Voltemos a falar de fome

Editor — 1 Junho 2022

De Bruxelas, António Costa manifestou-se “preocupado” com o nível “elevadíssimo” da inflação em Portugal, relacionando a situação com o “preço elevado que toda a Europa está a pagar” pela guerra. Sublinhou que o factor principal do aumento dos preços é o custo da energia. Costa tinha acabado de sair duma reunião com os seus pares europeus em que foi aprovado o corte das importações de petróleo russo, decisão esta que de imediato causou nova subida dos preços da energia a nível mundial.

Dias antes, o Orçamento do Estado para 2022 fora votado sem sobressaltos, isto é, sem que uma subida de salários para acompanhar a inflação fosse sequer equacionada e admitindo apenas uma subida mínima das pensões. Argumentou o Governo que subir os salários iria provocar uma espiral de aumento de preços e reforçar assim o ritmo da inflação. Mas a justificação cai por si: o INE revelou que a inflação atingiu em maio o valor de 8%, contra 7,2% em abril, valor que só compara com fevereiro de 1993, ficando assim provado que os preços sobem à rédea solta sem qualquer relação com o nível dos salários

A tese de Costa de não subir salários para não provocar inflação esconde uma opção não revelada. Relembremos uma resposta clássica: não é a subida dos salários que estimula o aumento dos preços; ao contrário, é a inflação que torna exigente a subida dos salários para que os trabalhadores mantenham o nível de vida; e uma eventual subida dos salários nestas condições vai sempre atrasada e em perda constante. Isto é tanto mais evidente, no caso actual, quanto se sabe que a origem da inflação está no desarranjo da economia mundial e nacional causado pelas sequelas da crise de 2008 (nunca ultrapassada), pela pandemia e, recentemente, pela guerra na Ucrânia.

Há duas maneiras de atenuar o problema: ou fazer os salários acompanhar a inflação para que não haja perda de poder de compra, ou limitar os preços cortando nos ganhos inflacionários do capital. A opção não confessada de Costa é a de que sejam os assalariados a pagar os custos do descalabro económico em que o mundo se arrasta e que a própria Europa ajuda a alimentar. 

Prova suplementar: O ministro da Economia chegou a admitir criar um imposto especial para taxar os lucros “inesperados” das empresas petrolíferas gerados pela subida dos preços da energia; seria uma maneira de o Estado arrecadar os lucros excedentários e atenuar os custos energéticos. Mas disse o ministro que primeiro teria de “falar com as empresas”. Depois da conversa, convenceu-se de que o melhor era deixar cair a ideia. Em resultado, a Galp teve no primeiro trimestre deste ano lucros de 155 milhões de euros, uma subida de 500% face ao mesmo período do ano passado. 

É evidente que os níveis e a extensão da pobreza crescem de dia para dia, mesmo entre os trabalhadores no activo. Volta a falar-se, com propriedade, de fome e de falta de pão. Mas, Governo e poderes públicos, em vez de tomarem medidas que ataquem o problema pela base, dão palco aos profissionais da caridade para que sejam eles a mitigar os efeitos mais palpáveis e publicamente mais indesejáveis da desgraça social. Com a presença televisiva do presidente da República (pois claro), mobilizam escuteiros à porta dos supermercados para que sejam os remediados e os pobres, com os seus óbolos, a socorrer os menos remediados e os mais pobres. 

As medidas de ataque imediato à situação são fáceis de entender e de enunciar: subir salários e pensões, limitar preços dos bens essenciais e parar com as medidas de apoio à guerra. Não é admissível que, num momento em que a fome — fome propriamente dita — entra pela casa de milhões de portugueses, o Governo permita lucros astronómicos às empresas que ganham com a crise social como se isso fosse um sinal de vitalidade económica do país. E é igualmente inadmissível que o Governo arranje disponibilidade para financiar a Ucrânia com 250 milhões de euros e fornecer-lhe material militar, e ainda envie tropas para o leste da Europa a mando da Nato, num esforço que se destina apenas a prolongar a guerra, com sacrifício da população ucraniana —  e com efeitos de ricochete sobre a população portuguesa.

António Costa gabou-se de ter produzido o Orçamento mais à esquerda de sempre. Tamanha vanglória mostra quão curta é a visão social de António Costa, e não esconde a crua realidade do país. No dia 29, dois sem-abrigo morreram num incêndio numa casa devoluta em Vila do Conde onde pernoitavam. No dia seguinte, a imprensa noticiava que os seis maiores bancos a operar no país tiveram no primeiro trimestre 600 milhões de euros de lucro, o dobro do mesmo período do ano anterior, com três mil funcionários a menos.


Comentários dos leitores

JMLuz 3/6/2022, 16:06

Um excelente texto para ser distribuído à porta da fábrica e de outros locais de trabalho e de habitação.

Esperemos que os interessados se encontrem para preparar os meios para levar à prática tal tarefa.

Leonel Lopes Clérigo 10/6/2022, 9:30

JMLuz:

Deixa a "panela" ferver. Se a tirares antes de tempo do "lume", a sopa arrisca-se a ficar "crua".

jmluz 11/6/2022, 15:55

Não sei se te estás a referir à classe em si ou aos revolucionários de última hora.

De qualquer maneira sobre o que dizes penso o seguinte: A "panela depois do 25 de Abril, também ferveu" e depois como faltava os meios para orientar e conduzir o caminho da fervura acabou como se sabe... Daí que se possa concluir, que como : Qualquer animal precisa da cabeça para se movimentar, também a classe dos assalariados e outros extratos sociais explorados e oprimidos, não pode fugir à regra. A não ser que queira andar de trambolhão em trambolhão e nada aprender.

Leonel Lopes Clérigo 12/6/2022, 8:09

jmluz

Dizes bem! No 25 de Abril, também havia "panela" só que tinha uma "lamparina" a aquecer em vez de "gás natural" e apesar da "fominha" ser muita.
Quando chegou a época da "colheita" para se fazer uma "sopa" decente, podemos dizer e com segurança, que "havia muita parra e pouca uva". Ou como tu dizes e bem: "qualquer animal precisa de CABEÇA".
De qualquer maneira há uma questão que, passados 50 anos, se me tornou clara: parece que o "nosso" BURGUÊS com todos os seus floreados, não sabe o que fazer a este PAÍS como se viu agora com a TRETA do PRR. E talvez não fosse mau começar e a sério a pensar COMO SE ISSO SE FAZ...coisa essencial ao "dia seguinte".
O resto, jmluz, fica para quando formos apanhar ar à "Margem Sul"...

fm 14/6/2022, 13:47

Costa por uma questão de classe dominante não aumenta os trabalhadores do estado, mas dá recados ao privado para aumentar os ordenados em 20% em 4 anos.
Os patrões fazem-se tesos como sempre. Só aumentam obrigados, mas como não à força no trabalho para os fazer aumentar enriquecem com a miséria alheia.
Com isto tudo as classes mais baixas que ganham entre o SMN e os 1000 euros são os prejudicados do costume, além dos reformados com reformas abaixo do SMN.
Isto só poderia ir lá com uma GREVE GERAL em massa para quebrar o degelo operário permanente e criar condições de luta por uma nova sociedade.
Sabemos que a CGTP/UGT não tem força nem motivação para encostar o governo os patrões a parede por que estão feitos com eles.

Leonel Lopes Clérigo 16/6/2022, 9:18

Caro fm:

1 - Vou apenas referir um aspecto deste teu último parágrafo já que aceito o que dizes antes.
Parece-me também claro que a CGTP/UGT não têm FORÇA - acrescento "anímica"... - para, pelo menos, obrigar o CAPITAL e seu GOVERNO a aceitar as "propostas mínimas" do MOVIMENTO SINDICAL que, diga-se de passagem, não são nada por aí além o que demonstra o GRAU de SUBDESENVOLVIMENTO deste nosso PAÍS comandado por uma BURGUESIA PACÓVIA há muito em ESTADO de COMA.
É costume dizer-se que "quem muito se agacha acaba por mostrar o cu..." e parece bem certo. Falta só acrescentar: e depois disso, não se andem a carpir pelas "pastelarias de bairro".

2 - Contudo, parece-me um pouco "temerário" afirmar com a "clareza" com que afirmas uma ideia que tens - tal como um número razoável de gente, parece-me... - de que esta "pastelada sindical" que calhou na rifa, tem origem num acordo "por debaixo do pano" entre as DIRECÇÕES SINDICAIS e o GOVERNO/PATRONATO. Para já não falar nos interesses/pressões "escondidos" de "sobrevivências partidárias" que subsistem hoje do "Orçamento do Estado" exigente de "acções bem comportadas".
Julgo que neste caso há que DEMONSTRAR isso e analisar os PROCEDIMENTOS das "CAPITULAÇÕES" para não surgirem apenas como "BOCAS FOLEIRAS" o que, julgo, se torna contraproducente e faz, não raras vezes, o "tiro sair pela culatra".
Esta, parece-me ser uma tarefa essencial mas que exige CONHECIMENTO e não apenas FEZADAS apesar destas terem, não raras vezes, largas possibilidades de acertarem.

fm 17/6/2022, 15:16

Leonel

Sim tens razão, segundo percebi. Não estou por dentro das capitulações, traições deles e irem todos almoçar juntos, mas que as há, há. A coisa nota-se mais em Espanha, mas também não estamos em Espanha.
Vou ter isso em atenção quando escrever sobre isso.

Fm 20/6/2022, 19:40

https://www.tsf.pt/portugal/politica/camarinha-responde-a-costa-cgtp-assinou-varios-acordos-curiosamente-nao-foram-cumpridos-14954038.html

Vem mesmo a calhar a CGTP assinar acordos que diz não cumpridos.

leonel clerigo 24/6/2022, 9:19

Caro fm

Como se dizia nos meus tempos de gaiato:
BOA MALHA! fm


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