiro deste ano.
Manuel Raposo

Leonel Lopes Clérigo 14/6/2022, 15:47

Ao MV

Manuel Raposo: ela existe de facto... mas perdeu visibilidade. E parece ser a "menor" em número comparada com todas as outras (15).
De qualquer maneira, não é por acaso que se costuma dizer: "quem não aparece, esquece..."


Envie-nos o seu comentário

O seu email não será divulgado. Todos os campos são necessários.

< Voltar